Ludwig von Mises rejeita os argumentos padrão a favor da democracia. Para ele o que conta a favor dela não são as alegadas virtudes da deliberação pública. Para ele, só há um argumento convincente a favor da democracia. Ele diz que só a democracia permite uma mudança pacífica de poder. Todo governo, ele pensa, depende do consentimento popular. Se um número suficiente de pessoas achar que o governo não é mais tolerável, ele não será capaz de se manter no poder. Em uma democracia, pessoas nesta situação podem substituir pacificamente o governo por um partido de oposição mais ao seu gosto. Sem democracia, é provável que haja uma revolução violenta, porque aqueles que estão no poder e seus apoiadores tendem a se agarrar ao poder, mesmo que sua posição seja insustentável no longo prazo.
Mises expõe o argumento desta forma em Liberalismo:
O governo é constituído de umas poucas pessoas (os governantes são sempre uma minoria em relação àqueles a quem governam, tanto quanto o são os fabricantes de sapatos, em relação aos consumidores de seus produtos) e depende do consentimento dos governados, isto é, da aceitação da administração em exercício. Os governados podem considerá-lo um mal menor, ou um mal inevitável, embora possam ser de opinião de que uma mudança da situação reinante não teria propósito algum. Mas uma vez que a maioria dos governados se convence de que é necessária e possível a mudança da forma de governo e a substituição do velho regime e dos seus governantes, os dias destes estão contados. A maioria terá poder de levar a efeito seus propósitos pela força, mesmo contra a vontade do velho regime. Nenhum governo pode manter-se no poder por longo prazo, se não contar com o apoio da opinião pública, isto é, se os governados não estiverem convencidos de que o governo é bom. A força, a que recorre o governo, a fim de tornar cordatos os espíritos resistentes, somente pode ser aplicada com sucesso enquanto a maioria não se colocar totalmente em oposição.
Portanto, há, em qualquer forma de governo, meios de fazer com que o governo dependa, pelo menos em última análise, da vontade dos governados, vide guerras civis, revoluções, insurreições. Porém, é justamente este recurso que o liberalismo procura evitar. Não pode haver progresso econômico duradouro, se o curso pacífico dos negócios for continuamente interrompido por lutas internas. Uma situação política, tal como a que reinou na Inglaterra à época das Guerras das Rosas, mergulharia a Inglaterra de hoje na mais profunda e terrível miséria em poucos anos. O nível atual do desenvolvimento econômico nunca teria sido atingido, se não houvesse sido encontrada uma solução para o problema das contínuas insurgências das guerras civis. Uma luta fratricida, como a Revolução Francesa em 1789, representa pesadas perdas em vidas e propriedades. Nossa atual economia não mais poderia suportar tais convulsões. A população de uma moderna metrópole passaria por sofrimento muito grande, caso surgisse uma insurreição revolucionária, porque tal ocorrência poderia impedir a importação de alimentos e carvão bem como cortar o suprimento de energia elétrica, gás e água. Mesmo o temor de distúrbios desse tipo poderia paralisar a vida da cidade.
É aqui que a função social executada pela democracia encontra seu ponto de aplicação. A democracia é a forma de constituição política que torna possível a adaptação do governo aos desejos dos governados, sem lutas violentas. Se, num estado democrático, o governo não mais se conduz, segundo o desejo da maioria da população, não é necessária uma guerra civil para colocar, no governo, quem deseja governar segundo a maioria. Por meio de eleições e acordos parlamentares, processa-se a mudança de governo de modo suave e sem fricções, sem violência e sem derramamento de sangue.
Existem vários pontos em que você pode contestar esse argumento. Por exemplo, e se a maioria das pessoas se opuser ao governo, mas não houver um consenso de apoio a um determinado grupo de oposição? (Não quero dizer que o partido no poder não deixará grupos populares de oposição concorrerem. Mises, quando fala sobre democracia, presume que as eleições são justas.) Mas mesmo que o argumento possa ser contestado, parece ter muito a seu favor.
Murray Rothbard levanta uma objeção notável a este argumento que não recebeu a atenção que merece. Seu livro Governo e Mercado contém uma profusão de argumentos, um após o outro, e este passou despercebido.
Seu argumento, em resumo, é que se a democracia deveria ser um substituto para a revolução violenta, então o governo democrático deve se parecer exatamente com o governo que teria vencido em uma revolução violenta. É muito improvável que isso aconteça. Nesse caso, o argumento de Mises é falho.
Rothbard explica o que ele tem em mente nesta passagem:
Há, além disso, outra falha no argumento da “mudança pacífica” para a democracia, uma autocontradição séria que tem sido universalmente negligenciada. Aqueles que adotam esse argumento apenas o utilizam para chancelar todas as democracias e, rapidamente, passar a outras questões. Não perceberam que o argumento da “mudança pacífica” estabelece um critério para o governo diante do qual qualquer democracia deva estar à altura. Para o raciocínio de que as cédulas de votação devem substituir as balas das armas deve ser feito de uma determinada forma: de que a eleição democrática irá produzir o mesmo resultado que ocorreria se a maioria tivesse de combater a minoria num embate violento. Em suma, o argumento supõe que os resultados da eleição são, simples e exatamente, um substituto para um teste de combate físico. Aqui temos um critério para a democracia: Será que ela realmente produz o resultado que seria obtido pelo combate civil? Se descobrirmos que a democracia, ou uma certa forma de democracia, sistematicamente leva à resultados muito afastados dessa “substituição das balas as armas”, então temos de rejeitar a democracia ou desistir do argumento.
Como, então, a democracia se sai, em geral ou em países específicos, quando a testamos segundo o próprio critério? Um dos atributos essenciais da democracia, como vimos, é o de cada homem, um voto. Mas o argumento da “mudança pacífica” supõe que cada homem seja contado igual em qualquer teste de combate. Mas, isso é verdade? Em primeiro lugar, é claro que a força física não está igualmente distribuída. Em qualquer teste de combate as mulheres, os idosos e os doentes se sairiam muito mal. Com base no argumento da “mudança pacífica”, portanto, não há qualquer justificativa para dar voto a tais grupos fisicamente debilitados. Deste modo, estariam impedidos de votar todos os cidadãos que não passassem no teste, não de alfabetização (que é irrelevante para deter a bravura), mas de aptidão física. Além disso, está claro que seria necessário dar votos plurais a todos os homens com treinamento militar (tais como soldados e policiais), pois é óbvio que um grupo de combatentes altamente treinados poderiam facilmente derrotar um grupo muito mais numeroso de amadores igualmente robustos.
Mises poderia responder a esse argumento? Ele poderia ter dito que, mesmo que Rothbard esteja certo de que a democracia não é um substituto perfeito para os resultados de uma revolução violenta, ela está perto o suficiente para merecer nosso apoio, dados os custos da violência. Mas tenho certeza de que Rothbard teria um contra-argumento para isso também. Murray tinha uma capacidade incrível de refutar qualquer argumento contrário, e eu nunca encontrei alguém que o igualasse nisso.
Artigo original aqui.
Hoppe foi o que melhor destrinchou as deficiências da democracia entre os intelectuais de vertente austro-libertária. Como se vê, Mises e Rothbard, por exemplo, achavam que a democracia tinha sua relativa vantagem por “distribuir cargos dentro do estado e limitação temporal desses poderes” e permitir “livre entrada e voto universal”, sendo que estas mesmas características são aquelas que do ponto de vista econômico e jurídico, contam menos a favor da democracia numa comparação com a monarquia. A única vantagem da democracia parece ser mesmo contra uma ditadura, por evitar revoltas e massacres, mas paradoxalmente às contradições que vão sendo causadas e prejuízos acumulados ao longo de um governo democrático, especialmente pela politização da sociedade, leva ao surgimento de um líder autocrático para colocar ordem na casa.
De fato, Daniel: Hoppe também (e talvez principalmente) neste tema me parece ser uma evolução em relação aos pensamentos de Rothbard e Mises (feito aliás digno de pouquíssimos mortais ! ;-).
O argumento do Rothbard de fato é impressionante. Se ele estivesse vivo, provavelmente mudaria, pois hoje em dia está claro que os grupos políticos de esquerda que vem ganhando as eleições sistematicamente, se parecem muito com o que seria um grupo violento que tivesse assumido o poder a bala. A fraudemia é o ápice dessa violência.