O ex-presidente Donald Trump foi acusado de “incitamento à insurreição”. A alegação dos democratas da Câmara é que Trump fez um discurso inflamatório que – uma semana depois – levou ao motim do Capitólio em 6 de janeiro.
O Senado está agora considerando se deve ou não condenar Trump por este “crime”.
Eu coloquei “crime” entre aspas por alguns motivos.
A primeira razão é que o processo de impeachment não é um julgamento criminal, então mesmo uma condenação não estabeleceria culpa da forma como um tribunal criminal real faria. Ao contrário do que grande parte do público pensa, e do que a mídia fica feliz em sugerir, o impeachment é apropriadamente entendido como um processo estritamente político que nada mais faz do que remover uma pessoa do cargo.
Além disso, já está claro que, se Trump estivesse sendo julgado em um tribunal criminal real, é extremamente improvável que um promotor pudesse obter uma condenação. A alegada incitação de Trump não atende aos requisitos legais para tal acusação, conforme estabelecido pela Suprema Corte dos EUA em 1969. Uma condenação por incitação exigiria que os promotores mostrassem que havia uma ameaça iminente de violência a partir dos comentários inflamados. Claramente, o motim do Capitólio, ocorrido uma semana depois, não era “iminente” e, em um caso criminal, seria quase impossível provar que isso estava diretamente relacionado a um discurso político feito dias antes.
A segunda razão pela qual “crime” precisa estar entre aspas é porque o incitamento não é um crime real de forma alguma. Ele pressupõe que a pessoa que está cometendo o “incitamento” está simplesmente passando ordens para autômatos sem nada na cabeça que então se mexem e fazem o que quer que seu “líder” diga.
Na verdade, as únicas pessoas culpadas de tumultos são os desordeiros.
Rothbard explicou isso várias vezes.
Por exemplo, em um ensaio escrito para um pequeno jornal no final dos anos 1960, Rothbard explica que o problema de alegar que o incitamento é um crime real:
Suponha que o Sr. A diga ao Sr. B: “Vá e atire no prefeito”. Suponha, então, que o Sr. B, ponderando esta sugestão, decida que é uma ideia danada de boa e vá e atire no prefeito. Agora, obviamente, B é o responsável pelo tiro. Mas em que sentido A pode ser considerado responsável? A não atirou e não participou, vamos supor, de nenhum planejamento ou execução do ato em si. O próprio fato de ele ter feito essa sugestão não pode realmente significar que A deva ser considerado responsável. Pois B não tem livre arbítrio? Ele não é um agente livre? E se for, então B e somente B é responsável pelo tiro.
Se atribuímos qualquer responsabilidade a A, caímos na armadilha do determinismo. Estamos então assumindo que B não tem vontade própria, que ele é apenas uma ferramenta de alguma forma manipulada por A.
Agora, se a pessoa A participou do planejamento de um motim ou de um assassinato, então a pessoa A é culpada de conspiração, não de incitamento. Mas a pessoa A não é culpada de nada, pois apenas sugeriu à pessoa B que atirasse no prefeito. Afinal, a pessoa B é responsável por suas próprias ações.
Rothbard continua:
se a vontade é livre, então nenhum homem é determinado por outro; então, só porque alguém grita “taca fogo”, ninguém que ouve esse conselho é compelido ou determinado a ir e seguir a sugestão. Qualquer pessoa que siga o conselho é responsável por suas próprias ações e o único responsável. Portanto, o “incitador” não pode ser responsabilizado de forma alguma. Na natureza do homem e na moralidade, não existe crime como “incitação à rebelião” e, portanto, o próprio conceito de tal “crime” deve ser eliminado da legislação.
Finalmente, Rothbard observa que as leis de incitamento também são prejudiciais porque são um ataque direto ao direito natural à liberdade de expressão:
Reprimir o “incitamento ao motim”, então, é simplesmente e puramente reprimir o direito natural e crucial de alguém à liberdade de expressão. A fala não é um crime. E, portanto, a injustiça, não apenas do crime de incitamento, mas também de outros “crimes” como “sedição criminosa” (crítica severa ao governo), ou “conspiração para defender a derrubada do governo” – em outras palavras, planejar algum dia exercer seu direito básico e natural à liberdade de expressão e defesa.
Uma década depois, Rothbard enfatizou a importância de rejeitar a noção de incitamento como crime em seu livro Por uma nova liberdade. Na seção intitulada “Liberdade de expressão”, ele escreve:
O que dizer, por exemplo, da “incitação à revolta”, na qual um indivíduo que se pronunciou é considerado culpado criminalmente por ter instigado uma turba que então se revoltou e cometeu diversos atos e crimes contra a pessoa e a propriedade? Em nosso ponto de vista, a “incitação” só pode ser considerada um crime se negarmos o livre arbítrio e a liberdade de escolha de todos os homens, e aceitarmos, que se A disser a B e C: “você e ele, vão em frente e provoquem distúrbios!”, de alguma maneira B e C estão inevitavelmente fadados a ir adiante e cometer o ato ilícito. No entanto, o libertário que acredita no livre arbítrio deve insistir que, por mais que seja imoral ou infeliz da parte de A defender um tumulto, sua atitude permanece restrita à esfera da defesa, e não deve estar sujeita a uma punição legal.
Mais tarde, em seu livro A ética da liberdade, Rothbard novamente faz observações muito semelhantes:
Suponha que Silva incite um grande número de pessoas: “Vão! Queimem! Pilhem! Matem!” e a multidão faça justamente isso, sem que Silva tenha algo a ver com estas atividades criminais. Já que todo homem é livre para seguir ou não qualquer linha de ação que ele queira, não podemos dizer que, de algum modo, Silva induziu os integrantes da multidão a realizarem suas atividades criminosas; nós não podemos fazer dele, por causa de sua incitação, o responsável pelos crimes deles. “Incitar um distúrbio”, portanto, é um mero exercício do direito de expressão de um homem sem, desse modo, implicar em crime. Por outro lado, é obvio que, caso ocorra de Silva envolver-se em um plano ou conspiração com outros para cometer diversos crimes, e que então Silva os ordene a prosseguir, ele então estaria tão implicado nos crimes tanto quanto os outros — ainda mais se ele for o mentor que lidera uma gangue criminosa. Esta é uma distinção que aparenta ser sutil, mas que na prática fica evidente — há uma enorme diferença entre o mentor de uma gangue criminosa e o orador numa tribuna improvisada durante um motim; o primeiro não é passível de ser acusado de algo além de um simples “incentivo”.
Esse problema está relacionado a um problema semelhante: transformar não-crimes como calúnia (ou seja, difamação) em crimes processáveis. Um “caluniador” pode dizer todo tipo de coisas. E, de fato, o respeito pela liberdade de expressão dita que permitamos que ele o faça. Afinal, as pessoas que ouvem o que ele tem a dizer permanecem completamente livres para tirar suas próprias conclusões sobre o que fazer com essa informação. Só porque alguém diz “sua irmã é uma prostituta”, não significa que devemos acreditar nele ou agir de acordo com essas palavras de uma maneira particular.
Na prática, as leis contra o incitamento e a difamação são muito perigosas para os direitos humanos básicos e ambas colocam as pessoas não violentas em risco legal apenas pelo “crime” de expressar opiniões. Essas leis são ataques diretos ao direito à liberdade de expressão. No caso de Trump e “incitamento”, ele expressou uma opinião sobre a eleição e encorajou as pessoas a “lutarem com afinco” de uma forma vaga e não específica. Se esse tipo de coisa é “criminoso”, então qualquer pessoa que expressar uma opinião de que as pessoas devem “resistir” ou “lutar” contra o regime – ou mesmo sugerir que o regime é ilegítimo ou digno de desacato – provavelmente será julgada toda vez que um de seus “amigos” de mídia social decide invadir um prédio público ou atirar uma pedra em um policial.
Artigo original aqui.
Confesso que ao ler a obra de Rothbard, esse assunto me deixou um pouco confuso. A linha parece muito tênue – e perigosa.
Expressar um desejo é diferente de convencer objetivamente outrem a praticar um determinado crime. Ao pagar, o mandante está utilizando uma persuasão monetária, mas um partícipe pode valer-se apenas da retórica.