Dias atrás eu quase sofri um acidente. Estava na rodovia, um carro perdeu o controle na minha frente e de repente eu me vi entrando numa bolha de silêncio, em que o tempo passava mais devagar e eu só pensava o suficiente para executar um passo após o outro, o necessário para desviar do veículo enquanto a outra parte do meu cérebro parecia estar em negação. Eu tinha, ao mesmo tempo, a certeza de que algo de muito ruim iria acontecer e a convicção de que aquilo não estava de fato ocorrendo, de que seria um sonho ou uma simulação.
O que aconteceu comigo neste dia foi insustentavelmente leve. Foi tão pungente e marcante, rompeu tão abruptamente um estado de normalidade que, ao não se encaixar no resto do sentido da minha vida de até então, acabou se transformando em uma memória solta, perdida, que não sei como interpretar ou para que acionar. Entendo assim o sentimento que Milan Kundera atribui ao modo de se lidar com a História em seu livro mais famoso.
Faz-se tanto escarcéu em torno da importância da memória para que se evite “os erros do passado”, usa-se tanto apelo emotivo ao se discutir períodos específicos da História, com a justificativa de que a lembrança da dor poupará as próximas gerações do mesmo sofrimento, mas quando o perigo de fato se aproxima, enxerga-se apenas um palmo à frente do rosto, esquece-se a perspectiva geral que o conhecimento historiográfico se propõe a oferecer.
Os inimigos da liberdade são os maiores enunciadores da lógica do aprimoramento humano pela compreensão do passado, por isso entoam reiteradamente o jargão “vai estudar história”. São os primeiros, contudo, a menosprezar os indícios de reincidência de tudo aquilo que tem a ver com controle arbitrário, centralização absoluta e homogeneização por segregação do diferente. Há uma fetichização da empatia pelos homens do passado, enquanto os que sofrem nas mãos dos árbitros carrascos de suas sortes nos dias de hoje são, não só ignorados, como condenados.
A estética da solidariedade é suficiente para garantir a esses fetichistas uma boa noite de sono perante os males de que são cúmplices. Para eles a História serve ao prazer de se sentirem os mártires que discordam — ou discordariam — de um eventual sistema tirânico. Ela já não pertence mais à realidade, e sim a um universo distante, onírico, quase saudosista, e tornou-se por isso leve demais. Ela tem o peso do desfecho icônico de uma obra literária ou filme: mexe pontualmente com o emocional, agulha as entranhas, mas pertence a um cosmos tão específico, que não interfere no desenrolar de nossas atividades práticas. Esse tiranete vê o passado como uma caricatura, e por isso não nota correspondências com a História. Ele a analisa de modo literal, não sabe interpretar e fazer analogias.
Os “heróis” de hoje refugiam-se em suas casas e assistem calados ou na torcida enquanto as necessidades particulares do outro são destroçadas em nome de uma segurança que ninguém mais sabe dizer contra o quê, pois muda seu alvo de hora em hora e destrói tudo que há de mais elevado em nome da preservação de algumas efemeridades. Eles proferem xingamentos horríveis àqueles que questionam as medidas impostas e exigem seu apartamento imediato da sociedade, punições severas e sua identificação como malfeitores, em um ato quase sem precedentes de assassinato das individualidades, e não reconhecem, sequer por um segundo, a semelhança com tempos pretéritos. Isso quando não denunciam os ou caçoam dos que tentam apontar essas equivalências.
Executam as ordens que recebem sem um segundo de reflexão e juram de pés juntos que o estudo da história os ensinou a questionar. São convencidos de que há heroísmo em viver eternamente como debilitados e vulneráveis, tratando todos em volta como perigosos e repugnantes enfermos. De que são intrépidos defensores dos oprimidos pelo ato de bravura que é evitar qualquer forma de infecção e contágio e de tentar a todo custo preservar seus corpos de um jeito contraproducente. Para compensar tal acovardamento, lembram-se com orgulho dos gritos coléricos que dirigiriam contra algum déspota histórico se este contasse com a desventura de ter, eventualmente, cruzado seus caminhos.
Choram revoltados ao assistir a filmes em que pessoas são abandonadas em nome de um conforto ou segurança dos que seguem em frente, mas quando voltam à realidade presente testemunham calados nações inteiras, que foram criadas sob o princípio da liberdade como lei natural, prenderem possíveis transmissores de uma doença eventualmente letal, e riem-se dos que presumem qualquer relação com um despotismo ou com um mundo kafkiano. Não percebem semelhanças com as retratações artísticas ou contextos passados, muito menos distinguem o senso de proporção.
Eles foram convencidos de que já fazem sua parte ao seguir ordens. Seu cérebro é alimentado passivamente com a dose de adrenalina suficiente para se sentir intrépidos em uma batalha, sem nem mesmo ter que procurar saber quem são as partes na luta. Eles taxam os apologistas da liberdade de egoístas, enquanto defendem uma falha teoria do bem coletivo e uma falsa virtude da igualdade, com o fim único de garantir sua paz de espírito. Eles oferecem ao outro o que querem oferecer e não o que o outro pede e precisa e nem procuram aprofundar-se na compreensão dos resultados e motivações de suas ações.
Assim como sua inércia no presente é fruto da obediência a ordens, sua interpretação do passado resulta da submissão à narrativa que está na moda, o que gera uma empatia seletiva com personagens históricos e uma notabilização discrepante de determinados contextos. Essa seletividade se dá também no presente. Atentam-se aos males que os fazem atentar-se, enquanto chegam ao ponto de escarnir os que sofrem pelos motivos “errados”.
Seu senso de justiça é também arbitrário e não baseado em qualquer pilar sólido. Praticamente condenam à pena capital aqueles que questionam sua instrumentalização da história, ou suas propostas de construção da sociedade, enquanto esmagam violentamente a realidade, passada ou presente, a fim de continuarem propagando seu viés do passado e seus mecanismos de seleção dos que são dignos de aceitação e amparo.
Contudo, não se alarmem! Quando o homem do bigodinho reencarnar, eles garantem que serão os primeiros a levantar-se para criticá-lo! Mas ele tem que estar reconhecível, hein? Em carne, osso e uniforme militar. Não serve nem a semelhança uma vez representada por certo ator de cinema mudo. A capacidade deles de abstração não será suficiente para romper as barreiras de um imaginário tão aplainado. Enquanto esperamos esse retorno, nós acordamos todas as manhãs metamorfoseados num inseto gigantesco e torcemos para que não passe de um sonho, e aguardamos ansiosamente o dia em que tudo se tornará leve.
Enquanto eu estava naquele carro em movimento, o instinto de sobrevivência me tornou apática ao que acontecia em volta, conferindo-me reação suficiente para olhar apenas o milímetro seguinte do caminho que precisava traçar para subsistir. Tenho medo de ser esse o futuro, de ficarmos tão atônitos com o que se passa ao nosso redor que o próximo passo é tornar-nos meio esmaecidos, com atividade apenas suficiente para manter o organismo vivo, sem mente, sem alma. Assim como o Gregor Samsa, seguiremos a vida fingindo ignorar a monstruosidade insustentável que se operou nela.
Muito bom, texto suave…
Um dos grandes problemas da história não é a sua politização, pois todos fazem isso. A questão é que a história – a acadêmica, principalmente -, ou fato histórico, tornou-se totalmente fechada a revisionismos. Existem é claro aqueles supostos historiadores que supostamente fazem uma nova interpretação, mas unicamente para reafirmar os mesmos pontos de vista anteriores, apenas de uma outra perspectiva, pois é sempre necessário trazer “novidades”.
Se o conhecimento histórico se constrói nestas bases terminativas, ele deixa de ser uma reflexão sobre o passado, tornando-se puramente instrumental, ou seja, tornando-se um simples almanaque. Todo o ano é a mesma coisa, de maneira que os fatos tornam-se somente repetição. E isso, casualmente, acontece em pontos chave na forma como a sociedade constrói o seu inconsciente.
Como você bem notou, o cara de bigodinho poderia reencarnar em um Youtuber que ninguém notaria a diferença (com ou sem uniforme), afinal, um nazista tem uma suástica no braço. Sem suástica não é nazista, mesmo considerando que um nazista moderno evita associação com esse símbolo. Só um cosplay faz isso: vestir-se como se fosse invadir a Polônia a qualquer momento.
Os nazistas levaram aproximadamente 5 anos de um trabalho metódico até se sentirem com confiança para perseguir os judeus publicamente, considerando o início oficial com a noite dos cristais em 1938 (antes disso, Hitler em pessoa providenciou que alguns judeus de sua estima fossem levados em segurança para fora da Alemanha). Os nazicovidianos em pouco mais de um ano, já tem campos de concentração para chamar de seu.
Quando o cérebro se desliga de realidade, a hipocrisia se torna uma necessidade de auto preservação!
da* realidade
Perfeito, desde que a Covidocracia foi instaurada, ficou óbvio que todo o teatro de “Hitler isso” e “fascistas aquilo” que se vê entre os seres iluminados não passa de uma espécie de ritual roto, sem significado objetivo, e absolutamente inútil para identificar qualquer autoritarismo que não esteja acompanhado de bigodinho e suástica.