Capitalismo versus Estatismo

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Desde o início, enfrentamos graves problemas com o termo “capitalismo”. Quando percebemos que a palavra foi cunhada pelo inimigo mais famoso do capitalismo, Karl Marx, não é surpresa nenhuma que um analista neutro ou pró-“capitalista” possa achar o termo impreciso. Pois capitalismo tende a ser um conceito genérico, uma palavra-valise que os marxistas aplicam a virtualmente todas as sociedades na face do globo, com exceção de alguns possíveis países “feudais” e as nações comunistas (embora, é claro, os chineses considerem a Iugoslávia e a Rússia “capitalista”, enquanto muitos trotskistas incluiriam a China também como capitalista). Os marxistas, por exemplo, consideram a Índia como um país “capitalista”, mas a Índia, atormentada por uma vasta e monstruosa rede de restrições, castas, regulamentos estatais e privilégios de monopólio, está tão longe do capitalismo de livre mercado quanto se pode imaginar.[1]

Se quisermos manter o termo “capitalismo”, então, devemos distinguir entre “capitalismo de livre mercado” por um lado e “capitalismo de estado” por outro. Os dois são tão diferentes quanto o dia e a noite em sua natureza e consequências. O capitalismo de livre mercado é uma rede de trocas livres e voluntárias em que os produtores trabalham, produzem e trocam seus produtos pelos produtos de outros por meio de preços voluntariamente acertados. O capitalismo de estado consiste em um ou mais grupos que fazem uso do aparato coercitivo do governo – o Estado – para acumular capital para si próprios expropriando a produção de outros pela força e violência.

Ao longo da história, os estados existiram como instrumentos de predação e exploração organizada. Não importa muito qual grupo de pessoas ganhe o controle do Estado em determinado momento, sejam déspotas orientais, reis, proprietários de terras, mercadores privilegiados, oficiais do exército ou partidos comunistas. O resultado é sempre e em toda parte o despojamento coercitivo da massa dos produtores – na maioria dos séculos, é claro, principalmente o campesinato – por uma classe dominante de governantes dominantes e sua burocracia profissional contratada. Geralmente, o Estado tem seu início no banditismo e na conquista, após os quais os conquistadores se estabelecem entre a população subjugada para exigir tributos permanentes e contínuos na forma de “tributação” e para repartir as terras dos camponeses em grandes extensões entre os senhores da guerra conquistadores, que então procedem para extrair “aluguel”. Um paradigma moderno é a conquista espanhola da América Latina, quando a conquista militar do campesinato indígena nativo levou ao parcelamento das terras indígenas às famílias espanholas e ao estabelecimento dos espanhóis como classe dominante permanente sobre o campesinato nativo.

Para tornar seu domínio permanente, os governantes do Estado precisam induzir suas massas súditas a concordar com pelo menos a legitimidade de seu domínio. Para tanto, o Estado sempre convocou um corpo de intelectuais para fazer apologia à sabedoria e à necessidade do sistema existente. A apologia difere ao longo dos séculos; às vezes é o sacerdócio usando mistério e ritual para dizer aos súditos que o rei é divino e deve ser obedecido; às vezes são os progressistas keynesianos usando sua própria forma de mistério para dizer ao público que os gastos do governo, embora aparentemente improdutivos, ajudam a todos, aumentando o PIB e energizando o “multiplicador” keynesiano. Mas em todos os lugares o propósito é o mesmo – justificar o sistema existente de domínio e exploração para a população subjugada; e em todos os lugares os meios são os mesmos – os governantes do estado compartilhando seu domínio e uma parte de seu butim com seus intelectuais. No século XIX, os intelectuais, os “socialistas monárquicos” da Universidade de Berlim, orgulhosamente declararam que sua principal tarefa era servir como “guarda-costas intelectual da Casa de Hohenzollern”. Esta sempre foi a função dos intelectuais da corte, do passado e do presente – servir como guarda-costas intelectual de sua classe dominante particular.

Em um sentido profundo, o livre mercado é o método e a sociedade “naturais” ao homem; ele pode e, portanto, surge “naturalmente”, sem um elaborado sistema intelectual para explicá-lo e defendê-lo. O camponês iletrado conhece em seu coração a diferença entre trabalho árduo e produção, de um lado, e predação e expropriação, do outro. Portanto, sem ser molestado, tende a crescer uma sociedade de agricultura e comércio onde cada homem trabalha na tarefa em que é mais adequado às condições da época, e então troca seu produto pelos produtos de outros. O camponês cultiva o trigo e troca-o pelo sal de outros produtores ou pelos sapatos do artesão local. Se surgirem disputas sobre propriedades ou contratos, os camponeses e aldeões levam seu problema aos sábios da área, às vezes os mais velhos da tribo, para arbitrar sua disputa.

Existem numerosos exemplos históricos do crescimento e desenvolvimento de uma sociedade de mercado puramente livre. Dois podem ser mencionados aqui. Uma delas é a feira de Champagne, que durante centenas de anos na Idade Média foi o maior centro de comércio internacional da Europa. Vendo a importância das feiras, os reis e barões as deixaram sem serem molestadas, não tributadas e nem regulamentadas, e quaisquer disputas que surgiram nas feiras foram resolvidas em uma das muitas cortes voluntárias concorrentes, mantidas pela igreja, nobres e pelos próprios mercadores. Um exemplo mais abrangente e menos conhecido é a Irlanda celta, que por mil anos manteve uma florescente sociedade de livre mercado sem um Estado. A Irlanda foi finalmente conquistada pelo Estado inglês no século XVII, mas o fato da Irlanda não possuir um Estado, a ausência de um canal governamental para transmitir e fazer cumprir as ordens e ditames dos conquistadores, atrasou a conquista por séculos.[2]

As colônias americanas foram abençoadas com uma corrente de pensamento libertário individualista que conseguiu suplantar o autoritarismo calvinista, uma corrente de pensamento herdada dos radicais libertários e antiestatistas da Revolução Inglesa do século XVII. Essas ideias libertárias foram mais capazes de se firmar nos Estados Unidos do que na metrópole, devido ao fato de que as colônias americanas eram em grande parte livres do monopólio feudal de terras que governava a Grã-Bretanha.[3] Mas, além dessa ideologia, a ausência de um governo central em muitas das colônias permitiu o surgimento de uma sociedade de livre mercado “natural” e inconsciente, destituída de qualquer domínio político. Isso foi particularmente verdadeiro para três colônias. Um foi Albemarle, no que mais tarde se tornou o nordeste da Carolina do Norte, onde nenhum governo existiu por décadas até que a Coroa inglesa concedeu a gigantesca concessão de terras para a Carolina em 1663. Outro exemplo mais proeminente foi Rhode Island, originalmente uma série de assentamentos anarquistas fundados por grupos de refugiados da autocracia da Baía de Massachusetts. Finalmente, um conjunto peculiar de circunstâncias trouxe o anarquismo individualista efetivo para a Pensilvânia por cerca de uma década entre 1680 e 1690.[4]

Enquanto a sociedade puramente livre e laissez-faire surge sem autoconsciência, onde as pessoas têm rédea solta para exercer suas energias criativas, o estatismo tem sido o princípio dominante ao longo da história. Onde o despotismo estatal já existe, então a liberdade só pode surgir de um movimento ideológico autoconsciente que trava uma luta prolongada contra o estatismo e revela à massa do público a falha grave em sua aceitação da propaganda das classes dominantes. O papel deste movimento “revolucionário” é mobilizar as várias categorias das massas oprimidas e dessanctificar e deslegitimar o domínio do Estado na opinião delas.

A glória da civilização ocidental foi que na Europa Ocidental, nos séculos XVII e XVIII, pela primeira vez na história, surgiu um movimento autoconsciente em grande escala, determinado e pelo menos parcialmente bem-sucedido, para libertar os homens das algemas restritivas do estatismo. À medida que a Europa Ocidental tornou-se progressivamente enredada em uma teia coercitiva de restrições feudais e corporativas, e de monopólios e privilégios estatais com o rei funcionando como senhor feudal, o movimento de libertação surgiu com o objetivo consciente de liberar as energias criativas do indivíduo, de possibilitar uma sociedade de homens livres para substituir a repressão congelada da velha ordem. Os Levellers e os Commonwealthmen e John Locke na Inglaterra, os philosophes e os fisiocratas na França inauguraram a Revolução Moderna em pensamento e ação que finalmente culminou nas Revoluções Americana e Francesa no final do século XVIII.

Esta revolução foi um movimento em nome da liberdade individual, e todas as suas facetas eram essencialmente derivações desse axioma fundamental. Na religião, o movimento enfatizou a separação entre Igreja e Estado, ou seja, o fim da tirania teocrática e o advento da liberdade religiosa. Nas relações exteriores, esta foi uma revolução em nome da paz internacional e o fim das guerras incessantes em nome da conquista do Estado e da glória para a elite dominante. Politicamente, foi um movimento para despojar a classe dominante de seu poder absoluto, para reduzir totalmente o escopo do governo e colocar todo o governo que permanecesse sob o controle da escolha democrática e de eleições frequentes. Economicamente, o movimento enfatizou a liberação das energias produtivas do homem dos grilhões governamentais, para que os homens pudessem trabalhar, investir, produzir e trocar sempre que desejassem. O famoso clamor ao poder foi o laissez faire: deixe-nos ser, deixe-nos trabalhar, produzir, comerciar, mudar de uma jurisdição ou país para outro. Deixe-nos viver, trabalhar e produzir sem ser obstruídos por impostos, controle, regulamentos ou privilégios monopolísticos. Adam Smith e os economistas clássicos foram apenas o grupo economicamente mais especializado desse amplo movimento de libertação.

Foi o sucesso parcial desse movimento que libertou a economia de mercado e, assim, deu origem à Revolução Industrial, provavelmente o evento mais decisivo e mais libertador dos tempos modernos. Não foi por acaso que a Revolução Industrial na Inglaterra emergiu, não na Londres dominada por corporações e controlada pelo Estado, mas nas novas cidades e áreas industriais que surgiram no antes rural e, portanto, não regulamentado norte da Inglaterra. A Revolução Industrial não poderia chegar à França até que a Revolução Francesa libertasse a economia dos grilhões do senhorio feudal e das inúmeras restrições locais ao comércio e à produção. A Revolução Industrial libertou as massas humanas de sua extrema pobreza e desesperança – uma pobreza agravada por uma população crescente que não conseguia encontrar emprego na economia estática da Europa pré-industrial. A Revolução Industrial, a conquista do capitalismo de livre mercado, significou uma melhoria contínua e rápida nas condições de vida e na qualidade de vida para as grandes massas de pessoas, tanto para trabalhadores quanto para consumidores, onde quer que o impacto do mercado fosse sentido.

Uma área subdesenvolvida e escassamente povoada originalmente, a América não começou como o principal país capitalista. Mas depois de um século de independência alcançou essa eminência, e por quê? Não, como diz o mito comum, por causa de recursos naturais superiores. Os recursos do Brasil, da África, da Ásia, são pelo menos tão grandes. A diferença veio por causa da relativa liberdade nos Estados Unidos, porque foi aqui que a economia de livre mercado, mais do que em qualquer outro país, teve sua liderança permitida. Começamos livres de uma classe de proprietários feudais ou monopolizantes, e começamos com uma ideologia fortemente individualista que permeava grande parte da população. Obviamente, o mercado nos Estados Unidos nunca foi completamente livre ou desimpedido; mas sua liberdade relativamente maior (em relação a outros países ou séculos) resultou na enorme liberação de energias produtivas, o enorme equipamento de capital e o padrão de vida sem precedentes elevado que a massa dos americanos não apenas desfruta, mas considera alegremente como garantido. Vivendo no colo de um luxo que não poderia ter sido sonhado pelo mais rico imperador do passado, estamos todos agindo cada vez mais como o homem que matou a galinha dos ovos de ouro.

E assim temos uma massa de intelectuais que habitualmente zombam do “materialismo” e dos “valores materiais”, que proclamam absurdamente que estamos vivendo em uma “era pós-escassez” que permite uma cornucópia ilimitada de produção sem exigir que ninguém trabalhe ou produza, que ataquem nossa riqueza indevida como algo pecaminoso em uma recriação perversa de uma nova forma de puritanismo. A ideia de que nossa máquina de capital é automática e autoperpetuadora, de que o que quer que seja feito ou não feito para ela não importa porque continuará perpetuamente – isto é o fazendeiro destruindo cegamente a galinha dos ovos de ouro. Já começamos a sofrer com a decadência dos bens de capital, com as restrições e impostos e privilégios especiais que cada vez mais se impõem à máquina industrial nas últimas décadas.

Infelizmente, tornamos cada vez mais relevante a terrível advertência do filósofo espanhol Ortega y Gasset, que analisou o homem moderno como

    ao encontrar-se com esse mundo técnica e socialmente tão perfeito, crê que o produziu a natureza, e não pensa nunca nos esforços geniais de indivíduos excelentes que supõe sua criação. Menos ainda admitirá a ideia de que todas estas facilidades continuam apoiando-se em certas difíceis virtudes dos homens, dos quais o menor malogro volatilizaria rapidissimamente a magnífica construção.

Ortega afirmava que o “homem massa” tinha um traço fundamental: ” radical ingratidão a tudo quanto tornou possível a facilidade de sua existência”. Essa ingratidão é o ingrediente básico da “psicologia da criança mimada”. Como Ortega declara:

    Herdeiro de um passado extensíssimo e genial … o novo vulgo tem sido mimado pelo mundo circunstante … as novas massas encontram uma paisagem cheia de possibilidades e além disso segura, e tudo isso presto, a sua disposição, sem depender de seu prévio esforço, como achamos o sol no alto… Estas massas mimadas são suficientemente pouco inteligentes para crer que essa organização material e social, posta a sua disposição como o ar, é de sua própria origem, já que tampouco falha, ao que parece, e é quase tão perfeita como a natural.

Como não veem nas vantagens da civilização um invento e construção prodigiosos, que só com grandes esforços e cautelas se pode sustentar, creem que seu papel se reduz a exigi-las peremptoriamente, como se fossem direitos nativos. Nos motins que a escassez provoca costumam as massas populares buscar pão, e o meio que empregam costuma ser destruir as padarias. Isto pode servir como símbolo do comportamento que em mais vastas e sutis proporções usam as massas atuais ante a civilização que as nutre.[5]

Em uma época em que incontáveis ​​números de intelectuais irresponsáveis ​​clamam pela destruição da tecnologia e o retorno a uma “natureza” primitiva que só poderia resultar na morte por fome da esmagadora maioria da população mundial, é instrutivo relembrar a conclusão de Ortega:

    A civilização não está aí, não se sustenta a si mesma. É artifício e requer um artista ou artesão. Se o senhor quer aproveitar-se das vantagens da civilização, mas não se preocupa de sustentar a civilização…, o senhor está enfarado. A três por dois o senhor fica sem civilização. … Como se houvessem recolhido uns tapetes que tapavam a pura Natureza, reaparece repristinada a selva primitiva. A selva sempre é primitiva. E vice-versa. Tudo que é primitivo é selva.[6]

O declínio constante nos alicerces de nossa civilização começou no final do século XIX e se acelerou durante a Primeira e Segunda Guerras Mundiais e na década de 1930. O declínio consistiu em um recuo acelerado da Revolução e em uma mudança de volta à velha ordem de mercantilismo, estatismo e guerra internacional. Na Inglaterra, o capitalismo laissez-faire de Price e Priestly, dos Radicais e de Cobden e Bright e a escola de Manchester foi substituído por um estatismo conservador que conduzia ao Império agressivo e à guerra contra outras potências imperiais. Nos Estados Unidos, a história era a mesma, à medida que os empresários recorriam cada vez mais ao governo para impor cartéis, monopólios, subsídios e privilégios especiais. Aqui, como na Europa Ocidental, o advento da Primeira Guerra Mundial foi o grande ponto de inflexão – no agravamento da imposição do militarismo e do planejamento econômico governamental e empresarial em casa, e da expansão imperial e intervenção no exterior. As guildas medievais foram restabelecidas em uma nova forma – a dos sindicatos com sua rede de restrições e seu papel como parceiros menores do governo e da indústria no novo mercantilismo. Todas as armadilhas despóticas da velha ordem voltaram em uma nova forma. Em vez do monarca absoluto, temos o Presidente dos Estados Unidos, com muito mais poder do que qualquer monarca do passado. Em vez de uma nobreza constituída, temos um establishment de riqueza e poder que continua a nos governar, independentemente de qual partido político esteja tecnicamente no poder. O crescimento de um serviço público bipartidário, de uma política interna e externa bipartidária, o advento de técnicos de poder que parecem ocupar cargos de comando independentemente de como votamos (os Achesons, os Bundys, os Baruchs, os McCloys, os J. Edgar Hoovers), todos ressaltam nosso crescente domínio por uma elite que fica cada vez mais rica e mais privilegiada com os impostos que consegue arrancar do povo.

O resultado da rede piorada de encargos e restrições mercantilistas tem sido colocar nossa economia sob uma pressão cada vez maior. Altos impostos pesam sobre todos nós, e o complexo militar-industrial significa um enorme desvio de recursos, de capital, tecnologia e de cientistas e engenheiros, de usos produtivos para o desperdício cavalar da máquina militar. Indústria após indústria foi regulamentada e cartelizada entrando em declínio: ferrovias, energia elétrica, gás natural e telefonia são os exemplos mais óbvios. A habitação e a construção foram afetadas pela praga dos altos impostos sobre a propriedade, restrições de zoneamento, códigos de construção, controles de aluguel e proteção sindical. À medida que o capitalismo de livre mercado foi substituído pelo capitalismo de estado, mais e mais nossa economia começou a decair e nossas liberdades a se erodir.

Na verdade, é instrutivo fazer uma lista das áreas problemáticas universalmente reconhecidas de nossa economia e nossa sociedade, e descobriremos, percorrendo essa lista, um leitmotiv gritante comum: o governo. Em todas as áreas mais problemáticas, a operação ou controle do governo tem sido especialmente visível.

Vamos considerar:

  • Política externa e guerra: exclusivamente governamental.
  • Alistamento militar obrigatório: exclusivamente governamental.
  • Crime nas ruas: a polícia e os juízes são monopólio do governo, e as ruas também.
  • Sistema de bem-estar social: O problema está no bem-estar social do governo; não há nenhum problema especial nas agências de previdência privada.
  • Poluição da água: O lixo de propriedade do município é despejado em rios e oceanos do governo.
  • Correios: as falhas estão nos Correios de propriedade do governo, não, por exemplo, entre concorrentes privados de grande sucesso como pacotes entregues em ônibus e o Sistema Postal Independente da América, para correio de terceira classe.
  • O complexo militar-industrial: baseia-se inteiramente em contratos governamentais.
  • Ferrovias: subsidiadas e fortemente regulamentadas pelo governo por um século.
  • Telefone: um privilégio monopolista governamental.
  • Gás e eletricidade: um privilégio monopolista governamental.
  • Habitação: prejudicada por controles de aluguel, impostos de propriedade, leis de zoneamento e programas de renovação urbana (todos governamentais).
  • Excesso de rodovias: todas construídas e pertencentes ao governo.
  • Restrições e greves sindicais: o resultado do privilégio do governo, principalmente no Wagner Act de 1935.
  • Tributação elevada: exclusivamente governamental.
  • As escolas: quase todas governamentais, ou se não diretamente, fortemente subsidiadas e regulamentadas pelo governo.
  • Escutas telefônicas e invasão das liberdades civis: quase todas feitas pelo governo.
  • Dinheiro e inflação: o sistema monetário e bancário está totalmente sob controle e manipulação do governo.

Examine as áreas problemáticas e, em toda parte, como um rastro vermelho, está a mancha arrogante do governo. Em contraste, considere a indústria do frisbee. Frisbees são produzidos, vendidos e comprados sem dores de cabeça, sem convulsões, sem transtornos em massa ou protestos. Como uma indústria relativamente livre, o pacífico e produtivo negócio de frisbee é um modelo do que a economia americana já foi e pode vir a ser novamente – se for libertada das algemas repressivas do grande governo.

Em A Sociedade Afluente, escrito no final dos anos 1950, John Kenneth Galbraith apontou o fato de que as áreas governamentais são nossas áreas problemáticas. Mas sua explicação foi que “esfomeamos” o setor público e, portanto, deveríamos ser tributados mais pesadamente para ampliar ainda mais o setor público às custas do privado. Mas Galbraith ignorou o fato gritante de que a proporção da renda nacional e dos recursos dedicados ao governo tem se expandido enormemente desde a virada do século. Se os problemas não surgiram antes, e têm aparecido cada vez mais precisamente no setor governamental ampliado, é sensato concluir que talvez o problema esteja no próprio setor público. E essa é precisamente a afirmação do libertário de livre mercado. Problemas e panes são inerentes às operações do setor público e do governo em geral. Sem estar submetido a um teste de lucros e prejuízos para medir a produtividade e a eficiência, a esfera do governo transfere o poder de tomada de decisão das mãos de cada indivíduo e grupo cooperante e coloca esse poder nas mãos de uma máquina governamental geral. Essa máquina não é apenas coerciva e ineficiente; é necessariamente ditatorial porque, qualquer que seja a decisão que tome, sempre há minorias ou maiorias cujos desejos e escolhas foram anulados. Uma escola pública deve tomar uma decisão em cada área: deve decidir se vai ser disciplinada ou progressiva ou uma combinação das duas; se vai ser pró-capitalista, pró-socialista ou neutra; se vai ser integrada ou segregada, elitista ou igualitária, e assim por diante. Seja o que for que decida, existem cidadãos que estão permanentemente desfavorecidos. Mas no livre mercado, os pais são livres para patrocinar quaisquer escolas privadas ou voluntárias que desejarem, e diferentes grupos de pais poderão então exercer sua escolha sem entraves. O livre mercado permite que cada indivíduo e grupo maximize sua gama de opções, tome suas próprias decisões e escolhas e as coloque em prática.

É irônico que o professor Galbraith não pareça estar muito feliz com o setor público como ele tem se manifestado ultimamente: no complexo militar-industrial, na guerra do Vietnã, no que o próprio Galbraith ridicularizou apropriadamente como o “Socialismo do Grande Capital.” Mas se o glorioso setor público, se o governo expandido, nos trouxe a esse belo estado de coisas, talvez a resposta seja fazer o governo retroceder, retornar ao caminho verdadeiramente revolucionário de desmantelar o Grande Estado.

Na verdade, os esquerdistas americanos – que por décadas foram os principais arautos e apologistas do grande governo e do Estado de bem-estar social – estão cada vez mais infelizes com os resultados de seus próprios esforços. Pois, assim como nos dias do despotismo oriental, o domínio do estado não conseguiu durar muito tempo sem um corpo de intelectuais para inverter os argumentos e a racionalização de modo a obter o apoio e o senso de legitimidade entre o público, os esquerdistas (a esmagadora maioria dos intelectuais americanos) têm servido desde o New Deal como os celebrantes do grande governo e do bem-estar social. Mas muitos esquerdistas estão começando a perceber que estão no poder moldando a sociedade americana há quatro décadas e está claro para eles que algo deu radicalmente errado. Após quatro décadas de estado de bem-estar social em casa e “segurança coletiva” no exterior, as consequências do esquerdismo do New Deal viram inegavelmente colapsos e conflitos agravados em casa e guerra perpétua e intervenção no exterior. Lyndon Johnson, com quem os esquerdistas ficaram extremamente infelizes, referiu-se corretamente a Franklin Roosevelt como seu “grande padrinho” – e a ascendência em todas as frentes estrangeiras e domésticas era bastante clara. Richard Nixon dificilmente se distingue de seu antecessor. Se muitos esquerdistas se tornaram estranhos e temerosos em um mundo que criaram, então talvez a falha esteja precisamente no próprio esquerdismo.

Se, então, deve haver um retrocesso do estatismo, terá de haver outra revolução ideológica que corresponda à ascensão dos radicais clássicos dos séculos XVII e XVIII. Os intelectuais terão que mudar, em grande parte, de seu papel de apologistas do Estado para retomar sua função de defensores dos padrões da verdade e da razão em oposição ao status quo. Nos últimos anos, houve sinais de desencanto por parte dos intelectuais, mas a mudança foi em grande parte errada. Como resultado, na atual divisão entre esquerdistas e radicais entre a intelligentsia, nenhum dos lados nos fornece os requisitos de civilização, com os requisitos para manter uma ordem industrial próspera e livre. Os esquerdistas nos ofereceram a racionalidade espúria do serviço tecnocrático ao Estado Leviatã de se encaixar como engrenagens manipuladas na máquina industrial governamental burocrática. A solução do esquerdismo para todos os problemas internos é taxar e inflacionar mais e alocar mais fundos federais; sua solução para as crises externas é “enviar fuzileiros navais” (acompanhados, é claro, de planejadores político-econômicos para aliviar a destruição que os fuzileiros navais causam). Certamente não podemos continuar a aceitar as soluções propostas por um esquerdismo que fracassou manifestamente. Mas a tragédia é que os radicais tomaram os esquerdistas pelo seu valor nominal: identificando a razão, a tecnologia e a indústria com a atual ordem esquerdista-mercantilista, os radicais, para rejeitar o sistema atual, viraram as costas as virtudes anteriores necessárias também.

Em suma, os radicais, sentindo-se forçados a uma rejeição visceral do mundo do esquerdismo, do Vietnã e do sistema de escolas públicas, adotaram a própria identificação dos esquerdistas de seu próprio sistema com a razão, a indústria e a tecnologia. Daí os radicais rejeitarem veementemente a razão em nome das emoções e do misticismo vago, da racionalidade pela espontaneidade incipiente e caprichosa, do trabalho e da previsão pelo hedonismo e abandono, da tecnologia e da indústria pelo retorno à “natureza” e a tribo primitiva. Ao fazer isso, ao adotar esse niilismo generalizado, os radicais estão nos oferecendo uma solução ainda menos viável do que seus inimigos esquerdistas. Pelo assassinato de milhões no Vietnã, eles iriam, na verdade, substituir a morte por fome da vasta maioria da população mundial. A visão dos radicais não pode ser aceita por pessoas sãs, e a maior parte dos americanos, não obstante sua ignorância ou erros, são astutos o suficiente para reconhecer esse fato e tornar alta, clara e às vezes brutal sua rejeição aos radicais e sua ética, sociedade e estilo de vida alternativas.

O ponto deste ensaio é que o público não precisa ser forçado a escolher entre a alternativa do esquerdismo monopolista de estado de guerra repressiva e sufocante, por um lado, ou o retorno irracional e niilista ao primitivismo tribal, por outro. A alternativa radical evidentemente não é compatível com uma vida próspera e uma civilização industrial; isso é muito claro. Mas menos claro é o fato de que o esquerdismo estatal corporativo também não é compatível com uma civilização industrial a longo prazo. Uma rota oferece à nossa sociedade um suicídio rápido; a outra, um assassinato lento e prolongado.

Existe, então, uma terceira alternativa – aquela que ainda não foi observada em meio ao grande debate entre esquerdistas e radicais. Essa alternativa é retornar aos ideais e à estrutura que gerou nossa ordem industrial e que é necessária para sua sobrevivência a longo prazo – retornar ao sistema que nos trará indústria, tecnologia e prosperidade que avançam rapidamente sem guerra, militarismo, ou a sufocante burocracia governamental. Esse sistema é o capitalismo laissez-faire, o que Adam Smith chamou de “o sistema natural de liberdade”, um sistema que se baseia em uma ética que incentiva a razão, propósito e realização individuais. Os teóricos libertários do século XIX – homens como os franceses da era da Restauração, Charles Comte e Charles Dunoyer, e o inglês Herbert Spencer – viram claramente que o militarismo e o estatismo são relíquias e retrocessos do passado, que são incompatíveis com o funcionamento de uma civilização industrial. É por isso que Spencer e os outros contrastaram o princípio “militar” com o “industrial” e julgaram que um ou outro teria que prevalecer.

O que estou sugerindo, em suma, nas categorias supersimplificadas popularizadas por Charles Reich, é um retorno à “Consciência I” – uma Consciência que é bruscamente rejeitada por Reich e seus leitores à medida que passam a tomar partido no grande debate entre a Consciência II e III. Para Reich, a Consciência I se tornou obsoleta com o crescimento da tecnologia moderna e da produção em massa, o que tornou inevitável a mudança para o estado corporativo. Mas aqui Reich não está sendo radical o bastante; ele está simplesmente adotando a historiografia progressista convencional de que o grande governo se tornou necessário devido ao crescimento da indústria em grande escala. Se estivesse familiarizado com economia, Reich perceberia que são precisamente as economias industriais avançadas que requerem um mercado livre para sobreviver e florescer; pelo contrário, uma sociedade agrícola pode caminhar indefinidamente sob o despotismo, desde que os camponeses tenham o suficiente de sua produção para sobreviver. Os países comunistas da Europa Oriental descobriram esse fato nos últimos anos; portanto, quanto mais eles se industrializam, maior e mais inexorável é seu movimento de afastamento do socialismo e do planejamento central em direção a uma economia de livre mercado. A rápida mudança dos países do Leste Europeu em direção ao livre mercado é um dos desenvolvimentos mais estimulantes e dramáticos das últimas duas décadas; no entanto, a tendência passou quase despercebida, pois a esquerda considera o afastamento do estatismo e igualitarismo na Iugoslávia e em outros países do Leste Europeu extremamente embaraçoso, enquanto os conservadores relutam em admitir que possa haver qualquer coisa de esperançoso em relação as nações comunistas.

Além disso, Reich claramente desconhece as descobertas de Gabriel Kolko e outros historiadores recentes que revisam completamente nosso quadro das origens do atual estado de bem-estar social e guerra. Longe de a indústria em grande escala forçar o reconhecimento de que a regulamentação e o grande governo eram inevitáveis, foi precisamente a eficácia da competição de livre mercado que levou os grandes empresários em busca do monopólio a recorrer ao governo para fornecer tais privilégios. Não havia nada na economia que objetivamente exigisse uma mudança da Consciência I para a Consciência II: apenas o antigo desejo dos homens por subsídio e privilégio especial criou a “contra-revolução” do estatismo. Na verdade, como vimos, esse desenvolvimento apenas prejudica e atrapalha o funcionamento da indústria moderna; a realidade objetiva exigiria um retorno à Consciência I. Neste mundo de mudanças notavelmente rápidas em valores e ideologias, tal mudança na consciência não pode ser descartada como impossível; coisas muito mais estranhas têm acontecido.

Em certo sentido, a adoção de valores e instituições libertários seria um retorno; em outro, seria um avanço profundo e radical. Pois, embora os libertários mais antigos fossem essencialmente revolucionários, eles permitiram que sucessos parciais os transformassem estrategicamente e taticamente em aparentes defensores do status quo, meros resistentes à mudança. Ao adotar essa postura, os primeiros libertários perderam sua perspectiva radical; pois o libertarianismo nunca chegou a existir totalmente. O que eles devem fazer é se tornar “radicais” mais uma vez, como Jefferson e Price e Cobden e Thoreau foram antes deles. Para fazer isso, eles devem erguer a bandeira de seu objetivo final, o triunfo final da lógica milenar dos conceitos de livre mercado, liberdade e direitos de propriedade privada. Esse objetivo final é a dissolução do Estado em organismo social, a privatização do setor público.

Em contraste com a visão disfuncional da Nova Esquerda, essa é uma meta totalmente compatível com o funcionamento de uma sociedade industrial – e também com a paz e a liberdade. Muitos dos libertários mais antigos não tinham coragem intelectual para prosseguir – para clamar pela vitória total em vez de se contentar com o triunfo parcial – para aplicar seus princípios aos campos da moeda, polícia, tribunais, o próprio Estado. Eles falharam em acatar a injunção de William Lloyd Garrison de que “gradualismo na teoria é perpétuo na prática”. Pois, se a teoria pura nunca é sustentada, como pode ser alcançada?

 

 

Artigo original aqui  

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Notas

[1] Para uma visão da Índia por economistas de livre mercado, consulte Peter T. Bauer, United States Aid and Indian Economic Development (Washington, D.C.: American Enterprise Association, 1959) e B.R. Shenoy, Indian Plann ing and Economic Development (Bombay e New York: Asia Publishing House, 1963).

[2] De maneira semelhante, os britânicos no final do século XIX tiveram grande dificuldade em estabelecer seu domínio sobre a tribo sem Estado e de livre mercado dos Ibos da África Ocidental. Sobre a Irlanda, consulte Joseph R. Peden, “Stateless Societies: Ancient Ireland,” The Libertarian Forum (abril de 1971) e as referências nele contidas.

[3] Sobre a herança ideológica da Grã-Bretanha, ver Bernard Bailyn, The Ideological Origins of the American Revolution (Cambridge, Mass.: Harvard University Press, 1967).

[4] Ver Murray N. Rothbard, “Individualist Anarchism in the United States: The Origins,” Libertarian Analysis (Winter 1970): 14-28.

[5] José Ortega y Gasset, A rebelião das massas (Nova York: W. W. Norton, 1932), pp. 63-65.

[6] Ibidem, pág. 97.

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