Libertarianismo e conceitos básicos da Filosofia Chinesa

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Um olhar mais aprofundado para os conceitos da filosofia chinesa se faz útil para a leitura das obras filosóficas da China nos próximos artigos.

O conceito de wu-wei, que tanto influenciou certos intelectuais durante o Iluminismo é, por vezes, mal interpretado quando não investigado a fundo. A tradução literal de wu-wei é não-ação, o que pode levar a entender que significa literalmente não agir, ausência de ação, mas, longe disso, wu-wei trata sobre agir não-coercivamente, agir sem forçar. Assim o termo aparece no Tao Te Ching:

Quando há ação não-forçosa [wu-wei], a boa ordem torna-se universal. (Capítulo 3)

O tao age não-coercivamente [wu-wei], e nada fica por fazer. (Capítulo 37)

O mais suave vence aquilo que é mais firme. O menos substancial penetra naquilo que é impenetrável. Nisto se reconhece o valor da ação não-coerciva [wu-wei]. O ensino sem palavras, o valor da ação não-coerciva [wu-wei]. (Capítulo 43)

Por isto um sábio disse: eu ajo sem forçar [wu-wei] e o povo muda por si mesmo. (Capítulo 57)

E no Zhuangzi como:

Por meio da não-interferência [wu-wei], ele será capaz de se adaptar às condições naturais de existência. E assim é que quem respeita o estado como seu próprio corpo está apto a apoiá-lo, e quem ama o estado como seu próprio corpo está apto a governá-lo.

E se eu puder evitar prejudicar minha economia interna e sobrecarregar meus poderes de visão e audição, sentado como um cadáver enquanto meu poder de dragão se manifesta ao redor, em profundo silêncio enquanto minha voz de trovão ressoa, os poderes do céu respondendo cada fase de minha vontade, visto que, sob a influência maleável da não-interferência [wu-wei], todas as coisas são trazidas à maturidade e prosperam – que tempo tenho então para me dedicar a governar o mundo? (Capítulo 11)

Entender o conceito de wu-wei é tão importante que se torna quase obrigatório para os comentaristas das obras taoístas falar sobre o seu significado para melhor guiar os leitores:

Uma das ideias mais famosas do taoísmo, e também a fonte de muito mal-entendido, é o wu-wei. Essa palavra, usada para descrever o sábio e muitas vezes traduzida como não-ação, dá a impressão que os sábios taoístas “não faziam nada”. Isso é impreciso, e não pode ser usado para descrever todos os taoístas. Wu-wei possuía diferentes significados para diferentes filósofos taoístas. O wu-wei do Tao Te Ching é diferente do wu-wei do Zhuangzi, que é diferente do wu-wei de Liezi.

Wu-wei no Tao Te Ching é “ir de acordo os princípios do tao”, e o caminho do tao é um caminho benevolente. Portanto, wu-wei no Tao Te Ching não é “não fazer nada”, não é nem a não-interferência defendida no Zhuangzi. No Tao Te Ching, wu-wei significa não usar força. O governante sábio que se importa com seus súditos de uma maneira não-intrusiva também pratica o wu-wei. Longe de não fazer nada, o sábio taoísta do Tao Te Ching é um membro ativo da sociedade e é apto para ser um rei.

  • Eva Wong, Taoísmo: Um Guia Essencial, 1997

Não apenas os autores taoístas – Laozi, Zhuangzi… – usam o termo com um diferente significado, como explicado acima, mas outras filosofias chinesas também usam o termo, o que acaba por contribuir para o mal-entendido.

Para saborear a deliciosa refeição que Laozi forneceu para a humanidade, precisamos entender o princípio básico de quase todos os sistemas filosóficos chineses. Esse pilar fundamental da filosofia chinesa é encontrado nos clássicos do pensamento oriental, notadamente no Tao Te Ching, nos Analectos de Confúcio, no Zhuangzi e até mesmo no texto indiano Bhagavad Gita.

Acredita-se que o pilar central desses clássicos, especialmente na China, tenha se originado de Laozi, e seu ensino essencial está velado no mistério da palavra chinesa wu-wei, que é o cerne da filosofia chinesa e um princípio predominante no pensamento oriental. Esta palavra está envolta em interpretações errôneas. A principal confusão surge da tradução confucionista de wei-wu-wei, que literalmente significa “fazer não-fazer”. Esta interpretação é construída sobre a filosofia de Confúcio de tentar instalar o tao eterno e sua virtude em nosso caráter como se fosse alguma atividade externa. Esta é a perspectiva completamente oposta ao ensino de naturalidade de Laozi. Traduzido para o inglês, wu-wei significa “não-fazer”, “não-ação” ou “ação sem esforço”. Essas traduções são literalmente corretas e nos levam à experiência psicológica intuitiva e definitiva de wu-wei. Esta experiência psicológica sem esforço significa “não forçar” ou “permitir”, um estado de “espontaneidade inteligente”.

  • Jason Gregory, Vida Sem Esforço, 2018

Embora apareça de forma diferente, o wu-wei também exerce sua influência na filosofia de confucionista:

O tipo de sossego sem esforço e falta de autoconsciência que caracteriza esses relatos taoístas também desempenha um papel central no confucionismo primitivo.

  • Edward Slingerland, Tentando Não Tentar, 2014

Embora cada escola de pensamento tenha uma roupagem diferente para o conceito – até mesmo dentro delas há diferenças –, a retroinfluência de uma filosofia sobre a outra é clara. O nível de sincretismo nas três principais correntes chinesas – taoismo, confucionismo e budismo – é alta.

Quando o termo é utilizado para se referir à política, wu-wei deve ser entendido como…

O princípio político de refrear o uso de autoridade política para impor controle sobre a condição natural do homem.

  • Roger Ames, Wu-wei no Capítulo de Huainanzi “A Arte da Governança”: Suas Fontes e Orientação Filosófica, 1981

O princípio de laissez-faire não derivou do wu-wei à toa, mas deve ser lembrado que, diferente do laissez-faire, comumente associado apenas ao princípio político, o wu-wei vai muito além de política, ele abrange sua relação com o mundo como um todo, sua relação com seu amigo, cônjuge, pai, irmão, filho, trabalho, estudo, com o ambiente e até consigo mesmo.

Ziran

Quando foi dito que o conceito de uma “ordem natural” espontânea na filosofia chinesa influenciou os fisiocratas, o conceito mencionado é relacionado ao ziran, que é a palavra chinesa para espontâneo, ou por si próprio, e é usado para se referir a algo que acontece espontaneamente, por si mesmo, não por interferência externa. Neste sentido, um estado natural.

A naturalidade do ziran.

Para buscar refúgio desses sistemas não naturais, precisamos entender a própria natureza. O padrão orgânico do indivíduo (li) é nossa natureza inata conduzida pelo te, virtude. A natureza, então, não tem relação alguma com força, controle ou poder. A ordem e o padrão da natureza não são de uma ordem forçada, assim como a natureza não é sujeita a um controle ou influência exterior. O termo taoísta para natureza é a palavra chinesa ziran, que significa espontaneamente por si mesmo. Quando um organismo natural está em harmonia com toda a vida, ele cresce por si mesmo espontaneamente. Ziran só pode surgir por si mesmo sem compulsão externa.

  • Jason Gregory, Vida Sem Esforço, 2018

 

A relação de ziran com wu-wei é, portanto, bastante íntima. Pode ser entendido que ziran é o estado estabelecido espontaneamente quando wu-wei é praticado. Lendo as aparições de ziran nos três principais livros do taoísmo, o conceito pode ser melhor assimilado:

O grande governante pondera as palavras e, concluindo sua obra, deixa as coisas seguirem por si só. E o povo diz: “isso aconteceu naturalmente [ziran]!” (Tao Te Ching. Capítulo 17)

Falar pouco é característica dos que obedecem a espontaneidade de sua natureza [ziran]. Ventos violentos não duram por muitos dias, uma chuva repentina não dura o dia inteiro. (TTC. Capítulo 23)

O sábio deseja o que outros homens não desejam e não aprecia aquilo que é difícil de conseguir, ele aprende o que outros homens não aprendem e retorna ao que a maioria já passou. Assim ele ajuda no desenvolvimento natural [ziran] das dez-mil coisas [wan-wu] sem ousar agir. (TTC. Capítulo 64)

Certa vez, [o Imperador Amarelo] adormeceu durante o dia e sonhou que tinha viajado para o Reino de Huaxu, situado a incontáveis quilômetros de distância do Estado de Qi, além do alcance de qualquer veículo, navio ou qualquer meio de locomoção de um mortal. Somente o espírito era capaz de viajar para tão longe.

Esse reino não possuía chefe ou governante, e lá tudo simplesmente seguia seu curso por si próprio [ziran]. O povo não nutria desejos nem ânsias, apenas seguia o seu instinto natural [ziran]. (Liezi. Livro II – O Imperador Amarelo)

[…] o sábio respondeu: “Deixe sua energia mental em abstração, sua energia física em inação. Permita-se seguir a ordem natural dos fenômenos [ziran], sem admitir o elemento do eu – e o império será então governado”. (Zhuangzi. Capítulo 7 – Endereçado a Imperadores e Reis)

Como o taoísmo lida com questões universais, muitos comentaristas discutem a consequência política do ziran:

Superficialmente, essa perspectiva pode ser incorretamente percebida como “anarquia”. Mas tem uma grande diferença: os motivos dos anarquistas são guiados pelo que eles se opõem. Por outro lado, os sábios que entendem ziran apenas seguem sua própria natureza sem qualquer preocupação com o poder institucional ou organizacional, porque eles estão contentes em deixar tudo seguir seu rumo. Um anarquista ainda é distraído pelas influências externas. Então, se o mundo for jogado em anarquia, então o motivo destrói o projeto. A natureza é o que é e não pode ter motivo, nem é um projeto para se embarcar. O tao não pode nunca ser induzido, já que seu princípio acontece espontaneamente por si mesmo – ziran. Anarquia é uma tentativa de induzir o tao para assim trazer uma ordem real através de uma decisão intelectual e artificial de abandonar os caminhos da sociedade.

Embora a anarquia seja, de certa forma, um caminho na direção certa, não é um método adequado para liberar o mundo, porque não pode evitar de possuir uma agenda por trás. O teorista evolucionário russo Peter Kropotikin entendia essa sutil diferença entre anarquia e ziran. Kropotkin postulou que se nós deixássemos as pessoas em paz para seguir sua própria natureza, uma ordem social real e um governo verdadeiro emergiria a partir do sistema atual[1].

  • Jason Gregory, Vida Sem Esforço, 2018

Tendo Adam Smith como uma de suas influências, F.A. Hayek (1899–1992) é, talvez, o intelectual que melhor desenvolveu o conceito de ordem espontânea no Ocidente[2] – um conceito já familiar no Oriente por tanto tempo. O economista austríaco divide a ordem em dois tipos: taxis e kosmos, isso é, respectivamente, a “ordem feita”, que pode ser referida como “uma ordem exógena, uma ordenação, uma construção, uma ordem artificial”, e a “ordem resultante de evolução” que pode ser referida como “uma ordem autogeradora ou endógena, e tem sua designação mais adequada na expressão ordem espontânea”, ou seja, a ordem que evolui por si mesma. O que Hayek descreve como taxis pode ser entendido na filosofia chinesa como renzhao (feito pelo homem, artificial), por enquanto kosmos é relacionado ao ziran.

Te

Geralmente traduzido como virtude, o te pode ter significados distintos dependendo do contexto em que se encontra e da filosofia de quem o menciona. O significado pode variar desde, de fato, virtude, como é comum ser visto nos textos confucionistas, até a “força”, o “poder”, o “aspecto”, a “qualidade”, a “manifestação” do tao, o que é comum nos textos taoístas. Eis algumas aparições nestes últimos:

Conceber e criar, gerar e não possuir, agir sem depender, cultivar e não controlar. Isso se chama misteriosa virtude [te]. (TTC. Capítulo 10)

Aquele que possui a virtude [te] superior não ostenta sua virtude [te], por isto possui virtude [te]. Aquele que possui a virtude [te] inferior busca não perder a virtude [te], por isto não possui virtude [te]. A virtude [te] superior é a não-ação [wu-wei], e por isto não deixa de agir. A virtude [te] inferior é a ação, e por isto deixa de agir. […] (TTC. Capítulo 38)

Em seu trabalho para proporcionar uma compreensão filosófica do Tao Te Ching, Roger T. Ames e David L. Hall descrevem a aplicação política do te da seguinte forma:

Quando localizado na esfera política, o te descreve a relação mais apropriada entre um governante e o povo. Nesse contexto, te possui uma gama de significados que refletem a prioridade da situação sobre o agente, caracterizando tanto o dar quanto o receber. Ou seja, te é tanto a “beneficência” estendida ao povo em resposta ao seu valor, quanto a “gratidão” expressa pelo povo em resposta à generosidade de um governante digno. Te abrange a atuação participante e seus efeitos. É o caráter ou o ethos da política. Com base nisso, podemos sugerir “virtualidade” no sentido arcaico da palavra como “tendo virtude inerente ou poder de produzir efeitos” como outra tradução possível de te.

  • Roger T. Ames e David L. Hall, Tao Te Ching: Tornando Esta Vida Significante, Uma Tradução Filosófica, 2003

Nos Analectos de Confúcio, te aparece como:

  1. O Mestre disse: “Guie-o por meio de leis, mantenha-o na linha com punições, e o povo se manterá longe de problemas, mas não será capaz de sentir vergonha. Guie-o pela virtude [te], mantenha-o na linha com os ritos, e o povo, além de ser capaz de sentir vergonha, reformará a si mesmo”. (Livro 2)

  2. O Mestre disse: “Aplico meu coração no caminho [tao], baseio-me na virtude [te], confio na benevolência [ren] para apoio e encontro entretenimento nas artes”. (Livro 7)

  3. O Mestre disse: “Um homem de virtude [te] com certeza é o autor de dizeres memoráveis, mas o autor de dizeres memoráveis não é necessariamente virtuoso [te]. Um homem benevolente [ren] com certeza é corajoso, mas um homem corajoso não necessariamente é benevolente [ren]”. (Livro 14)

Como pode-se ver, o significado, embora central na filosofia confucionista, é diferente do que se entende por te no Tao Te Ching.

Tao

Wu-wei é a ação alinhada ao tao, ziran é o estado em harmonia ao tao, te é a qualidade do tao. Mas afinal de contas, o que é o conceito central do taoísmo, o tao? De acordo Eva Wong (1951–):

O tao é a fonte de vida de todas as coisas. Ele é inominável, invisível e incompreensível pelos modos de percepção normais. Ele é ilimitado e não pode ser exaurido, embora todas as coisas dependam dele para sua existência. Escondido sob transição e mudança, o tao é a realidade subjacente permanente. Essas ideias se tornarão o centro de todo o futuro pensamento taoísta.

Embora o tao seja a fonte de toda a vida, ele não é uma deidade ou um espírito. Isso é bem diferente da visão xamânica animista do universo. No Tao Te Ching, o céu, a terra, os rios e as montanhas são parte de um poder maior e uno, conhecido como tao, que é uma força impessoal e inominado por trás do funcionamento do universo.

Porém, no Tao Te Ching, esse poder inominado e inominável não é inteiramente neutro, ele é benevolente: “O Caminho Celestial existe para beneficiar o próximo, não para causá-lo mal” (capítulo 81, Tao Te Ching), e já que “o Caminho Celestial segue o Caminho do tao” (capítulo 25, Tao Te Ching), podemos assumir que no Tao Te Ching o tao é uma força benevolente.

  • Eva Wong, Taoísmo: Um Guia Essencial, 1997

O tao, embora seja associado ao taoísmo (de onde seu nome deriva), é também um conceito central na filosofia confucionista. Nos Analectos, o termo costuma aparecer de duas formas: quando para designar o estilo, o caminho, a categoria de algo, como neste verso:

  1. O Mestre disse: “Observe o que um homem, enquanto seu pai está vivo, planeja fazer e então observe o que ele faz quando seu pai falece. Se, durante três anos, ele não se desviar do caminho [tao] do pai, ele pode ser chamado de um bom filho”. (Livro 1)

E também para se referir ao caminho como uma forma de ordem natural universal similar ao conceito encontrado no taoísmo:

  1. O cavalheiro [junzi] dedica seus esforços às raízes, pois, uma vez que as raízes estão estabelecidas, o Caminho [tao] daí brotará. Ser um filho bom e um jovem obediente é, talvez, a raiz do caráter de um homem”. (Livro 1)

  2. O Mestre disse: “Não viveu em vão aquele que morre no dia em que descobre o Caminho [tao]”. (Livro 4)

Desta forma, o conceito de ordem natural de Hans-Hermann Hoppe (1949–), associado pelo filósofo alemão aos conservadores, possui certa similaridade ao tao confucionista:

“Conservador” se refere a alguém que acredita na existência de uma ordem natural, de um estado de coisas natural, que corresponde à natureza das coisas; que se harmoniza com a natureza e o homem. Essa ordem natural é e pode ser perturbada por acidentes e anomalias: por terremotos e furacões; por doenças, pragas, monstros e bestas; por seres humanos de duas cabeças ou de quatro pernas; por aleijados e idiotas; e por guerras, conquistas e tiranias. Mas não é difícil distinguir o normal do anormal (anomalias), o essencial do acidental. Um pouco de abstração dissipa todas as confusões e permite que quase todos “vejam” o que é e o que não é natural, o que se encontra e não se encontra de acordo com a natureza das coisas. Além disso, o natural é, ao mesmo tempo, o estado de coisas mais duradouro. A ordem natural das coisas é antiga e sempre a mesma (apenas anomalias e acidentes sofrem mudanças); portanto, ela pode ser reconhecida por nós em todos os lugares e em todos os tempos. “Conservador” refere-se a alguém que reconhece aquilo que é antigo e natural através do “ruído” das anomalias e dos acidentes; refere-se a alguém que o defende, o apoia e ajuda a preservá-lo contra aquilo que é temporário e o anômalo.

  • Hans-Hermann Hoppe, Democracia: o Deus que Falhou, 2001

O que faz sentido, já que o confucionismo é frequentemente associado ao conservadorismo[3].

 

Ren

O termo ren pode ser encontrado tanto no taoísmo quanto no confucionismo, mas seu uso sistemático encontra-se principalmente no último. Ren refere-se, em geral, a algo benevolente, humano, e o que remeta ao sentimento de altruísmo com o próximo. No taoísmo, costuma ser algo secundário, abaixo do tao e do te:

[…] Perdendo-se o tao, segue a virtude [te], perdendo-se a virtude [te], segue a benevolência [ren]; perdendo-se a benevolência [ren], segue a justiça [yi]; perdendo-se a justiça [yi], seguem os ritos [li]. Aquele que é homem dos ritos [li] confia na pequenez da mensagem e, então, dá-se o começo da confusão. (TTC. Capítulo 38)

Por enquanto no confucionismo é um tema central e um objetivo indispensável:

  1. O Mestre disse: “Se um homem aplica o seu coração no caminho da benevolência [ren], ele estará livre do mal”. (Analectos. Livro 4)

  2. O Mestre disse: “A menos que um homem tenha o espírito dos ritos [li], ao ser respeitoso ele vai exaurir a si mesmo, ao ser cuidadoso ele vai se tornar tímido, ao ter coragem ele vai se tornar indisciplinado e, ao ser íntegro, ele vai se tornar intolerante.

Quando o cavalheiro [junzi] sente profunda afeição por seus pais, o povo será levado à benevolência [ren]. Quando ele não esquece amigos de longa data, o povo não fugirá de suas obrigações.” (Analectos. Livro 8)

E o confucionista Mêncio não apenas adota o conceito de ren a partir de Confúcio, como expande o conceito para renzheng, isso é, um governo benevolente, ou um governo humano, discorrendo sobre como deveria ser:

Mêncio respondeu: “Com um território de não mais de vinte e cinco quilômetros quadrados, alguém pode se tornar um verdadeiro rei. Se o rei concede governo humano [renzheng] ao povo, reduz as punições e alivia os impostos, fazendo com que a lavra seja profunda e a capina completa, os fortes serão capazes de usar seu tempo livre para cultivar filialidade e fraternidade.

Os novos confucionistas, com o intuito de desassociar a ideia de autoritarismo do confucionismo, argumentam que o conceito de ren é intimamente ligado aos direitos humanos[4]:

Para Wang, “Confucionismo, democracia e direitos humanos são completamente compatíveis”. De fato, ele argumenta que “a moral confucionista forma uma fundação para os direitos humanos ainda melhor que o pensamento ocidental forma”. Em contraste com a ancoragem de direitos em uma visão ocidental excessivamente idealista da natureza humana, “o confucionismo produz ainda mais respeito pelos seres humanos ao usar ren (empatia benevolente)”.

  • Joel Fetzer e Christopher Soper, Confucionismo, Democratização e Direitos Humanos em Taiwan, 2013

Ren estabelece a reivindicação de direitos negativos à proteção contra intrusão injustificada ou abuso por parte do governo.

  • Haiming Wen e William Keli’i Akina, A Ideologia dos Direitos Humanos Como Endêmica na Filosofia Chinesa: Perspectivas Clássicas Confucionistas e Moístas, 2012

Junzi e hierarquia

As hierarquizações são bastante frequentes nos textos chineses. Lendo os textos anteriores, o leitor deve ter reparado no uso do termo cavalheiro para se referir a junzi, esta é a tradução mais comum, embora ainda seja um tanto imprecisa. Por vezes os tradutores optam por homem perfeito ou homem nobre, não no sentido de ser parte da nobreza, mas ter uma essência nobre, independente da classe social. Mas junzi seria apenas uma de várias classificações na filosofia chinesa que poderiam ser hierarquizadas como:

Shengren Zhenren Conotação positiva
Junzi
Yeren Conotação negativa
Xiaoren

Shengren e zhenren são dois conceitos que descrevem o mais alto nível de um ser humano nas filosofias confucionista e taoísta, respectivamente. Elas utilizam termos diferentes para se referir ao homem que atingiu o mais alto nível de existência, mas outras filosofias, como o budismo chinês, utilizam os dois termos. No budismo, shengren se refere às pessoas que chegaram ao estado de Buda e bodisatva, e zhenren para designar um arhat. O termo shengren significa Santo, ou um homem santo, mas é comumente traduzido como sábio por não possuir uma conotação esotérica no confucionismo. Zhenren, por sua vez, significa literalmente pessoa genuína, verdadeira, real. No taoísmo, refere-se a alguém que conseguiu se alinhar ao tao e a alguém que cultiva sua natureza interior, a tradução mais comum utilizada para zhenren é sábio, por refletir mais precisamente o que representa para os taoístas.

Junzi, como foi dito, refere-se à pessoa nobre, comumente traduzido como cavalheiro. Na filosofia confucionista, um junzi deve possuir as cinco virtudes [wu-chang]: ren, a benevolência explicada anteriormente, yi, comumente traduzido como justiça, li, que se refere aos ritos: regras de conduta, decoro, bons costumes e afins, zhi, sabedoria e xin, integridade.

O significado literal de yeren é pessoa selvagem, pessoa rústica. Era usado para se referir às pessoas que viviam além das fronteiras do império chinês nos tempos antigos, algo que remete ao uso de bárbaro pelos romanos. O uso negativo do termo se dá ao se referir a yeren como uma pessoa não-civilizada, sem o conhecimento adequado para viver em sociedade, algo como a conotação pejorativa do uso do termo caipira pelos brasileiros.

Xiaoren significa literalmente pessoa pequena, baixa. É usado para se referir a pessoas sem caráter, canalhas, vilões. Nos tempos antigos, era paralelamente utilizado para se referir a pessoas de status social baixo, como os servos e súditos.

Com estes conceitos em mente, o leitor pode ter um melhor entendimento dos próximos artigos, mas, como é possível discorrer por páginas e páginas sobre os conceitos da filosofia chinesa sem esgotá-los, é mais interessante que, com a necessidade de explicar algum outro conceito da filosofia chinesa, isso seja feito onde o termo se encontra.

Entretanto, um último entendimento deve ser feito antes da leitura dos próximos artigos:

O libertarianismo

A observação do libertarianismo na filosofia chinesa clássica, na taoísta em especial, nem sempre é bem-vista. Em geral, essa aversão vem de um mal-entendido sobre o libertarianismo. Pelo libertarianismo ser uma filosofia que não é contrária ao capitalismo[v] per se, muitas pessoas acabam por relacionar libertarianismo a dinheiro, bens materiais e ganância.

Mas essa é uma visão distorcida do libertarianismo. O libertarianismo prega paz e respeito ao próximo em sua pessoa, sua saúde e seus bens. A organização em propriedade privada e o incentivo pelo lucro financeiro aparece recorrentemente na literatura libertária por serem organizações e ações naturais ao ser humano[vi], mas não há sequer uma vírgula contra os princípios libertários caso uma comunidade decida voluntariamente juntar-se em cooperativas e outros meios de produção não-capitalistas[vii] sem violar a propriedade do próximo ou coagi-lo a participar.

A cultura de consumismo, comumente relacionada ao capitalismo, é algo que, inclusive, vai contra as principais propostas do libertarianismo. Estranho? Pode parecer para quem lê sobre isso pela primeira vez, mas em um olhar aprofundado, não é. Um dos vários motivos para a transição do padrão-ouro para o sistema monetário fiduciário foi incentivar o consumo[viii], a lógica é simples: em um sistema onde a moeda é deflacionária, isso é, onde os produtos em geral ficam mais baratos em relação à moeda com o passar do tempo, o povo é incentivado a poupar o dinheiro porque ele poderá comprar ainda mais amanhã. E a poupança, como Mises (1881–1973) diz:

No ponto de partida de todo progresso em direção a uma existência mais bem fornida está a poupança – o provisio-namento de produtos que torna possível prolongar o período médio de tempo que decorre entre o início do processo de produção e a obtenção de um produto pronto para ser usado ou consumido. Os produtos acumulados com esse objetivo são de duas naturezas: estágios intermediários no processo tecnológico, isto é, ferramentas e produtos quase acabados; ou bens prontos para consumo que permitam ao homem substituir um processo que absorva menos tempo por outro que absorva mais tempo, sem com isto sofrer necessidades no período de espera. Esses bens são chamados de bens de capital. Portanto, a poupança e a consequente acumulação de bens de capital estão na origem de qualquer tentativa do homem de melhorar suas condições de vida; são a base da civilização humana. Sem poupança e sem acumulação de capital não teria sido possível almejar fins não materiais.

  • Ludwig von Mises, Ação Humana, 1949

Já um sistema com moeda inflacionária, isso é, onde os produtos em geral encarecem em relação à moeda, o povo é incentivado a gastar o seu dinheiro o quanto antes, pois amanhã seu dinheiro valerá menos que hoje, isso é, o consumo é incentivado pelo sistema monetário.

Duas das propostas libertárias são feitas em relação à moeda: a primeira, mais antiga, é retornar o sistema monetário ao padrão-ouro[ix] para evitar que o povo seja vítima do imposto inflacionário[x]. A segunda, mais atual, e não se resume apenas a uma proposta como é também uma ação, é o uso de criptomoedas escassas, isso é, com oferta limitada, como alternativa à moeda fiduciária. Tanto o padrão-ouro como as criptomoedas são sistemas deflacionários que desincentivam o consumismo.

Tampouco o libertarianismo é focado na realização material ou entende o lucro financeiro como objetivo primordial, muito pelo contrário, é comum na literatura libertária entender que o lucro não se dá apenas pela via financeira:

Lucro, no sentido mais amplo, é o ganho decorrente da ação; o aumento de satisfação (redução de desconforto) obtido; é a diferença entre o maior valor atribuído ao resultado obtido e o menor valor atribuído aos sacrifícios feitos para obtê-lo; em outras palavras, é rendimento menos custo. Realizar um lucro é invariavelmente o objetivo de toda ação. Se uma ação não atinge aos objetivos visados, o rendimento ou não excede os custos, ou lhes é inferior. Neste último caso, o resultado é uma perda, uma diminuição de satisfação.

Lucro e perda, neste sentido original, são fenômenos psíquicos e, como tais, não são suscetíveis de medição nem podem ser expressos de uma maneira tal que informe a outras pessoas quanto à sua intensidade. Uma pessoa pode dizer que a lhe convém mais do que b; mas não pode informar a outra pessoa, a não ser de maneira vaga e imprecisa, em que medida a satisfação obtida de a excede a obtida de b.

Na economia de mercado, tudo aquilo que é comprado e vendido em termos de moeda tem seu preço estabelecido em dinheiro. No cálculo monetário, o lucro aparece como um excedente do montante recebido sobre o despendido, enquanto que a perda, como um excedente do montante despendido sobre o recebido. Lucro e perda podem ser expressos em quantidades definidas de moeda. É possível determinar, em termos de moeda, quanto um indivíduo ganhou ou perdeu. Entretanto, esta não é uma constatação relativa ao lucro ou à perda psíquica do indivíduo. Não nos informa a respeito do aumento, ou diminuição de satisfação, ou felicidade do indivíduo.

  • Ludwig von Mises, Ação Humana, 1949

Isso significa que o indivíduo lucra não apenas com dinheiro ou bens materiais, mas com qualquer ação ou resultado que aumente sua satisfação, o que inclui desde ações benevolentes e altruístas, até realizações comunitárias e pessoais, como o desapego material. A moral de cada indivíduo proporcionará um aumento da satisfação a partir de estímulos diferentes: se o indivíduo segue uma moral budista ou taoísta, é provável que seguir as doutrinas budistas ou taoístas aumentará sua satisfação, realizando o que Mises chama de lucro psíquico. A base teórica sobre o bem material não ser a única fonte de lucro do indivíduo é bem difundida no meio libertário. Os bens materiais não são fins últimos do homem.

Embora haja uma tentativa de desvincular o Tao Te Ching de sua teoria política por partes de certo nicho, por volta de 40 dos 81 capítulo do livro de Laozi trata sobre política[xi]. E a ideia da obra é essencialmente libertária:

Essa ideia de um estado não intrusivo também fica clara na primeira metade do Capítulo 75, que acrescenta uma crítica explícita aos impostos. Colocando essa ênfase na liberdade pessoal, com a estrutura política do Capítulo 75, vemos um estado burocrático centralizado, governado por um único governante, com impostos mínimos ou inexistentes, leis mínimas e liberdades máximas.

Embora possa ser o caso de que nenhum análogo ocidental possa capturar apropriadamente a estrutura política de Laozi, parece útil oferecer um análogo ocidental alternativo para rivalizar com a leitura anarquista. Minha opinião é que a melhor maneira de entender o pensamento político taoísta é vê-lo como uma antecipação chinesa do estado minarquista do libertarianismo de Nozick. De acordo com a concepção de Nozick, o estado é “limitado às funções de proteção de todos os seus cidadãos contra violência, roubo e fraude, e ao cumprimento de contratos”.

Embora haja grandes discrepâncias entre a filosofia política de Laozi e o libertarianismo nozickiano em geral, o papel do Estado parece bastante semelhante. Para ambos, o estado simplesmente fornece a infraestrutura básica para a vida comunal por meio da proteção de forças internas e externas. E, em ambos, a autoridade política é exercida no modelo de “vigia”, no qual, para empregar a própria linguagem sugestiva de Laozi, a autoridade reside à distância, facilmente “esquecida” quando desnecessária, mas disponível quando necessária.

  • Alex Feldt, Governando Através do Tao, 2010

Alex Feldt, portanto, defende que Laozi é melhor entendido como um defensor do minarquismo. Mas, muito além de um estado mínimo organizado através de uma democracia monocêntrica, como defendido por libertários como Robert Nozick (1938–2002) e Ludwig von Mises, o Tao Te Ching pode ser visto como plenamente compatível com o conceito emergente de governança policêntrica.

O conceito, ainda embrionário, tem raízes em diversas teorias que refletem o pluralismo político. A contribuição para a ciência econômica e política feita por Elinor Ostrom (1933–2012) através do desenvolvimento do conceito de policentricidade[xii] foi fundamental para o desenvolvimento do conceito de governança policêntrica. A abstração da Federação da Liberdade[xiii] do teorista político malaio Chandran Kukathas (1957–) e o conceito de Ordem Constitucional Policêntrica[xiv], teorizado pelo jurista Randy Barnett (1952–), são essenciais para o entendimento de uma governança policêntrica libertária, que pode ser melhor descrita como uma democracia policêntrica:

A democracia policêntrica é um arranjo institucional que envolve uma multiplicidade de centros de decisão agindo de forma independente, mas sob as restrições de uma estrutura democraticamente supervisionada e legitimada para a competição institucional que restringe as externalidades.

  • Julian Müller, Pluralismo Político, Discordância e Justiça: O Caso Para Democracia Policêntrica, 2019

Uma democracia policêntrica, no sentido libertário, seria um arranjo institucional onde a população seria livre para se associar e desassociar ao governo que escolhesse, ao invés de ser coagido a aceitar apenas um governo, como acontece em uma democracia monocêntrica. Todos os governos dentro de uma democracia policêntrica, entretanto, estariam sob a restrição de um princípio de não-agressão, o que garantiria o espírito libertário, e as legislações complementares, ao invés de comum a todos, estariam presentes apenas a nível governamental, onde o cidadão é livre para escolher se aceita e continua associado ao governo ou não aceita e se desassocia de tal governo. Desta forma, o governante não estaria agindo através da força para o cidadão se associar ao seu governo, mas estaria agindo de forma natural e espontânea, o que se pode entender como compatível com a teoria política de Laozi.

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Tendo entendido conceitos básicos da filosofia chinesa, sua história e os equívocos mais comuns quanto ao libertarianismo, o leitor está pronto para acompanhar a leitura da filosofia chinesa e identificar elementos libertários na filosofia chinesa nos próximos artigos.

 

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Notas

[1] O libertarianismo trata, em suma, sobre refrear o uso da coerção no sistema político, se a coerção política fosse totalmente refreada, só então veríamos como a sociedade melhor se adequa. Desta forma, o libertarianismo não é tão prescritivo, e não se assemelha ao anarquismo clássico, onde há uma prescrição sobre como a sociedade deve ser.

[2] F.A. Hayek explora o conceito de ordem em seu livro Direito, Legislação e Liberdade. Volume 1: Normas e Ordens (1973), mais precisamente no capítulo 2: Cosmos e Taxis.

[3] A associação entre confucionismo é popular e aparece em livros e artigos acadêmicos como, por exemplo, Warren W. Smith, Confucionismo no Japão Moderno: Um Estudo do Conservadorismo na História Intelectual Japonesa (1959), Jonathan Chaves, Confucionismo, o Conservadorismo do Oriente (2002) e Harmonia, Hierarquia e Yan Bing Zhang et al., Conservadorismo: Uma Comparação Intercultural dos Valores Confucianos na China, Coreia, Japão e Taiwan (2005).

[4] Diversos autores vêm interpretando o conceito de ren como um conceito compatível com direitos naturais negativos: Theodore de Bary e Tu Weiming, Confucionismo e os Direitos Humanos (1998), Craig Williams, Direitos Humanos Internacionais e o Confucionismo (2006), Haiming Wen e William Keli’i Akina, A Ideologia dos Direitos Humanos Como Endêmica na Filosofia Chinesa (2012),  Confucionismo, Joel S. Fetzer e J. Christopher Soper, Democratização e Direitos Humanos em Taiwan (2013), Sungmoon Kim A Razão Pública do Confucionismo e os Direitos Humanos do Liberalismo (2014), entre muitas outras obras acadêmicas.

[v] “O Problema da Definição [do capitalismo]. — Na cultura corrente, ao termo Capitalismo se atribuem conotações e conteúdos frequentemente muito diferentes, reconduzíveis, todavia, a duas grandes acepções [uma restrita e outra como uma relação social geral]. A própria história do conceito de Capitalismo oscila entre estas duas acepções. Não se trata de uma controvérsia nominalista, solúvel através de um acordo entre os estudiosos, mas de uma questão de identificação do mundo moderno e contemporâneo, que envolveu e envolve a identidade e a ideologia de vastos grupos sociais.” – Gian Enrico Rusconi, Dicionário de Política (1983). O conceito de capitalismo varia muito dependendo de quem o utiliza, na concepção marxista, está relacionado ao modo de trabalho assalariado que surge quando o grosso da sociedade, para obter sua subsistência, precisa vender a sua força de trabalho a qual tem direito legal para os capitalistas que detêm os meios de produção da sociedade, na concepção weberiana o capitalismo “é a dimensão econômica de um comportamento econômico mais profundo e peculiar chamado racionalista, de que fazem parte os processos de racionalização burocrático-administrativa e jurídica difundidos que culminaram no estado moderno ocidental” (Gian Enrico Rusconi) e, no ponto de vista hoppeano, “socialismo sendo uma política institucionalizada de agressão contra a propriedade, e o capitalismo sendo uma política institucionalizada de reconhecimento da propriedade e do contratualismo”, havendo um pouco de capitalismo e de socialismo em toda sociedade contemporânea, sendo sempre sociedades mistas, e não puramente capitalistas ou puramente socialistas (com raras exceções). Não acredito que o termo capitalismo, visto a bagunça gerada pelas diversas definições do termo, seja útil em análises mais técnicas. Livre-mercado, intervencionismo e afins são mais úteis e precisos.

[vi] A propriedade surge no ser humano naturalmente. Psicologicamente, o fenômeno de efeito de posse, onde o ser humano tende a valorizar mais um item que possui do que valorizaria o mesmo item caso não o possuísse, pode explicar parcialmente a propriedade. Esse fenômeno pode ser observado não somente em adultos e crianças humanas (W.T. Harbaugh et al., Os Adultos Comportam-se Melhor do Que as Crianças? Idade, Experiência e o Efeito de Posse, 2001), como também pode ser observado em outros primatas, como macacos-prego (Venkat Lakshminaryanan et al., Efeito de Posse em Macacos-Prego, 2008) e gorilas (Patricia Kanngiesser et al., Os Limites do Efeito de Posse em Grandes Símios: Pan paniscus, Pan troglodytes, Gorila gorila, Pongo pygmaeus, 2011).

[vii] Assumindo a interpretação marxista de capitalismo, onde os meios de produção seriam de propriedade de um (ou mais) capitalista, sendo, em suma, a propriedade privada de produção em sociedades industriais. Uma comunidade que se organize em sistema de produção majoritariamente por meio de cooperativas (onde os trabalhadores são os donos) seria uma comunidade com um meio de produção não-capitalista.

[viii] “Sob taxas de juros nominais rígidas [não se ajustam perfeitamente no curto-prazo], um aumento esperado na inflação reduz as taxas de juros reais devido ao conhecido Efeito Fisher e, como resultado, aumenta o consumo atual e a demanda agregada, reduzindo os incentivos dos consumidores para poupar para o futuro” – Ioana Duca-Radu, Geoff Kenny e Andreas Reuter, Expectativas de Inflação, Consumo e Limite Inferior: Microevidências de uma Grande Pesquisa Multinacional (2021).

[ix] O libertário e entusiasta do padrão-ouro Peter Schiff (1963–), por exemplo, disse que o “mundo vai rejeitar o padrão do dólar e voltar ao padrão-ouro. É para lá que estamos indo. O ouro vence todas essas moedas fiduciárias. E assim o ouro era a reserva antes do dólar e será a reserva depois do dólar. Esse é o único sistema monetário que funciona”.

Murray Rothbard, em seu livro O Que o Governo Fez Com o Nosso Dinheiro? (1963), diz: “Olhando para o futuro, o diagnóstico que podemos fazer para o dólar e para o sistema monetário internacional é de fato sombrio.  A menos que retornemos ao padrão-ouro clássico a um preço realista, o sistema monetário internacional está fadado a se alternar continuamente entre taxas de câmbio fixas e flutuantes, sendo que cada sistema seguirá enfrentando problemas insolúveis e funcionando insatisfatoriamente até chegar à desintegração final”.

Mas nem todos libertários defendem o padrão-ouro: “Padrão-ouro não é a solução: Pode-se esperar que o retorno ao padrão-ouro ou a um tipo de regime de câmbio fixo evite as violentas oscilações no valor do dinheiro ocorridas nos últimos anos. Creio ainda que, enquanto a administração do dinheiro estiver nas mãos do governo, o padrão-ouro, com todas as suas imperfeições, é o único sistema toleravelmente seguro. Mas nós certamente podemos fazer melhor do que isso, embora não através do governo […]”. – F.A. Hayek, Desestatização do Dinheiro (1976). O último é alinhado ao pensamento visto nas criptomoedas.

[x] O imposto inflacionário refere-se ao dinheiro arrecadado pelo governo, através da criação de nova moeda, às custas da desvalorização da moeda. Diz-se que é imposto pois o poder de compra daqueles que possuem a moeda é diminuído através da expansão monetária.

“O imposto inflacionário é o menos transparente de todos os impostos, pois a forma como o imposto é pago não é bem compreendida e o valor da receita real (ou poder de compra) obtido pelo governo é difícil de calcular.” – T. Windsor Fields, 2015.

[xi] Alex Feldt, Governando Através do Tao: Uma Interpretação Não-Anárquica de Laozi (2010).

[xii] Elinor Ostrom desenvolve o conceito de policentricidade em Governando os Comuns: A Evolução de Instituições para Ação Coletiva (1990) e Além de Mercados e Estados: Governança Policêntrica de Sistemas Econômicos Complexos (2010).

Embora Elinor Ostrom tenha sido a principal desenvolvedora do conceito, “o termo policentricidade foi introduzido pela primeira vez por Michael Polanyi em seu livro A Lógica da Liberdade (1951). Aqui, Polanyi argumenta que, por razões epistêmicas, as ciências, assim como os sistemas econômicos, devem ser organizadas de forma policêntrica em vez de monocêntrica.”. – Julian Müller, Pluralismo Político, Discordância e Justiça: O Caso Para Democracia Policêntrica (2019).

[xiii] Chandran Kukathas, Duas Construções de Libertarianismo (2009).

[xiv] “Em uma ordem constitucional policêntrica, diferentemente de uma monocêntrica, múltiplos sistemas jurídicos exercem a função judicial e múltiplos órgãos de cumprimento da lei exercem a função executiva. Esses múltiplos tomadores de decisão operam dentro de restrições constitucionais que permitem que eles coexistam e se ajustem uns aos outros. A frase ordem legal ou constitucional é usada aqui quando se fala de toda a estrutura legal, e a frase sistema legal ou judicial quando se fala de um tribunal ou outro sistema de resolução de disputas dentro da ordem constitucional mais ampla. Assim como a concepção liberal de justiça requer “várias propriedades” para lidar com os problemas de conhecimento e interesse, uma ordem constitucional descentralizada ou policêntrica que consiste em vários sistemas jurídicos e várias agências de aplicação da lei fornece uma estrutura institucional para lidar com o problema do abuso de aplicação da lei […]. O termo policêntrico se refere não apenas a um sistema com múltiplos “centros de decisão”, mas a um em que cada um dos centros de decisão precisa se ajustar e é capaz de se ajustar às decisões dos demais. A ordem é assim alcançada “espontaneamente”. – Randy Barnett, A Estrutura da Liberdade (1998).

1 COMENTÁRIO

  1. Parabens pelo artigo camarada Rodolfo.

    “A cultura de consumismo, comumente relacionada ao capitalismo, é algo que, inclusive, vai contra as principais propostas do libertarianismo. ”

    Correto. Esse pensamento consumista associados aos libertários é difamação. Na verdade, esse aspecto negativo do capitalismo vem de uma sociedade criminosa entre liberalecos randianos do estado mímimo e burocratas estatais. Os liberalóides tratam os indivíduos unicamente como meios para se alcançar um fim, o mesmo procedimento da gangue estatal. Se os liberais não causam violações de propriedade em seus negócios isso é irrelevante, pois legitimam o estado leviatã que faz isso por eles.

    “A democracia policêntrica é um arranjo institucional que envolve uma multiplicidade de centros de decisão agindo de forma independente, mas sob as restrições de uma estrutura democraticamente supervisionada e legitimada para a competição institucional que restringe as externalidades.”

    Tempos atrás eu estudei essa democracia policêntrica e cheguei a conclusão que funcionaria. Mas vai saber?

    “Patricia Kanngiesser et al., Os Limites do Efeito de Posse em Grandes Símios: Pan paniscus, Pan troglodytes, Gorila gorila, Pongo pygmaeus, 2011).”

    Esse livro citado nas notas deve ser bem interessante. Vou procurar. É um assunto que me interessa. É preciso ir nesta raiz. Esse tipo de comportamento visto na natureza – posse, já seria o bastante para refutar todos as idéias estatistas e/ou comunistas e todas essas bostas.

    A democracia policêntrica é um arranjo institucional que envolve uma multiplicidade de centros de decisão agindo de forma independente, mas sob as restrições de uma estrutura democraticamente supervisionada e legitimada para a competição institucional que restringe as externalidades.

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