Prefácio à edição brasileira

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Difundir as ideias da liberdade de forma duradoura, com o objetivo último de alterar o substrato cultural de uma sociedade – para que se torne terreno mais fértil às relações pacíficas e voluntárias, e mais hostil às relações violentas e exploratórias – sempre foi e continua sendo uma tarefa árdua, com resultados frequentemente minúsculos.

É irônico, de certa forma, que uma das principais dificuldades seja justamente ganhar espaço entre as classes intelectuais especializadas, os profissionais de letras: famosos (ou infames) por se entregarem entusiasticamente às ideologias mais inviáveis, incoerentes, e não raramente destrutivas, a intelligentsia não obstante demonstra uma aversão ao libertarianismo radical, de princípios, que beira o ódio[1]. Isso se torna cada vez mais claro à medida que a política ocidental se desveste da dicotomia direita-esquerda e caminha em direção a uma disputa entre, de um lado, um establishment tecnocrático, progressista e impositivo – e de outro, “deploráveis” independentes que questionam a moralidade, a viabilidade, e até a sanidade dos progressistas. Está claro, para quem quiser ver, que os intelectuais não apenas não são mais virtuosos que o homem comum, mas parecem ser, com efeito, especialmente propensos a adular e se dobrar aos poderes estabelecidos – quaisquer que sejam eles[2]. Não é à toa que os liberais clássicos e libertários exploraram em grande detalhe a questão dos intelectuais da corte[3].

Além disso, a sutil complexidade de uma visão decentralizada da sociedade não é algo fácil de apreciar. Que a sociedade é incompreensivelmente complexa é comumente aceito; que as relações humanas são “emergentes” e não podem ser previstas deterministicamente também é pouco controverso. Mas pouquíssimos seguem essa linha de raciocínio até a conclusão inquietante de que qualquer tentativa de impor um sistema a essa teia de relações espontâneas é tolice. Pelo contrário, intelectuais “pragmáticos” – ou simplesmente não muito brilhantes – tendem justamente a favorecer sistemas rígidos e impositivos que proporcionam a ilusão de controle e previsibilidade.

De certa forma, o impulso humano de entender alguma coisa está intimamente ligado ao impulso de controlar aquilo. Mas quando se trata de sistemas humanos, o instinto de criar uma estrutura de comando se depara com o fato de que os objetos que se busca controlar são tão inteligentes e adaptáveis quanto os próprios controladores. Isso, longe de ser um acidente infeliz que deve ser corrigido por políticas tecnocráticas, é absolutamente necessário para qualquer sistema tão complexo quanto uma sociedade humana. A autonomia das unidades não é apenas moralmente correta, mas elegante e eficiente, e persistirá após todos os “sistemas” terem se tornado pó.

Essa ideia é aterrorizante para aqueles que não têm confiança em sua própria capacidade de suportar o peso do risco e da responsabilidade que vêm com a liberdade; e extremamente frustrante para aqueles que aspiram a organizar e governar (mesmo aqueles que estão muito distantes de ter o poder e influência para isso). Juntas, essas categorias representam uma porção amplamente majoritária da população humana[4].

Dada essa impopularidade natural das suas ideias, não é muito surpreendente que a tarefa educativa do libertário seja tão difícil. Mas, em oposição aos libertários “moderados” e “pragmáticos” que acreditam que um futuro mais livre pode ser alcançado através de meios baseados na coerção – como eleições, cargos governamentais, lobbying, etc. – a verdade auto evidente é que a visão libertária da sociedade representa uma mudança demasiado radical em relação aos paradigmas de controle social coercitivo. Fazer uso de subterfúgios para conquistar um pouco de liberdade, dentro de um panorama onde todos os participantes aceitam por princípio a legitimidade da coerção institucionalizada, é, na melhor das hipóteses, uma tática de autopreservação; e na pior, um tiro no próprio pé. Para mover a janela de Overton na direção da liberdade com alguma permanência, simplesmente não existe substituto para a difusão de princípios libertários.

Poucos tiveram tanto sucesso nessa empreitada quanto Ayn Rand, autora dos romances A Revolta de Atlas e A Nascente. O Objetivismo de Rand, como movimento, sofreu com sua personalidade arrogante e intransigente, bem como inclinações políticas que se mostraram equivocadas, aliando-se com o que havia de pior no establishment dos Estados Unidos em nome de resistir à “ameaça Vermelha”. Esses fatores se combinaram para transformar os Objetivistas naquilo que Murray Rothbard chamava de “libertários da Câmara de Comércio”, bajuladores do poder cuja lealdade a qualquer tipo de princípio libertário não vai além da retórica.

Apesar disso, Rand foi pioneira em sua defesa apaixonada da liberdade como um caminho inspirador e visionário para o futuro da humanidade. Em sintonia com o ideal norte-americano de individualismo independente, ela inspirou gerações a buscarem na excelência individual e nas relações de mercado a sua fonte de esperança por um futuro melhor. O presente volume é influenciado do começo ao fim por esse entusiasmo tipicamente randiano[5]; no entanto, crucialmente, vai além disso ao avançar propostas concretas e coerentes quanto ao funcionamento de uma hipotética sociedade laissez-faire.

Leonard Read era da opinião de que os defensores da liberdade não devem perder tempo tentando explicar os detalhes do funcionamento do livre mercado[6], particularmente em áreas de atividade hoje monopolizadas pelo Estado, que inevitavelmente levantam questionamentos do tipo: “mas como o mercado lidaria com as estradas? E a justiça?” Afinal, a descentralização e espontaneidade são características integrais de uma sociedade livre. Por definição, as soluções de questões socioeconômicas não estão contidas em um minucioso Plano Quinquenal Libertário, mas serão geradas organicamente.

Não obstante, para apresentar a pessoas justificavelmente céticas uma visão viável de uma sociedade livre, é importante fornecer algum detalhe operacional, pelo simples motivo de que nem só de teoria vive a mente humana. Especialmente para a exposição inicial às ideias libertárias, é fundamental deixar claro que o ideal de uma sociedade laissez-faire está enraizado na realidade humana efetiva, e não em alguma fantasia do Novo Homem Libertário.

Nesse sentido, O Mercado da Liberdade entrega uma narrativa sistemática e abrangente, usando o bom senso, experiências de vida comuns à grande maioria das pessoas, e fazendo paralelos com problemas que já são tratados com sucesso pelo mercado, mesmo sob o jugo da coerção estatal. O livro desenha uma imagem inspiradora de como homens capazes e de boa vontade, libertados dos grilhões da coerção, poderiam transformar o mundo em um lugar muito mais próspero e pacífico. Ao mesmo tempo, demonstra como os homens sem boa vontade seriam pressionados a reprimir suas tendências antissociais.

O tratamento do problema da justiça, do crime e da defesa oferecido pelo Mercado da Liberdade é talvez seu maior mérito, tendo influenciado Hans-Hermann Hoppe e suas obras extremamente influentes sobre uma sociedade de propriedade privada. Cientes dos críticos estatistas da sociedade livre, sempre prontos a invocar o velho bicho-papão do “inferno Hobbesiano”, os autores de O Mercado da Liberdade atacaram detalhadamente a questão do crime, demonstrando que um sistema de justiça privada seria menos tolerante com comportamentos criminosos do que seu equivalente estatal monopolista. Ironicamente, décadas depois, com o consenso progressista tendo se deslocado na direção da leniência com o crime, a obra de Hoppe foi atacada no sentido contrário: por sugerir que uma sociedade de propriedade privada, além de não tolerar o crime, seria fortemente avessa a outros tipos menos gritantes de comportamento antissocial – como, por exemplo, a propagação de ideias socialistas.

Já que mencionamos Hoppe, é importante notar a evolução do pensamento libertário desde 1970, ano da edição original de O Mercado da Liberdade. Alguns pontos cruciais, que são diretamente relevantes para o conteúdo deste livro, são os seguintes:

A erosão da atitude “liberdade e nada mais que liberdade”

Entre os libertários, particularmente aqueles associados à Escola Austríaca de economia e ao Mises Institute em particular, cresceu e continua crescendo o reconhecimento de que questões culturais, religiosas e políticas não podem ser ignoradas.

Apesar de, em termos de teoria política, o libertarianismo nada mais ser que a aplicação universal do princípio de não agressão, é efetivamente impossível chegar perto desse ideal com uma sociedade composta por pessoas indisciplinadas, devassas e atomizadas – que não fazem e não têm interesse em fazer parte de nenhuma comunidade “natural”, restando a elas, portanto, enfrentarem sozinhas qualquer ameaça à sua vida ou liberdade.

A destruição ou subjugação de hierarquias com um grau de soberania própria – como a Igreja, a nobreza, ordens religiosas, associações de negócios, e governos locais –, pela qual o Estado é saudado como libertador pelos progressistas, passa a ser vista como uma estratégia de dividir e conquistar: sob o imperativo do igualitarismo, todos os indivíduos deverão ser iguais e independentes – igualmente e independentemente escravizados pelo Estado onipotente.

Nesse contexto, a atitude leviana dos autores de O Mercado da Liberdade quanto à moralidade e a estruturas sociais fora do mercado não envelheceu muito bem[7]. Ao contrário do que afirmam em vários pontos do livro, uma sociedade laissez-faire, para ser robusta e resiliente, necessitaria de uma atitude comparativamente intolerante com a licenciosidade, o isolacionismo, o egoísmo crasso e outros estilos de vida “alternativos”[8].

A reabilitação da Europa pré-moderna

O período medieval, desde o início do humanismo moderno (séculos XV e XVI), foi constantemente escarnecido como um tempo de obscurantismo militante e governantes cuja brutalidade só era rivalizada por sua ignorância. Essa visão arrogante e presunçosa contaminou mesmo os liberais clássicos e seus primeiros sucessores libertários (como os autores do presente volume). Mas a cristandade medieval não era o horror incomparável que ocupa a imaginação popular[9]. Na verdade, foi a progenitora dos “direitos humanos” que hoje são vistos como fins em si próprios, mas que na Antiguidade pagã teriam sido vistos como fraquezas e vícios[10]. O desdém ignorante pela tradição que tornou isso possível arrisca pôr tudo a perder.

A demolição da propriedade intelectual[11]

Partindo da premissa de que a instituição da propriedade privada tem como função evitar o conflito entre homens por bens escassos, surge a pergunta: uma vez criada, qual é o fator de escassez de uma “propriedade” intelectual – especialmente em uma época em que a tecnologia trivializou a cópia de informações? Se alguém joga um videogame pirateado, de que forma isso afeta o gozo do mesmo jogo por alguém que pagou por ele?

A única forma de enxergar como crime o uso de um conjunto de informações sem a autorização do criador original é assumir que o criador possui uma reivindicação condicional preemptiva sobre a propriedade física de todos os membros da sociedade: o uso de todos os computadores agora é restrito, e seus donos se tornaram criminosos em potencial, pois ninguém pode jogar em seu PC sem uma licença. Ou, de forma ainda mais absurda: se alguém compõe uma melodia, ninguém pode usar seus lábios para assobia-la, ou seus ouvidos para escutá-la, sem pagar uma comissão para o compositor.

É natural e justo saudar a originalidade e o mérito de um autor, pesquisador, inventor, etc. A despeito disso, não há como negar que a “defesa” da “propriedade” intelectual implica agressão contra propriedades reais. O policiamento da propriedade intelectual por parte do Estado constitui um subsídio aos autores, às custas não apenas dos impostos, mas também do direito ao gozo da propriedade por parte do restante da sociedade. Todo subsídio é imoral, e este mais do que outros. A “guerra” contra a “pirataria” – ou seja, a imitação – juntamente com outras “guerras” que não podem ser vencidas (contra a imoralidade, a pobreza, as drogas, o terrorismo, as doenças, e outras constantes da existência humana) é uma desculpa perfeita para o estabelecimento de uma ditadura administrativa tecnocrática.

Isso não é uma sentença de fome contra os artistas e desenvolvedores de software do mundo; um sistema mais honesto, e que prevaleceu por séculos antes do estabelecimento dos primeiros escritórios estatais de patentes, é o de patrocínio de criadores por aqueles que estão interessados em suas obras[12]. É verdade que isso provavelmente reduziria o incentivo para se tornar um criador profissional; porém, quem dita a quantidade ideal de criadores e inovadores? Mexer e experimentar com as regras da propriedade privada, o alicerce de uma sociedade livre, a fim de “estimular” isto ou “desencorajar” aquilo é uma ocupação para engenheiros sociais, e não para defensores da liberdade.

Ayn Rand era uma convicta defensora dos direitos de propriedade intelectual; e os autores de O Mercado da Liberdade, influenciados por ela, seguem a mesma linha. É justo afirmar que a obra está desatualizada nesse sentido, pois o argumento libertário contra a propriedade intelectual é avassalador.

O fim da idealização das empresas e dos empreendedores

Um ânimo facilmente perceptível por todo O Mercado da Liberdade é um forte otimismo quanto à influência exercida sobre a sociedade por empresas, empreendedores e homens de negócios em geral. Apesar de não chegar ao patamar da inocência crassa, como é o caso de muitos libertários “inexperientes”, os autores claramente esperam dos agentes de mercado uma influência positiva para a ética da propriedade privada, o que se mostrou, no mínimo, uma perspectiva excessivamente otimista[13].

O fascismo econômico no Ocidente, com empresas em relação simbiótica com a máquina coercitiva do governo, metastizou após a publicação de O Mercado da Liberdade, particularmente após os ataques terroristas de 2001 e a crise financeira de 2007/2008. Existe um grau de verdade na crítica histórica dos libertários minarquistas aos anarquistas: os homens de negócios não são santos libertários, e a posse de poder econômico incentiva e facilita a busca do poder coercitivo[14]. Infelizmente, o tratamento dado pelo casal Tannehill ao caso de empresários “mancomunados” resume-se a culpar o Estado pela corrupção da iniciativa privada – o que não resolve esse sério obstáculo ao programa libertário.

Continua sendo sensata a réplica anarcocapitalista: é no mínimo questionável aceitar a existência de um Leviatã por medo de que outro, eventualmente, tome seu lugar. Apesar disso, fica claro que entregar as chaves do reino às empresas não é uma solução viável para a manutenção de uma sociedade livre: as próprias empresas estão do lado do rei! Em sintonia com o ponto levantado mais acima (quanto à importância da cultura e da existência de hierarquias independentes e concorrentes), é necessária uma descentralização das várias formas de poder social, com o estabelecimento de um equilíbrio dinâmico entre elas. Os agentes de mercado formam apenas um desses pilares, e não o único – talvez nem sequer o mais importante.

Uma visão mais conservadora quanto à prosperidade material da sociedade livre

Em meados do século XX, o Ocidente, particularmente os Estados Unidos, estava no auge de sua glória. Era a civilização mais cientificamente avançada, mais economicamente desenvolvida, mais populosa, mais culturalmente influente, e tudo isso por uma margem que parecia insuperável no futuro próximo. As guerras mundiais haviam deixado uma cicatriz profunda no imaginário coletivo, e havia uma diretriz preponderante de evitar um desastre da mesma magnitude – especialmente em luz do poder assustador das armas nucleares. O movimento de direitos civis havia estabelecido igualdade estatutária entre as raças e os sexos. O ano anterior à publicação de O Mercado da Liberdade, 1969, notável pelo sucesso da NASA em pôr um homem na superfície da Lua e trazê-lo de volta, representou talvez o ápice do otimismo. O Ocidente parecia destinado a um futuro de paz, progresso e liberdade nos moldes liberais. Eliminar o governo, para os libertários, seria simplesmente remover os grilhões desse progresso – a cereja do bolo[15].

Os autores deste livro claramente eram influenciados por esse otimismo. Isso fica claro em seu desdém pela moralidade tradicional (como já foi mencionado) e também por sua certeza de que uma sociedade livre seria várias vezes mais próspera do que uma sob o jugo do Estado, e cheia de maravilhas tecnológicas que mal se poderia imaginar.

Aqui também, infelizmente, devemos frear o otimismo, enfatizando alguns fatos econômicos. O primeiro é que, ao contrário do que os autores frequentemente parecem assumir ao longo do livro, o fim do governo não traria uma oferta infinita de capital e empreendedores. É absolutamente verdade que a regulação e a taxação do governo freiam o desenvolvimento de soluções de mercado para problemas humanos, e tornam necessário maior esforço para conseguir resultados piores; mas o fim do governo não significa a abolição da escassez. Um libertário não está em condição de prometer sucesso a ninguém; isso dependeria de esforço, capacidade, preferência temporal, e sorte. O que ele pode prometer é que não forçará ninguém a usar uma moeda em constante desvalorização, e não roubará dinheiro, nem mesmo para “causas nobres”. Isso levaria a um gradual aumento da prosperidade material das pessoas produtivas (a enorme maioria).

Um segundo ponto – e aqui, devemos mencionar novamente Leonard Read e seu Eu Não Sei [como seria um futuro libertário] – é que a natureza da prosperidade econômica em uma sociedade livre poderia ter poucas semelhanças com aquilo que nos acostumamos a chamar de progresso sob a influência do Estado. Em uma sociedade laissez-faire, as energias produtivas seriam direcionadas de acordo com os desejos dos consumidores, e esses nem sempre são ambiciosos ou inspiradores.

Por exemplo, Hans-Hermann Hoppe é da opinião de que não haveria uma malha de estradas tão desenvolvida como hoje[16], pois os governos subsidiam as estradas para fins militares e de taxação, além do fato de que podem usar sua prerrogativa coercitiva para apropriar as vastas extensões de terra necessárias para a construção de uma autoestrada ou ferrovia. Similarmente, não parece certo que o processamento, armazenamento, e transmissão eletrônicas de dados teriam se desenvolvido tão rapidamente, se não fosse pelo imperativo de Estados (e seus simbiontes corporativos) administrarem suas maciças operações burocráticas, envolvendo milhões de pessoas e territórios gigantescos. A exploração espacial, a despeito dos fãs libertários (incluindo aí o presente autor), poderia não ter atingido nem sequer o limitado sucesso que atingiu hoje, se não tivesse sido subsidiada pelo Estado com propósitos militares.

A iminência – ou não – do colapso econômico

Os libertários ligados à Escola Austríaca de economia adquiriram, mais recentemente após a crise financeira de 2007/8, uma reputação de serem “profetas do apocalipse” no que toca à insustentabilidade do sistema econômico mundial baseado em moedas fiduciárias (sem lastro em commodities). E o profetizado colapso do dólar parece nunca se materializar. Os déficits públicos se acumulam, e o sistema segue intacto, mesmo que aos tropeços e crivado de problemas crônicos.

O Mercado da Liberdade foi publicado em 1970, um ano antes do presidente Nixon suspender a convertibilidade do dólar em ouro, mesmo para governos estrangeiros (cidadãos americanos não podiam trocar dólares por ouro desde a administração de Franklin Roosevelt). O motivo principal foram as crises de escoamento de ouro para fora dos EUA, causadas pelas políticas deficitárias e inflacionárias do governo americano e do Federal Reserve, que são mencionadas neste livro. Por que, então, isso não levou a um colapso, como previsto pelo casal Tannehill?

A resposta é que o colapso tomou a forma de uma lenta e desalentadora decadência, que ainda estamos vivendo (uma possibilidade levantada pelos autores). Desde a década de 70, apesar da revolução eletrônica, e da entrada no mercado internacional de países do Leste Asiático com enorme potencial econômico, o poder de compra do trabalhador americano (e ocidental) tem consistentemente caído.

Hoje o “homem comum” tem acesso a bens mais sofisticados, e em muitos casos de melhor qualidade, porém isso vem ao preço de um endividamento que atingiu níveis insustentáveis. Quase tudo tem que ser comprado a crédito, especialmente bens duráveis, e particularmente moradias: os preços se descolaram da renda do trabalhador, e o que podia ser comprado com os ganhos de alguns anos agora necessita de uma vida inteira pagando parcelas. As mulheres tiveram que entrar no mercado de trabalho para complementar a renda dos maridos[17], e mesmo assim torna-se cada vez menos viável criar uma família. O setor de serviços, e especialmente o financeiro – que deveria ser uma função auxiliar do setor produtivo – explodiu, e se tornou um dos principais atratores de capital, talentos e energias, o que é eufemisticamente chamado de “economia pós-industrial”. As moedas fiduciárias, e as poupanças nelas denominadas, envergam sob o peso da irresponsabilidade fiscal dos governos, e de aberrações como taxas de juros negativas. O complexo político-burocrático-acadêmico metastizou, e todas as instituições se curvam aos seus ditames cada vez mais impraticáveis e até surreais.

Quando este prefácio estava sendo escrito, crises energéticas e inflacionárias, em adição à ameaça de guerra, estavam sacudindo os países mais ricos do Ocidente com uma intensidade que não era sentida desde a 2ª Guerra Mundial, demonstrando mais uma vez que a conta pode demorar, mas sempre chega. Mesmo as sociedades mais afluentes da história não podem desafiar a realidade. Pode ser que, assim como foi com os Tannehills, o colapso final ainda esteja décadas (séculos?) no futuro; pode ser que nenhum colapso jamais ocorra, e que as sociedades subjugadas por governos simplesmente continuem em decadência até se desintegrarem ou serem conquistadas. Prever o futuro é um negócio arriscado, mas é seguro dizer que, enquanto os povos e governos do mundo continuarem a crer que o problema está na falta de “vontade política”, e tentarem se salvar com mais e mais imposições arbitrárias, o resultado será sempre menos prosperidade, e mais instabilidade – para não falar de menos liberdade.

Conclusão

Desde a edição original de O Mercado da Liberdade, passou-se mais de meio século de ativismo libertário, e isso não nos trouxe significativamente mais perto de nos livrarmos da coerção institucionalizada. Na verdade, parece ter havido um recuo da liberdade no Ocidente em geral; e nesse período também houve diversos fracassos libertários notáveis.

Muitos desses fracassos podem ser atribuídos à atitude de “não se preocupe; no livre mercado, alguém, de alguma maneira, resolverá esse problema”. Entusiasmados com seu sistema elegante e promissor, muitos libertários parecem se esquecer de que é necessário energia, disciplina e convicção para fazer qualquer coisa acontecer[18], e passam a acreditar implicitamente que o fim do Estado é algo que ocorrerá de forma mais ou menos “automática”[19].

Esquecem-se também – e isto pode ser o pior – de que o homem é um ser limitado e falho, com propensões que dificultam a vida próspera e pacífica em sociedade: fraqueza, estupidez, arrogância, covardia, imprevidência, inveja, preguiça, cobiça. Estas, e muitas outras, são características que antecedem o Estado moderno, e continuarão existindo após seu fim.

A crítica dos conservadores ao laissez-faire puro merece ser ponderada seriamente: se a sociedade livre é assim tão próspera, estável, e influente, por que existem tão poucos exemplos notáveis de tais sociedades – e por que todas elas eventualmente adotaram algo parecido com um governo? A explicação de que as pessoas se enganam quanto à natureza da coerção institucionalizada é plausível. Mas em vista da história, é tolice acreditar que essas mesmas pessoas (e seus descendentes a perder de vista) possam rejeitar permanentemente a coerção, se forem educadas nos princípios da liberdade. É muito mais provável que alguém, depois de não muito tempo, as convença de que “desta vez será diferente”. O Velho Testamento conta que o próprio Deus tentou advertir os israelenses do custo de ser governado por um rei, e isso não foi o suficiente para dissuadi-los.

Além do otimismo improvável nos campos intelectual e político, a promessa de potencial econômico infinito implica a crença em um futuro utópico, ou até transcendental (chamados por alguns de “singularidade”); isso frequentemente custa aos libertários a atenção daqueles que (sabiamente) rejeitam o que parece ser “bom demais”.

O Mercado da Liberdade sofre de um caso crônico desse triunfalismo irrealista, mas paradoxalmente também tem grande mérito como o antídoto dessa atitude: ao aplicar a visão libertária às instituições que fundamentam a vida em sociedade, o livro demonstra ao leitor que os problemas e necessidades com os quais estamos familiarizados podem, plausivelmente, ser resolvidos através da organização e energia espontâneas da sociedade civil. E que essas soluções seriam superiores àquelas impostas por meio do monopólio da violência, que promete a solução de tudo, e entrega a corrupção de tudo.

É com esse espírito de buscar uma alternativa viável e promissora aos fracassos governamentais, sem perder de vista que a perfeição está fora de nosso alcance, que o leitor deve apreciar O Mercado da Liberdade.

 

 

  

Nilo Pascoaloto

São Paulo, 20 de outubro de 2022

 

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Notas

[1] Dado o alcance limitado das ideias libertárias, essa aversão a elas se manifesta, na maioria das vezes, na forma de silêncio obstinado ou insinuações desdenhosas; mas nas ocasiões em que um libertário consistente conseguiu se alçar a uma plataforma de alcance considerável, os guardiões da respeitabilidade foram céleres em declarar temporada de caça a esses hereges perigosos. Aqui cabe menção honrosa àqueles libertários “moderados”, sempre prontos a sacrificar princípios e colegas “excessivamente radicais” para ganhar favor em certos círculos. Os exemplos são bastante variados: Ludwig von Mises e a Sociedade Mont Pélerin; Murray Rothbard e suas desventuras com Ayn Rand e os irmãos Koch; Ron Paul e o establishment do Partido Republicano; e, no Brasil, os irmãos Chiocca e o bilionário Helio Beltrão.

[2] A visão autocongratulatória que os intelectuais têm de si mesmos, de agentes da luz conquistando as trevas da ignorância e guiando a humanidade para um futuro brilhante, é risível quando se constata o papel efetivamente desempenhado por intelectuais de carreira – jornalistas, professores, escritores: longe de serem originais ou controversos, sua tendência é reagir de forma sórdida e intolerante a qualquer sujeito que se aventure por caminhos ofensivos para as tendências do momento. (De fato, se os intelectuais se sobressaem em algo, é em serem extremamente sensíveis às mudanças nas tendências, e escarnecerem os mais lentos a se atualizarem.) Em todos os episódios mais funestos da história, batalhões de intelectuais medíocres trabalharam para justificar e acobertar os feitos execráveis dos poderosos e influentes. Essa tem sido a regra, não a exceção.

[3] Ver Murray Rothbard, A Anatomia do Estado, para um tratamento enxuto e enfático desse ponto.

[4] Esta não é uma afirmação leviana. Vários eventos históricos infames, incluindo alguns muito recentes, demonstram de forma cabal a passividade da pessoa comum, e sua submissão de bom grado à ideia de um sistema. O único requisito é a crença de que esse sistema foi imposto por alguém que “sabe o que está fazendo”. Se essa crença corresponde à realidade ou não é uma preocupação muito secundária.

[5] Incluindo, infelizmente, fortes traços de algumas idiossincrasias que mais atrapalham do que ajudam – como, por exemplo, o ateísmo militante (e intolerante) de Rand.

[6] Leonard Read, The Free Market and its Enemy, Foundation for Economic Education (https://fee.org/resources/the-free-market-and-its-enemy-2/), cap. 4: “I Don’t Know”

[7] Esta, também, é uma infeliz influência de Ayn Rand. Ironicamente, apesar de chamar sua visão de mundo de Objetivismo, e afirmar enfaticamente que era a única visão de mundo objetivamente correta, Rand tinha total despeito aos sistemas de moralidade individual das religiões, acreditando que a única dimensão moral relevante era a das interações interpessoais no âmbito do mercado. Ou seja, no que toca à questão moral mais crítica de todas – quais valores um indivíduo deve escolher como importantes – a maior Objetivista era uma… relativista!

[8] H.-H. Hoppe, Democracia – o deus que falhou (2001), capítulo Sobre o Conservadorismo e o Libertarianismo.

[9] Horrores e ignorância certamente houve, em um período de mil anos e em uma zona tão variada quanto a Europa. Mas foram amplamente exagerados e julgados fora de contexto pelos modernos. Por exemplo, os estudiosos cristãos medievais sabiam perfeitamente que a Terra era redonda, tendo herdado esse conhecimento dos gregos. Os camponeses não eram universalmente sujos, famintos e oprimidos, mas pessoas “comuns”, com famílias, opiniões, possessões e ambições. O latim era para poucos, mas muitos liam e escreviam no vernáculo.

[10] O livro Dominion, de Tom Holland, explora a questão de como o cristianismo “retrógrado” construiu os alicerces do humanismo ocidental.

[11] Stephan Kinsella, Contra a propriedade intelectual (2008).

[12] O sistema de patrocínio experimentou um ressurgimento considerável com o advento do crowdfunding, em mais um exemplo do mercado trazendo soluções pacíficas e eficazes para problemas que o governo tentava resolver com força bruta, sem sucesso.

[13] É especialmente absurda a comparação entre a mídia de notícias idealizada pelo casal Tannehill – implacáveis caçadores da verdade, obcecados em trazê-la à tona – e a realidade de 2022, em que a mídia tradicional se tornou um exército de estenógrafos e propagandistas para o Estado e seus simbiontes corporativos. Esforçam-se não para encontrar “furos” e novas histórias e escândalos, mas sim para enterrar e desacreditar qualquer história que desvie da narrativa oficial.

[14] Assim como a falta de sucesso abastece a inveja, o que sempre foi corretamente apontado por Ayn Rand e defensores do livre mercado em geral, o sucesso extraordinário abastece o outro lado da moeda: o medo da inveja, cujos efeitos podem ser tão funestos quanto, ou mais. Espelhando os pobres invejosos que acham justificável espoliar “democraticamente” os ricos, os próprios ricos justificam sua busca de poder político e manipulação da máquina estatal como algo naturalmente necessário para sua segurança e bem-estar, seja reprimindo diretamente seus inimigos, seja subornando-os com cargos ou programas de esmolas. Para um tratamento único desse tópico, com aplicações iluminadoras à análise libertária da aceitação do Estado pela sociedade, ver Envy: a Theory of Social Behaviour, de Helmut Schoeck.

[15] O próprio Sr. Libertário, Murray Rothbard, foi influenciado por esse otimismo, e chegou a aliar-se com a Nova Esquerda pós-modernista e desconstrucionista, acreditando que a questão da guerra e do alistamento militar obrigatório – exemplificada, à época, pela intervenção americana no Vietnã – era a próxima grande fronteira no avanço da liberdade, com o restante estando mais ou menos “encaminhado”.
Apesar de a guerra ser indiscutivelmente uma questão crucial para o libertarianismo, a crença de que a Nova Esquerda representava um “balanço líquido positivo” para a liberdade mostrou-se equivocada: os guerreiros culturais das décadas de 60 e 70, e seus sucessores, não só mostraram-se ineficazes em combater o entusiasmo bélico, como também revelaram-se como o próximo grande passo na decadência do Ocidente e da tradição liberal.

[16] H.-H. Hoppe, Democracia – o deus que falhou, capítulo “Sobre a livre imigração e a integração forçada”.

[17] O que também pode ser visto como “libertação”. A narrativa feminista tem que as mulheres eram infelizes e oprimidas como mães e donas de casa; porém isso não só é baseado em uma visão doentia, que desdenha a importância da família e do lar, como também tem grande dificuldade em explicar por que a entrada no mercado de trabalho, e a proliferação das mães solteiras, não parecem estar trazendo grandes felicidades às mulheres.

[18] O atual presidente do Mises Institute, Jeff Deist, tem sido pioneiro em focar na criticidade de construir vidas, carreiras, e relacionamentos viáveis e produtivos como precondição para o sucesso, não apenas do libertarianismo, mas de qualquer sociedade, ideia ou causa. E.g.: https://mises.org/wire/five-keys-professional-and-personal-development, particularmente o último item (“Promote People, Not Just Ideas”).

[19] Nesse sentido, comparam-se (para seu demérito) aos marxistas clássicos que criticavam o ativismo politico, acreditando que as “leis materialistas da história” trabalhariam sem necessidade de esforços direcionados. Os marxistas mais bem-sucedidos foram aqueles que desistiram de esperar pela atuação da História e resolveram pôr eles mesmos a mão na massa… com resultados horripilantes.
Esperemos que os libertários, animados por um princípio muito diferente da escatologia comunista de Marx, se mostrem menos sanguinolentos se algum dia conseguirem se organizar para tornar sua visão uma realidade.

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