Murray N. Rothbard
Marx, comunista milenarista
A chave para o enorme e intricado sistema de pensamento criado por Karl Marx é, no fundo, simples: Karl Marx era um comunista.
Uma afirmação aparentemente banal e passageira, se comparada com a miríade de conceitos carregados de jargão do marxismo em assuntos relacionados a filosofia, economia e cultura; e, no entanto, a devoção de Marx ao comunismo era seu foco crucial, de longe mais importante que a luta de classes, a dialética, a teoria da mais-valia e todo o resto.
O comunismo era o grande objetivo, a visão, o desiderato, o objetivo final que faria valer a pena todo o sofrimento da humanidade através da História. A História era a história do sofrimento, da luta de classes, da exploração do homem pelo homem. Assim como o retorno do Messias, na teologia cristã, porá um fim à História e estabelecerá um novo paraíso e uma nova terra, da mesma forma o advento do comunismo poria um fim à História humana.
E assim como para os cristãos pós-milenistas os homens, liderado pelos profetas e santos de Deus, estabelecerão um Reino de Deus na Terra (para os pré-milenistas, Jesus terá muitos assistentes humanos na tarefa de realizar tal reino), de forma semelhante, para Marx e outras escolas de comunistas, a humanidade, liderada por uma vanguarda de santos seculares, estabelecerá um Reino de Deus secularizado na terra.
Em movimentos religiosos messiânicos, o milênio é invariavelmente estabelecido por uma perturbação violenta, um Armageddon, uma guerra apocalíptica entre o bem e o mal. Após esse conflito titânico, será instalado nesta Terra um milênio, uma nova era de paz e harmonia, do reino da justiça.
Marx enfaticamente rejeitou aqueles socialistas utópicos que pretendiam chegar ao comunismo através de um processo gradual e evolutivo, com um avanço persistente do bem. Pelo contrário, Marx se inspirava nos apocalípticos: nos Anabatistas alemães e holandeses, pós-milenistas coercitivos do século XVI; nas seitas milenistas da Guerra Civil Inglesa; e nos vários grupos de cristãos pós-milenistas que prediziam um Armageddon sangrento nos Últimos Dias, antes de o milênio ser estabelecido.
De fato, como os apocalípticos pós-milenistas se recusavam a esperar que a benevolência e santidade se apossassem gradualmente da humanidade, eles juntaram seu coro ao dos pré-milenistas na crença de que apenas uma luta final apocalíptica entre o bem e o mal, entre santos e pecadores, poderia trazer o milênio. A revolução sangrenta e mundial, que na versão de Marx seria levada a cabo pelo proletariado oprimido, seria o instrumento inevitável para o advento de seu milênio, o comunismo.
Na verdade, Marx, assim como os pré-milenistas (ou “milenaristas”), foi além e afirmou que o reino do mal na Terra atingiria um pico logo antes do apocalipse (a “escuridão antes da aurora”). Para Marx e para os milenaristas, escreve Ernest Tuveson,
“O mal no mundo deve alcançar sua maior altura antes de ser completamente varrido por uma enorme e súbita perturbação. (…)
O pessimismo milenarista sobre a perfectibilidade do mundo atual é complementado por um supremo otimismo. A História, acredita o milenarista, opera de tal forma que, quando o mal tiver atingido seu máximo, a situação desesperadora será revertida. O estado original e harmonioso da sociedade, uma espécie de ordem igualitária, será restabelecido,”[1]
Em contraste com os vários grupos de socialistas utópicos, e em comum com os religiosos messiânicos, Karl Marx não esboçou as características de seu futuro comunista com nenhum grau de detalhe em particular. Não cabia a Marx, por exemplo, declarar quantas pessoas haveriam em sua utopia, a forma e localização de suas moradias, a organização de suas cidades. Em primeiro lugar, há algo que cheira a charlatanismo em utopias desenhadas minuciosamente pelos seus criadores. Mas, igualmente importante, detalhar os aspectos de sua sociedade ideal destrói o ar agourento e misterioso do futuro supostamente inevitável.
Mas certas características são geralmente semelhantes em todas as visões do comunismo. A propriedade privada é eliminada, o individualismo é descartado, a individualidade é esmagada, toda a propriedade é comunal, e as unidades individuais do novo organismo coletivo são de alguma forma tornadas “iguais” umas às outras.
Marxistas e estudiosos do marxismo tendem a deixar passar despercebida a importância do comunismo para a totalidade do sistema marxista.[2] No marxismo “oficial” dos anos 1930 e 1940, o comunismo foi marginalizado em favor de uma ênfase supostamente “científica” na teoria do valor-trabalho, na luta de classes, e na interpretação materialista da História. E a União Soviética, mesmo antes de Gorbachev, às voltas com os problemas práticos do socialismo, tratava o objetivo comunista mais como um constrangimento do que outra coisa.[3]
Similarmente, stalinistas como Louis Althusser desprezaram a ênfase do Marx pré-1848 no “humanismo”, filosofia, e “alienação”, como pouco científica e pré-Marxista. Por outro lado, nos anos 1960 tornou-se moda entre marxistas da Nova Esquerda, como Herbert Marcuse, declarar que o Marx posterior, o “economista científico”, era um prelúdio racionalista ao despotismo, e uma traição da ênfase que o jovem Marx dera ao humanismo e à “liberdade” humana.
Em contraste, eu afirmo, junto ao crescente consenso em estudos sobre Marx[4], que ao menos desde 1844 (e possivelmente antes) houve apenas um Marx, e que esse Marx, o “humanista”, estabeleceu o objetivo que perseguiria pelo resto de sua vida: o triunfo apocalíptico do comunismo revolucionário. De acordo com essa visão, as explorações da economia capitalista feitas posteriormente por Marx eram apenas uma busca pelo mecanismo, pela “lei da História”, que supostamente tornaria esse triunfo inevitável.
Nesse caso, torna-se vital investigar a natureza do objetivo supostamente humanista do comunismo; qual é o real significado dessa alegada “liberdade”; e se o histórico sangrento dos regimes marxistas-leninistas do século XX estava implícito na concepção marxista de liberdade.
O marxismo é uma crença religiosa. Essa acusação tem sido comum entre os críticos de Marx, e como o marxismo é um inimigo explícito da religião, esse aparente paradoxo ofenderia a muitos, já que representa um desafio direto à suposta sobriedade científica das fundações marxistas. Mas por estranho que pareça, atualmente, em uma era de teologias da libertação e outros flertes entre o marxismo e a Igreja, os próprios marxistas frequentemente fazem a mesma proclamação.
Certamente, uma indicação de como o marxismo funciona como uma religião é o zelo dos marxistas em preservar seu sistema contra erros ou falácias óbvias. Assim, quando as predições marxistas falham, mesmo sendo derivadas de supostas leis científicas da História, os marxistas se reviram para mudar os termos da predição original.
Um exemplo infame é a lei de Marx do empobrecimento da classe trabalhadora sob o capitalismo. Quando ficou constrangedoramente claro que o padrão de vida dos trabalhadores sob o capitalismo industrial estava subindo ao invés de cair, os marxistas recuaram para a visão de que o que Marx “realmente” quisera dizer por empobrecimento não era a indigência, mas sim a pobreza relativa. Um dos problemas dessa linha de defesa é que o empobrecimento supostamente seria o motor da revolução proletária, e é difícil imaginar os trabalhadores apelando para uma revolução sangrenta porque eles têm apenas um iate por pessoa, enquanto os capitalistas têm cinco ou seis.
Outro exemplo esclarecedor foi a resposta de muitos marxistas à demonstração conclusiva de Böhm-Bawerk de que a teoria do valor-trabalho não era capaz de explicar a precificação de mercadorias no capitalismo. Novamente, os marxistas recuaram e disseram que o que Marx realmente queria[5] não era explicar os preços de mercado, mas meramente demonstrar que o trabalho imbui as mercadorias de um “valor” misticamente inerente, mas o qual é irrelevante para o funcionamento de um mercado capitalista. Se esse for o caso, é difícil entender por que Marx dedicou boa parte de sua vida a uma tentativa malsucedida de completar o Capital e resolver o problema do valor versus preço.
Talvez o comentário mais apropriado sobre os defensores incansáveis da teoria do valor de Marx seja aquele do afiado Alexander Gray, que também toca em outro aspecto de Marx como profeta religioso:
“Testemunhar Böhm-Bawerk ou o Sr. [H.W.B.] Joseph cortando Marx em pedacinhos não passa de um prazer pedestre; pois esses são autores pedestres, pedestres a ponto de se agarrarem ao significado das palavras, não percebendo que o que Marx realmente quis dizer não tem necessariamente nenhuma conexão com o que Marx indiscutivelmente disse. Testemunhar Marx rodeado por seus amigos é, por outro lado, um prazer de outra ordem. Pois é bastante claro que nenhum deles realmente sabe o que Marx realmente quis dizer; eles estão inclusive em dúvida considerável sobre o assunto do qual ele está falando; há indicações de que o próprio Marx não sabia o que estava fazendo.
Em particular, não há ninguém que nos explique o que Marx achava que entendia por “valor”. O Capital é, em um sentido, um tratado de três volumes, expondo uma teoria do valor e suas muitas aplicações. No entanto, Marx nunca se digna a explicar o que ele quer dizer por “valor”, o qual dessa forma torna-se o que quer que qualquer um ache que deve ser, à medida que desenrola o pergaminho de 1867 a 1894. (…)
Afinal, do que estamos falando: economia, slogans, mitos ou encantamentos? Marx, como se diz, era um profeta… e talvez essa sugestão seja a melhor explicação. Não se pode aplicar a Jeremias ou Ezequiel os testes aos quais homens menos inspirados estão sujeitos. Talvez o erro do mundo, e da maioria dos críticos, tenha sido o de não enxergar Marx como o profeta que era – um homem acima da lógica, balbuciando palavras crípticas e incompreensíveis, que cada homem pode interpretar da forma que escolher.”[6]
Teologia da reabsorção
Mas a natureza do marxismo como religião chega mais fundo do que as tolices e evasões dos marxistas,[7] ou a natureza críptica e frequentemente ininteligível dos textos marxistas. Pois o objetivo deste artigo é demonstrar que o objetivo crucial – o comunismo – é uma versão ateísta de uma escatologia religiosa particular; que o caminho supostamente inevitável que leva até lá – a dialética – é uma forma ateísta das mesmas leis religiosas da História; e que o suposto problema central do capitalismo, conforme percebido pelos marxistas “humanistas” – o problema da “alienação” – é uma versão ateísta da mesmíssima ânsia metafísica direcionada ao universo criado.
Até onde sei, não existe um nome popularmente adotado para designar essa religião tragicamente influente. Um nome é “teologia de processo”, mas eu irei chamá-la de “teologia da reabsorção”, pois a palavra “reabsorção” reforça o ponto final pretensamente inevitável da História humana, assim como seu suposto início, em uma união com Deus que antecede a Criação.
Como aponta Leszek Kolakowski em seu trabalho monumental sobre o marxismo, a teologia da reabsorção começa com o filósofo grego do século III, Plotinus, e passa de Plotinus para alguns cristãos platonistas, onde se consolida como uma heresia cristã. Essa heresia tende a borbulhar repetidamente sob a superfície nos trabalhos de certos místicos cristãos, como o filósofo do século IX John Scotus Erigena, e o Meister do século XIV Johannes Eckhart.[8]
A natureza e as implicações mais profundas da teologia da reabsorção podem ser melhor entendidas contrastando essa heresia com a ortodoxia cristã. Começamos do começo – com o estudo da Criação. Por que Deus criou o universo? A resposta cristã ortodoxa é que Deus criou o universo por motivo de seu amor benevolente e transbordante por suas criaturas. A criação, dessa forma, foi boa e maravilhosa.
A mosca no verniz foi a desobediência do homem às leis de Deus, pecado pelo qual ele foi expulso do Éden. O homem só pode se redimir dessa Queda pela Encarnação de Deus em carne humana, e o sacrifício de Jesus na cruz. Note que a Queda tem natureza moral, e que a Criação em si continua sendo vista como fundamentalmente boa. Note também que, no cristianismo ortodoxo, cada indivíduo humano, feito à imagem de Deus, é de suprema importância, e a salvação de cada indivíduo torna-se uma preocupação crítica.
A teologia da reabsorção, por outro lado, é baseada em um entendimento muito diferente da Criação. Uma de suas bases é que, antes da Criação, o Homem – evidentemente a espécie-coletividade homem, e não cada indivíduo – existia em alegre união, uma espécie de aglomerado cósmico, com Deus e com a natureza. Na visão cristã ortodoxa, Deus, ao contrário do homem, é perfeito, portanto, ao contrário do homem, não age com o objetivo de melhorar sua situação. Mas para os reabsorcionistas, Deus age analogamente aos humanos: Ele age devido ao que Mises chamou de “sensação de inquietação”, uma insatisfação com sua presente situação. Deus, em outras palavras, cria o universo devido à solidão, insatisfação, ou, mais geralmente, para desenvolver suas faculdades pouco desenvolvidas. Deus criou o universo devido a uma necessidade que sentia.
Na versão reabsorcionista, a Criação, longe de ser boa e maravilhosa, é essencial e metafisicamente má. Pois ela gera diversidade, individualidade, e separação, portanto, expulsa o Homem de sua amada união cósmica com Deus. O homem é agora permanentemente “alienado” em relação a Deus, a alienação fundamental; e também é alienado em relação a outros homens e à natureza.
É esta separação cósmica metafísica que está no coração do conceito marxista de “alienação”, e não, como é frequente pensar hoje, um descontentamento pessoal por não controlar a fábrica em que se trabalha, por não ter acesso à riqueza ou poder político. A alienação é uma condição cósmica, e não uma reclamação psicológica. Para os reabsorcionistas, os problemas cruciais do mundo se devem não a falhas morais, mas à natureza da própria Criação.
O budismo e outras religiões panteístas, assim como muitos místicos, oferecem uma saída dessa alienação cósmica. Para eles, Deus, Homem e Natureza são e continuarão a ser um só, e os indivíduos humanos podem recapturar essa união através de treinamento, até que o Nirvana seja atingido e o ego obliterado – ao menos temporariamente.[9]
Mas a saída oferecida pelos reabsorcionistas é diferente. Primeiramente, é uma saída oferecida apenas ao Homem como espécie, e não a qualquer indivíduo em particular; segundo, o caminho é uma lei da História, inevitável e religiosamente determinada. Pois para os reabsorcionistas, a Criação tem um aspecto bom: Deus e cada um dos homens desenvolvem suas faculdades, e expandem seus potenciais ao longo da História. Na verdade, a História é um processo através do qual esses potenciais são atingidos: uma jornada que levará tanto Deus quanto o homem à perfeição.
Então, finalmente – e aqui nós chegamos à escatologia, ou ciência do Fim dos Tempos – haverá eventualmente uma grande reunião, uma reabsorção, em que Deus e Homem são finalmente não apenas reunidos, mas reunidos em um nível elevado à perfeição. Os dois aglomerados cósmicos – Deus e Homem (e, presumivelmente, também a natureza) se reencontram e fundem, em um nível mais exaltado. O doloroso estado da criação agora chega ao fim, a alienação finalmente termina, e o Homem retorna à sua Origem para existir em um nível mais elevado após o fim da Criação. A História, e o mundo, já não são mais.
Uma característica crucial da reabsorção é que esse “aperfeiçoamento” e “reunião” obviamente acontecem apenas em nível coletivo, para a espécie toda. O homem como indivíduo não é nada, uma mera célula no grande organismo coletivo Homem; somente nesse sentido podemos dizer que o “homem” progride ou melhora a “si mesmo” através dos séculos, sofre alienação de “seu” estado pré-Criação, e finalmente retorna à “sua” união com Deus em um nível superior. A relação com o objetivo marxista do comunismo já está ficando clara; a “alienação” eliminada pelo inevitável fim comunista da História é aquela da espécie-coletividade homem, cada homem finalmente se unindo com outros homens e com a natureza (a qual, para Marx, foi “criada” pela espécie-coletividade humana, que dessa forma substitui Deus como criador).
Tratarei mais à frente do comunismo como objetivo da História. Aqui focaremos no processo pelo qual todos esses eventos devem inevitavelmente ocorrer. Primeiro, há um aglomerado cósmico pré-Criação. A partir desse aglomerado, surge um estado de coisas muito diferente: um universo criado, com Deus, homem e natureza existindo separadamente.
Aqui estão as origens da “dialética” mágica de Hegel e Marx: um estado das coisas de alguma forma causa o surgimento de um estado contrastante. Na língua alemã, Hegel, o mestre da dialética, usou o crucial conceito Aufhebung, ou “elevação”. Um termo ambíguo o suficiente para abranger uma mudança súbita que é, de uma vez só, preservação, transcendência, e criação de um contraste com a condição original. O termo é tradicionalmente traduzido como “negação” nas obras de Hegel e Marx, mas isso torna a teoria ainda mais absurda do que realmente é – provavelmente “transcendência” seria uma palavra melhor.[10]
Assim, como de hábito, a dialética consiste de três estágios. O Estágio Um é o estado original do aglomerado cósmico pré-Criação, com Homem e Deus em união contente e harmoniosa, mas nenhum deles muito desenvolvido. Então a mágica da dialética faz o seu trabalho, o Estágio Dois ocorre, e Deus cria o homem e o universo. Mas então, finalmente, com o desenvolvimento do homem e de Deus tendo chegado ao seu ápice, o Estágio Dois cria sua própria Aufhebung, sua transcendência para seu oposto ou negação: o Estágio Três, a reunião de Deus e Homem no “êxtase da união”, e o fim da História.
O processo dialético através do qual um estado das coisas dá origem a um estado muito diferente é, para os reabsorcionistas, um desenvolvimento místico, porém inevitável. Não havia necessidade de eles explicarem o mecanismo exato. De fato, uma das maiores influências de Hegel e outros pensadores reabsorcionistas foi um dos místicos cristãos mais recentes dessa tradição: o sapateiro alemão do início do século XVII, Jakob Boehme. “Panteizando” a dialética, Boehme declarou que não foi a vontade de Deus, mas sim alguma força primal que deu origem à dialética cósmica da Criação e da História.
Como foi, perguntou Boehme, que o mundo pré-Criação se transcendeu para a Criação? Antes da Criação, ele respondeu, havia uma fonte primal, uma unidade eterna, um Nada (literalmente: Ungrund) indistinto e indiferenciado. Estranhamente, este Nada tinha dentro de si uma motivação, um Nisus, uma necessidade de autorealização. Essa necessidade, afirmou Boehme, deu origem ao seu oposto, a Vontade. A interação da Vontade com o Nisus deu origem ao universo a partir do Nada.[11]
Fortemente influenciado por Jakob Boehme foi o comunista místico inglês, Gerrard Winstanley, fundador da seita dos Diggers durante a Guerra Civil Inglesa. Filho de um comerciante têxtil falido, que havia caído ao status de trabalhador agrícola, Winstanley no início de 1649 teve uma visão mística do mundo comunista ideal do futuro. Originalmente, de acordo com essa visão, uma versão de Deus havia criado o universo; mas o espírito do “egoísmo”, o próprio Demônio, havia entrado no homem e causado o surgimento da propriedade privada e da economia de mercado.
A maldição da individualidade, opinou Winstanley, era “o princípio do interesse privado”, ou propriedade privada, que levava os homens a comprarem e venderem, e dizerem “isto é meu”. O fim do comunismo original e sua fragmentação em propriedades privadas significara o fim da liberdade universal, e a Criação fora posta “sob a maldição da escravidão, infelicidade, e lágrimas”. Na Inglaterra, Winstanley afirmou absurdamente, a propriedade fora comunista até a Conquista Normanda de 1066, que criara a instituição da propriedade privada.[12]
Mas logo, declarou Winstanley, o “amor” universal eliminaria a propriedade privada, e assim a Terra retornaria à “propriedade comum, como fora no princípio (…) tornando a Terra um único armazém, e cada homem e mulher vivos (…) como membros de uma única família.” Este comunismo e igualdade material absoluta levariam o mundo ao milênio, “um novo paraíso, e uma nova terra”.[13]
Inicialmente, Winstanley acreditava que pouca ou nenhuma coerção seria necessária para estabelecer e manter sua sociedade comunista. Logo, porém, ele percebeu, no esboço completo de sua utopia, que todo trabalho assalariado e comércio teria que ser proibido, sob pena de morte. Winstanley estava perfeitamente disposto a levar seu programa até esse ponto. Todos deveriam contribuir com o armazém comum, e dele retirar seus bens, e a pena de morte seria aplicada a todo uso de dinheiro, e a toda compra ou venda. O “pecado” da ociosidade seria, é claro, combatido através de trabalho forçado, pelo bem da sociedade comunista.
Essa ênfase generalizada à função do carrasco torna um tanto quanto sanguinolenta a seguinte afirmação de Winstanley: “todas as penas aplicadas o são apenas para fazer o criminoso viver na comunidade do justo amor de todos por todos.” Todos seriam educados no “amor” em escolas gratuitas e compulsórias providas pelo Estado, principalmente em trabalhos úteis, e não em artes, bem como por “ministros” eleitos pelo público para pregarem sermões seculares defendendo o novo sistema.[14]
Hegel como panteísta reabsorcionista
Todos sabem que Marx era essencialmente Hegeliano em filosofia, mas a influência exata que Hegel exerceu sobre Marx é menos bem compreendida. O “sucesso” de Hegel foi “panteizar” completamente a teologia da reabsorção. Poucos percebem que Hegel foi mais um, o mais elaborado e hiperbólico, de uma legião de autores que constituíam o influente movimento Romântico na Alemanha e na Inglaterra ao final do século XVIII e primeira metade do XIX.[15]
Hegel estudou teologia na Universidade de Tübingen, e muitos de seus amigos e colegas Românticos, como Schelling, Schiller, Holderlin, e Fichte começaram como estudantes de teologia, muitos deles também em Tübingen.[16]
A adição Romântica à narrativa reabsorcionista foi proclamar que Deus era na verdade o homem. O homem, na realidade o Deus-Homem, criou o universo. Mas a imperfeição do homem, sua falha, foi não perceber que ele na realidade é Deus. O Deus-Homem começa sua vida na História não consciente do fato vital de que ele é Deus. Ele é alienado, separado do conhecimento crucial de que ele e Deus são um só, de que ele mesmo criou e continua a sustentar o universo.
A História, então, é o processo inevitável através do qual o Deus-Homem desenvolve suas faculdades, realiza seu potencial, até aquele feliz dia em que ele atinge o Conhecimento Absoluto, isto é, a compreensão completa de que ele é Deus. Nesse ponto, o Deus-Homem finalmente atinge seu potencial, tornando-se um ser infinito sem restrições, e dessa forma põe um fim à História. A dialética da História ocorre, como antes, em três estágios: o pré-Criação; o pós-Criação de alienação e desenvolvimento; e a reabsorção final em um estado ilimitado e de absoluto autoconhecimento, que culmina e põe um fim ao processo histórico.
Por que, então, o Deus-Homem de Hegel (também chamado por Hegel de “ser-mundial” ou “espírito do mundo” [Weltgeist]) criou o universo? Não por benevolência, mas por uma necessidade que sentia de se tornar consciente de si próprio como ser-mundo. Esse processo de crescente compreensão é atingido através da atividade criativa através da qual o ser-mundo se externaliza. Primeiro essa externalização ocorre quando o Deus-Homem cria a natureza, e subsequentemente pela autoexternalização através da História humana.
Ao construir a civilização, o Homem aumenta o conhecimento de sua própria divindade; dessa forma, ao longo da História o Homem gradualmente põe um fim à sua “autoalienação”, que para Hegel era, ipso facto, a alienação do homem em relação a Deus. É crucial para a doutrina Hegeliana que o Homem é alienado, e que ele percebe o mundo como hostil, porque o mundo não faz parte dele próprio. Todos esses conflitos são resolvidos quando o homem percebe, finalmente, que ele é o mundo, e vice-versa.
Mas por que o homem de Hegel é tão neurótico, a ponto de ver tudo que não é ele próprio como estranho e hostil? A resposta é crucial para a mística Hegeliana. É porque Hegel, ou o Homem de Hegel, não suporta a ideia de ele próprio não ser Deus, e portanto não ser infinito no espaço, sem limites ou restrições. O fato de qualquer outro ser ou objeto existir implica que ele mesmo não é infinito nem divino. Resumindo, a filosofia de Hegel é megalomania solipsista em escala cósmica. O Prof. Robert C. Tucker descreve a situação com sua habitual acuidade:
“Para Hegel a alienação é a finitude, e a finitude por sua vez é uma prisão. A sensação de autoestranhamento na presença de um mundo aparentemente objetivo é uma experiência de escravidão. (…) O espírito, quando confrontado com um objeto, ou um ‘outro’, torna-se ipso facto consciente de que ele é apenas um ser finito, que se estende até um certo ponto e não além. O objeto, portanto, é um ‘limite’ (Grenze). E um limite, já que contradiz a noção que o espírito tem de si mesmo como um ser absoluto, i.e., um ser-sem-limites, é necessariamente visto como uma ‘barreira’ ou ‘grilhão’ (Schranke). (…) Em seu confronto com um objeto aparente, o espírito sente-se aprisionado pela limitação. Ele experimenta o que Hegel chama de “sofrimento da finitude”. (…)
Em sua concepção singular, Hegel acredita que ‘liberdade’ significa a consciência de si mesmo como não tendo fronteiras; é a ausência de objetos limitantes, que não fazem parte de si próprio. (…)
Por isso, o crescimento do autoconhecimento do espírito através da História pode ser alternativamente descrito como o progresso da consciência da liberdade”.[17]
A dialética histórica de Hegel não tinha apenas três estágios; a história progredia em uma série de estágios, cada um dos quais era avançado dramaticamente por um processo de Aufhebung. É evidente que o “homem” que cria o mundo, que avança seu “auto”-conhecimento, e que finalmente “retorna” à sua “Origem” em um êxtase de autoconhecimento não é o insignificante homem individual, mas o Homem como espécie coletiva. Mas, para Hegel, cada estágio do progresso é movido por grandes indivíduos, homens “mundiais-históricos”, que incorporam os atributos do Absoluto mais que outros homens, e que agem como agentes significativos da próxima Aufhebung, a elevação do Deus-Homem ou “alma-mundial” até seu próximo grande avanço rumo ao “autoconhecimento”.
Assim, em uma época em que a maioria dos patriotas prussianos reagiam violentamente contra as conquistas imperiais de Napoleão, e mobilizavam suas forças contra ele, Hegel escreveu em êxtase a um amigo sobre ter visto “o Imperador – esta alma-mundial”, cavalgando rua abaixo; pois Napoleão, mesmo que inconscientemente, estava realizando a missão histórico-mundial de catalisar a formação de um Estado prussiano forte.[18]
É interessante que Hegel chegou à sua ideia da “astúcia da Razão”, de grandes indivíduos agindo inconscientemente como agentes da alma-mundial ao longo da História, ao folhear os trabalhos do Reverendo Adam Ferguson, cuja frase sobre os eventos serem “o produto da ação humana, mas não dos desígnios humanos” foi tão influente no pensamento de F. A. Hayek e seus discípulos.[19] Na área econômica, também, Hegel aprendeu sobre a suposta angústia da alienação devido à separação – isto é, especialização e divisão do trabalho – do próprio Ferguson, através de Friedrich Schiller e do seu bom amigo Adam Smith, em seu A Riqueza das Nações.[20]
É fácil perceber como a doutrina Hegeliana-reabsorcionista da unidade-bom, separação-ruim ajudou a formar o objetivo Marxista do comunismo, o estágio final da História, no qual o indivíduo é totalmente absorvido pela coletividade, atingindo, desse modo, o estágio da verdadeira “liberdade” do homem-coletivo.. Mas também houve influências mais específicas. Dessa forma, Hegel antecipava a ideia Marxista do comunismo primitivo, contente e integrado mas pouco desenvolvido, o qual foi então estraçalhado pelo capitalismo desenvolvedor, mas alienador e voraz.
Seguindo seu amigo e mentor, o escritor Romântico Friedrich Schiller, Hegel, em um artigo escrito em 1795, louvou a alegada homogeneidade, harmonia e unidade da Grécia antiga, supostamente livre da alienante divisão do trabalho. A consequente Aufhebung, apesar de ter levado à expansão do comércio, padrões de vida, e do individualismo, também destruiu a maravilhosa unidade da Grécia, e fragmentou radicalmente o Homem. Para Hegel, o próximo estágio inevitável da História reintegraria o homem e o Estado.
O Estado era essencial para Hegel. Novamente antecipando Marx, ele acreditava que era particularmente importante que o Homem – o organismo coletivo – superasse os caprichos cegos e inconscientes do destino e tomasse controle do mesmo através do Estado.
Hegel insistia que, para o Estado desempenhar sua função vital, ele deveria ser guiado por uma filosofia abrangente, e de fato por um Grande Filósofo, para que o exercício de seu poder tivesse a coerência necessária. De outra forma, explica o Prof. Plant, “tal Estado, desprovido de um significado filosófico, apareceria meramente como uma imposição arbitrária e opressiva à liberdade dos indivíduos.” Mas se, ao contrário, o mesmo estivesse armado com a filosofia Hegeliana e com o próprio Hegel como seu grande líder, “este aspecto invasivo do Estado progressista moderno desapareceria e ele seria visto não como uma imposição, mas como um desenvolvimento da autoconsciência.”[21]
Armado, então, com essa filosofia e com esse filósofo, o Estado moderno, especialmente o Estado moderno da Prússia, poderia assumir seu lugar divinamente ordenado no ápice da civilização e da História humana, como Deus na Terra. Assim, “O Estado moderno, (…) quando entendido filosoficamente, poderia ser visto como a mais alta expressão do Espírito, ou Deus no mundo contemporâneo.” O Estado, então, é “uma manifestação suprema da atividade de Deus no mundo”; “O Estado é a Ideia Divina expressada na Terra”; “O Estado é a marcha de Deus pelo mundo”; “O Estado é a vida moral realizada nesta existência”; o “Estado é a realidade do Reino de Deus”. E, finalmente, “O Estado é a Vontade de Deus.”[22]
Para Hegel, de todos os formatos do Estado, a monarquia – como na Prússia de seu tempo – é o melhor, já que permite a todos os seus súditos serem “livres” (no sentido Hegeliano) ao submergirem seus seres na substância divina, que é o Estado monárquico e autoritário. As pessoas apenas são “livres” como partículas insignificantes dessa substância divina. Como escreve Tucker,
“A concepção de liberdade de Hegel é totalitária no sentido literal da palavra. O ser-mundial deve sentir-se como a totalidade da existência, ou, nas palavras do próprio Hegel, deve elevar a si mesmo a uma “totalidade autoabrangente”, para atingir a consciência da liberdade”.[23]
Todo credo determinista cuidadosamente constrói uma rota de escape para o próprio determinista, para que ele possa se colocar acima dos fatores determinantes, expor sua filosofia e convencer seus pares. Hegel não era exceção, mas a dele foi inquestionavelmente a mais grandiosa de todas as rotas de escape. Pois, de todos os personagens mundiais-históricos, as encarnações do Deus-Homem, cuja tarefa é trazer ao mundo o próximo estágio da dialética, quem poderia ser maior, mais em sintonia com a divindade, que o Grande Filósofo em pessoa, que nos trouxe o conhecimento de todo esse processo, e que dessa forma foi ele mesmo capaz de completar a compreensão final do Absoluto, e da divindade do Homem?
E não seria o criador da filosofia crucial sobre o homem e o universo superior, em um certo sentido, à própria filosofia? E assim, se a espécie humana é Deus, não seria ele, o grande Hegel, em um sentido profundo o Deus dos Deuses?[24]
Finalmente, por obra do acaso e da dialética, Hegel chegou exatamente no lugar e hora apropriada para tomar seu lugar como Grande Filósofo no maior, mais nobre, e mais desenvolvido Estado autoritário na história do mundo: a monarquia prussiana do Rei Friedrich Wilhelm III. Se apenas o rei aceitasse sua missão histórico-mundial, Hegel, de braços dados com o rei, poderia inaugurar o autoconhecimento derradeiro do Deus-Homem Absoluto. Juntos, Hegel e o rei poriam um fim à história humana.
O rei, por sua parte, estava mais do que disposto a aceitar sua nomeação divina. Quando forças reacionárias tomaram a Prússia em 1815, elas precisavam de um filósofo oficial para exortar os súditos prussianos a idolatrarem o Estado, e assim combater os ideais da Revolução Francesa de individualismo, liberdade, razão, e direitos naturais. Hegel foi levado à nova e grandiosa Universidade de Berlim em 1818 para tornar-se o filósofo oficial daquele monumento acadêmico ao Estado autoritário da Prússia.
Apesar de ter sido particularmente influente na Prússia e nos setores protestantes da Alemanha, o Hegelianismo compartilhava características, e influenciou os escritores Românticos na Inglaterra. Virtualmente toda a produção poética de Wordsworth tinha como objetivo apresentar o que ele chamava de um “alto argumento Romântico”, procurando transcender e confrontar o argumento “heroico” ou “grandioso” de Milton, o qual expunha a escatologia cristã ortodoxa, na qual os homens, como indivíduos, seriam retornados ao Paraíso ou condenados ao Inferno por ocasião do Segundo Advento de Jesus Cristo. A esse “argumento”, Wordsworth contrapôs sua própria visão panteísta da espiral ascendente da História na qual o Homem, enquanto espécie, inevitavelmente retorna à sua origem e liberta-se da alienação cósmica.
Também dedicados à visão de Wordsworth eram Coleridge, Shelley, e Keats. É instrutivo que todos esses homens eram cristãos hereges, convertidos a partir da teologia cristã explícita: Wordsworth havia sido treinado para ser um padre Anglicano; Coleridge tinha sido um pregador independente, conhecedor do neoplatonismo e dos trabalhos místicos de Jakob Boehme; e Shelley havia estudado intensamente a Bíblia.
Finalmente, o escritor britânico tempestuoso, conservador e estatista Thomas Carlyle prestou honras ao mentor de Hegel, Friedrich Schiller, escrevendo uma biografia do mesmo em 1825. Daí em diante, os influentes escritos de Carlyle foram baseados profundamente na visão Hegeliana. Unidade é bom, diversidade e separação são ruins e doentias; a ciência e o individualismo constituem divisão e desmembramento.
A individualidade, resmungava Carlyle, é a alienação em relação à natureza, aos outros, e a si próprio. Mas um dia, profetizou Carlyle, chegará a ruptura, o renascimento espiritual do mundo, liderado por personagens mundiais-históricos (“grandes homens”), através do qual o Homem retornará ao seu início, para um mundo amistoso e não hostil, por meio de uma completa “aniquilação do Eu” (Selbst-todtung).[25]
Finalmente, em Passado e Presente (1843), Carlyle aplicou sua visão profundamente anti-individualista a assuntos econômicos. Ele atacou o egoísmo, a ganância material, e o laissez-faire, os quais, ao encorajar a separação dos homens, havia levado a um mundo que “tornou-se como um estranho sem vida, e separado também de outros seres humanos em uma ordem social em que o ‘pagamento em dinheiro é (…) o único vínculo do homem com o homem’”. Em oposição a esse malévolo “vínculo do dinheiro” estava a relação familiar com a natureza e com os pares, a relação de “amor”. O palco estava pronto para a entrada de Karl Marx.[26]
Comunismo como o Reino de Deus na Terra: de Joachim a Müntzer
Até aqui, temos lidado com a teologia da reabsorção como a precursora crucial do comunismo escatológico e religioso de Marx. Mas há outra linha de pensamento importante, que às vezes está presente na primeira, e que também faz parte da visão escatológica do marxismo: o milenialismo messiânico, ou quiliasmo, o estabelecimento de um Reino de Deus comunista na Terra.
Pela história afora, o cristianismo teve que confrontar a questão do milênio: o reino de mil anos de Deus na Terra. Particularmente em algumas partes nebulosas da Bíblia como o livro de Daniel e o livro da Revelação, existem sugestões de um milenar Reino de Deus na Terra antes do Julgamento Final e do fim da História humana.
A interpretação cristã ortodoxa foi traçada pelo grande Santo Agostinho no início do 5o século, e tem sido aceita desde então pelas principais Igrejas cristãs: a Católica Romana, a Luterana, discutivelmente por Calvino, e ao menos pela ala holandesa da Igreja calvinista. Essa linha ortodoxa sustenta que o milenar Reino de Deus na Terra (RDT) é estritamente uma metáfora para a Igreja cristã, que reina sobre a Terra apenas no sentido espiritual. A realização material do Reino de Deus na Terra virá apenas com o Dia do Julgamento, e dessa forma estará confinada ao Paraíso.
A ortodoxia cristã sempre alertou que interpretações literais do RDT, o que o falecido teórico cristão ortodoxo Erich Voegelin chamava de “imanentizar o éscato” – trazer o éscato até a Terra – estariam fadadas a criar graves problemas sociais.
Para começar, a maioria das versões de como o RDT viria a ser são apocalípticas. O RDT será precedido por um terrível Armageddon, uma guerra titânica entre o bem e o mal, em que o bem finalmente, inevitavelmente, triunfará.
Um motivo para essa insistência no apocalipse é o problema fundamental enfrentado por todos os teóricos do RDT. O RDT, por definição, será uma sociedade de santos, de pessoas perfeitas. Mas se isso é verdade, o que haveria de se fazer com os pecadores, que infelizmente são legião? Para que seja estabelecido o RDT, primeiramente deve haver algum tipo de expurgo apocalíptico dos pecadores, para limpar o terreno para a sociedade de santos.
Variações “pré-milenistas” e “pós-milenistas” de teóricos do apocalipse resolvem esse problema de formas diferentes. Os pré-mils, que acreditam que o Segundo Advento de Jesus Cristo precederá o RDT, e que Jesus governará o Reino auxiliado pelos santos, veem a purgação como sendo levada a cabo por um Armageddon divinamente determinado entre as forças de Deus e as forças da Besta e o Anticristo. Já os pós-mils, que acreditam que o homem deve estabelecer o RDT como condição necessária à Segunda Vinda de Jesus, têm eles próprios que aceitar o fardo da grande purgação.
Assim, um aspecto perturbador do RDT é a eliminação preparatória dos pecadores humanos. Um segundo problema é: como, exatamente, o Reino será organizado? Como seria de se esperar, teóricos do RDT têm sido um tanto quanto vagos no que se refere à natureza de sua sociedade perfeita. Mas uma característica mais problemática é que, do pouco que sabemos de sua organização, o RDT é quase sempre retratado como uma sociedade comunista, sem labuta, propriedade privada, ou divisão do trabalho. Em outras palavras, algo parecido com a utopia comunista de Marx, exceto que, no lugar da vanguarda do proletariado, o RDT seria comandado por um quadro de santos teocráticos.
Todo sistema comunista enfrenta o problema da produção: quem vai ter o incentivo de produzir para o armazém comum, e como seria alocado o trabalho e seus produtos?
O primeiro e mais influente herege cristão comunista foi o abade e eremita calabrês Joachim de Fiore, no final do século XII. Joachim resolveu o problema da produção e alocação sob o comunismo de uma forma muito limpa e eficiente, mais do que qualquer um de seus sucessores comunistas. Na Terceira Era, ele declarou, o corpo material do homem desapareceria, e ele se tornaria puro espírito, livre para passar seus dias em êxtase místico, cantando louvores a Deus por mil anos até o Dia do Julgamento. Sem corpos físicos, é claro que existiria bem pouca necessidade de produção.[27]
Para Joachim, o caminho para este reino do puro espírito seria desbravado por uma nova ordem de monges altamente espirituais, da qual surgiriam 12 patriarcas liderados por um instrutor supremo, os quais converteriam os judeus ao cristianismo, como antecipado no livro da Revelação. Por terríveis três anos e meio, um rei secular, o Anticristo, esmagaria a corrupta Igreja cristã, e seria então derrubado pela nova ordem monástica, a qual prontamente estabeleceria a era milenar do Espírito. Não é de surpreender que uma ala rigorista da ordem franciscana, surgida no século XIII e dedicada à pobreza material, viesse a se enxergar como os monges de Joachim.
No mesmo período, os amaurianos, liderados por um grupo de estudantes de teologia de Amalric na Universidade de Paris, continuaram a doutrina joaquimita das três Eras, e adicionaram uma parte interessante: cada Era, eles declararam, havia tido sua própria Encarnação. Na era do Velho Testamento, a Encarnação havia se materializado em Abraão e talvez alguns dos outros patriarcas; para a era do Novo Testamento, a Encarnação era obviamente Jesus; e agora, para a aurora da Era do Espírito Santo, a Encarnação emergiria entre os diversos seres humanos.
Como era de se esperar, os amaurianos proclamavam-se deuses viventes, a Encarnação do Espírito Santo. Não que eles fossem permanecer como uma elite divina entre os homens; ao contrário, eles estavam destinados a serem a vanguarda, liderando a humanidade para sua Encarnação universal.
Durante o século seguinte, uma variedade de grupos no norte da Europa conhecidos como a Irmandade do Livre Espírito adicionou outro ingrediente importante a esse ensopado: a dialética mística da “reabsorção em Deus”. Mas a Irmandade adicionou o seu próprio capricho elitista: enquanto a reabsorção de todos os homens deveria aguardar o fim da História, e a massa daqueles “rústicos de espírito” deveriam nesse meio tempo ir de encontro às suas mortes individuais, havia uma gloriosa minoria, os “sutis de espírito”, que poderiam e efetivamente eram reabsorvidos, e portanto tornados deuses, durante suas vidas.
Esta minoria, é claro, era o grupo da Irmandade em si, os quais através de anos de treinamento, autoflagelamento, e visões, haviam se tornado mais perfeitos e mais semelhantes a Deus que o próprio Cristo. Além do mais, uma vez atingido esse estágio de união mística, ele se tornaria permanente e eterno. Esses novos deuses, na verdade, costumeiramente se proclamavam maiores que o próprio Deus.
Ser um deus na Terra trazia consigo muitas coisas boas. Para começar, levava diretamente a uma forma extrema da heresia antinomiana; isto é, se as pessoas são deuses, é impossível que pequem. O que quer que elas façam é necessariamente moral e perfeito. Isso significa que qualquer ato geralmente visto como pecado, de adultério a assassinato, torna-se perfeitamente legítimo quando realizado por um dos deuses viventes. De fato, os Livres Espíritos, como outros antinomianos, eram tentados a demonstrar e gabar-se de sua imunidade ao pecado pecando de toda forma imaginável.
Mas havia um porém. Entre os cultistas do Livre Espírito, apenas uma minoria de adeptos eram “deuses viventes”. Para os que engrossavam as fileiras, esforçando-se para tornarem-se deuses, havia um pecado, e apenas um, que eles não deveriam cometer: desobediência ao seu mestre.
Cada discípulo estava preso por um juramento de obediência absoluta a um deus vivente em particular. Tome, por exemplo, Nicholas da Basiléia, um líder do Livre Espírito, cujo culto se espalhava pela maior parte do Reno. Alegando ser o novo Cristo, Nicholas sustentava que o único caminho para a salvação de qualquer um consistia em realizar um ato de submissão total e absoluta ao próprio Nicholas. Em troca dessa fidelidade completa, Nicholas abençoava seus seguidores com total imunidade ao pecado.
Quanto ao resto da humanidade fora dos cultos, eles eram simplesmente seres irredentos e degenerados que existiam apenas para serem usados e explorados pelos Escolhidos. Esse credo do domínio total andava de braços dados com a doutrina social de muitos cultos do Livre Espírito no século XIV: um ataque comunista à instituição da propriedade privada. Em um certo sentido, no entanto, esse comunismo filosófico era apenas uma camuflagem transparente para o direito autoproclamado dos Livres Espíritos de cometer roubo à vontade. O adepto do Livre Espírito, em resumo, considerava toda propriedade dos não Escolhidos com sendo legitimamente sua.
O bispo de Estrasburgo resumiu essa crença em 1817: “Eles acreditam que todos os bens são comuns, de onde concluem que para eles o roubo é virtuoso.” Ou, como colocou o adepto do Livre Espírito Johann Hartmann, de Erfurt: “O homem verdadeiramente livre é senhor e rei de todas as criaturas. Todas as coisas a ele pertencem, e ele tem o direito de usar o que lhe agradar. Se alguém tentar impedi-lo, o homem livre pode matá-lo e tomar seus bens.”[28] Ou, como dizia uma frase favorita dos Livres Espíritos, “aquilo que o olho vê e deseja, que a mão o agarre.”
O século seguinte, o 14o, trouxe a primeira tentativa de iniciar o RDT, o primeiro breve experimento em comunismo teocrático totalitário. A tentativa originou-se na ala de esquerda, ou extremista, dos taboritas, os quais por sua vez constituiriam a ala radical do revolucionário movimento hussita na Boêmia tcheca do início do século XV.
O movimento hussita, inspirado por Jan Hus, era uma formação revolucionária pré-Protestante que misturava lutas religiosas (hussitas vs. católicos), de nacionalidade (populares tchecos vs. alemães de classe alta e do alto clero), e de classe (artesãos cartelizados em guildas urbanas, buscando tomar o poder dos patrícios). Partindo dos movimentos comunistas do RDT anteriores, e especialmente da Irmandade do Livre Espírito, os ultrataboritas adicionaram, com considerável entusiasmo, um ingrediente a mais: o dever de exterminar. Pois os Últimos Dias se aproximavam, e os Escolhidos deveriam marchar e esmagar o pecado, através do extermínio de todos os pecadores. O que significava, no mínimo, todos aqueles que não eram ultrataboritas.
Pois todos os pecadores eram inimigos de Cristo, e “amaldiçoado seja o homem que nega à sua espada o sangue dos inimigos de Cristo. Todos os que creem devem lavar suas mãos com esse sangue.” Essa destruição não poderia deixar de incluir a erradicação intelectual. Ao invadir igrejas e monastérios, os taboritas se deliciavam particularmente em destruir bibliotecas e queimar livros.
Pois “todas as possessões devem ser tomadas dos inimigos de Deus e queimadas, ou destruídas de outra forma.” Além disso, os Escolhidos não tinham necessidade de livros. Quando o Reino de Deus na Terra chegasse, não haveria mais a “necessidade de um ensinar outro. Não haveria necessidade de livros ou escrituras, e toda sabedoria terrena pereceria.” E todas as pessoas também, suspeita-se.
Os ultrataboritas também mesclaram ao tema da reabsorção um retorno à suposta condição antiga do comunismo tcheco: uma sociedade sem o pecado da propriedade privada. Para retornar a essa sociedade sem classes, as cidades, esses notórios centros de luxúria e avareza, deveriam ser exterminadas. E uma vez estabelecido o RDT na Boêmia, os Escolhidos deveriam avançar a partir dessa base e impor tal comunismo ao resto do mundo.
Os ultrataboritas também adicionaram outro ingrediente para dar consistência ao seu ideal comunista. Em adição ao comunismo da propriedade privada, as mulheres também seriam comunizadas. Seus pregadores declaravam que “Tudo será comum, incluindo esposas; haverá filhos e filhas de Deus livres e não haverá casamento como união de dois – marido e mulher.”
A revolução hussita estourou em 1419, e nesse mesmo ano, os taboritas juntaram-se na cidade de Usti, no norte da Boêmia, próxima à fronteira alemã. Eles rebatizaram Usti de “Tabor”, i.e., o Monte das Oliveiras em que Jesus havia profetizado sua Segunda Vinda, ascendido ao céu, e onde esperava-se que ele reapareceria. Inicialmente sob a liderança da sua ala radical, se engajaram em um experimento comunista em Tabor, possuindo tudo em comunidade, e dedicando-se à proposição de que “quem possuía propriedade privada cometia um pecado mortal”. Para os mais radicais, fiéis a seus princípios, as mulheres também deveriam ser possuídas comunalmente; se marido e mulher fossem vistos juntos, deveriam ser linchados ou executados.
Caracteristicamente, os ultrataboritas ficaram tão fascinados com seu direito ilimitado de consumir do armazém comum que eles sentiram-se libertados da necessidade de trabalhar. As reservas comunais logo desapareceram, e então o quê? Então, é claro, os taboritas radicais afirmaram que suas necessidades lhes davam o direito de tomar a propriedade dos não-Escolhidos, e eles começaram a roubar de outros a seu bel-prazer.
Um sínodo dos taboritas moderados reclamou: “muitas comunidades nunca pensam em ganhar a própria vida através do trabalho de suas mãos, mas se dispõem apenas a viver da propriedade dos outros e a realizar campanhas injustas para roubar.” Adicionalmente, o campesinato taborita, que celebrara a abolição das obrigações feudais pagas aos patrícios católicos, assistiram ao regime radical reimpor as mesmas taxas e deveres, apenas seis meses depois.
Tendo caído em descrédito frente aos seus aliados moderados e ao campesinato, os taboritas radicais logo entraram em colapso e foram expelidos de Tabor. Longe de serem desencorajados, constituíram uma seita que ficou conhecida como os adamitas boêmios. Assim como os Livres Espíritos do século anterior, os adamitas consideravam-se deuses viventes, superiores a Cristo, visto que Cristo morrera, enquanto eles viviam (lógica impecável, apesar de um tanto míope).
Para os adamitas, liderados por um líder camponês chamado por eles de “Adão Moisés”, todos os bens eram possuídos estritamente em comum, e o casamento era considerado um pecado odioso. Em resumo, a promiscuidade era compulsória, já que os castos não eram dignos de entrar no Reino messiânico. Qualquer homem podia escolher a mulher que lhe agradasse, e essa vontade deveria ser obedecida. Por outro lado, a promiscuidade era ao mesmo tempo obrigatória e fortemente restrita; pois o sexo só poderia ocorrer com a permissão de Adão Moisés. Os adamitas incluíram um capricho especial: eles andavam nus a maior parte do tempo, imitando o estado original de Adão e Eva.
Assim como seus predecessores taboritas radicais, os adamitas consideravam sua missão sagrada a exterminação de todos os descrentes do mundo, empunhando a espada até que o sangue cobrisse o mundo até a altura das rédeas de um cavalo, como dizia uma de suas expressões favoritas. Os adamitas eram a foice de Deus, enviados para capinar e erradicar os infiéis.
Perseguidos pelo comandante militar hussita (e ex-Taborita), Jan Zizka, os adamitas se refugiaram em uma ilha no rio Nezarka, da qual lançavam ataques furtivos para tentar, na medida do possível dado seu reduzido número, honrar seu voto de imposição do comunismo compulsório e erradicação dos não-Escolhidos. À noite, eles atacavam as terras circundantes – em sortidas que chamavam de “Guerra Santa” – para roubarem tudo em que podiam pôr as mãos, e exterminar suas vítimas. Leais a seu credo, eles assassinavam todo homem, mulher e criança que conseguiam encontrar.
Finalmente, em outubro de 1421, Zizka enviou uma força de 400 soldados treinados para cercar a ilha dos adamitas, conquistando rapidamente a comuna e massacrando os adamitas capturados. Mais um infernal Reino de Deus na Terra terminava ao fio da espada.
O exército taborita moderado foi, por sua vez, esmagado pelos hussitas moderados, em aliança com os católicos, na Batalha da Lipânia (Lipany) em 1434, e daí em diante o Taborismo entrou em decadência e tornou-se um movimento subterrâneo. Mas ideias taboritas e milenaristas continuaram a borbulhar, não só entre os tchecos, mas também na Bavária e outras terras alemãs próximas à Boêmia.
Ocasionalmente Martinho Lutero deve ter sentido que ele havia precipitado uma tempestade, ou até mesmo aberto os portões do Inferno. Pouco depois de Lutero ter lançado a Reforma, seitas Anabatistas apareceram e se espalharam pela Alemanha. Anabatistas acreditavam que eles eram os Escolhidos, e que o sinal dessa Escolha era uma experiência de conversão mística e emocional, o processo de “renascer”, ou ser batizado no Espírito Santo.
Para grupos de Escolhidos Anabatistas que por infortúnio se encontrassem em uma sociedade corrupta e pecadora, haviam dois caminhos. Um, o dos Anabatistas voluntários, como os Amish e os menonitas, que se tornaram praticamente anarquistas, tentando se separar o máximo possível de um Estado e sociedade pecaminosos. A outra ala, a dos Anabatistas teocráticos, procurava tomar o poder através do Estado e moldar a sociedade através da coerção extrema.
Como o Monsignor Knox apontou, essa abordagem ultrateocrática deve ser distinguida do tipo de teocracia (recentemente chamada de “teonomia” – o império das Lei de Deus) imposta por Calvino em Genebra, ou pelos puritanos calvinistas do século XVII na América do Norte. Lutero e Calvino, na terminologia de Knox, não tinham a pretensão de serem “profetas” abençoados com uma persistente visão divina pessoal; eles eram apenas pregadores, estudiosos bem versados na interpretação da Bíblia, e na aplicação da lei bíblica ao homem.[29] Mas os Anabatistas coercivos eram liderados por homens que alegavam iluminação e revelação místicas, e que, portanto, mereceriam poder absoluto.
A onda de Anabatismo teocrático que varreu a Alemanha e a Holanda com a força de um furacão pode ser chamada de era “Müntzer-Münster”, já que foi lançada por Thomas Müntzer em 1520 e terminou em um holocausto na cidade de Münster 15 anos depois. Um jovem e erudito teólogo, graduado pelas universidades de Leipzig e Frankfurt, Müntzer foi selecionado por Lutero para tornar-se um pastor luterano na cidade de Zwickau.
Zwickau, no entanto, era próxima à fronteira com a Boêmia, e lá Müntzer foi convertido ao antigo credo taborita pelo tecelão e adepto Niklas Storch, que havia vivido na Boêmia. Em particular, Müntzer passou a acreditar na visão divina do profeta do culto, e na necessidade de impor uma sociedade de comunismo teocrático pela força brutal das armas. Adicionalmente, deveria haver o comunismo das mulheres: o casamento deveria ser proibido, e cada homem poderia ter a mulher que lhe aprouvesse.
Thomas Müntzer agora declarava ser o profeta divinamente escolhido, destinado a lutar uma guerra de sangue e exterminação pelos Escolhidos e contra os pecadores. Müntzer alegou que o “Cristo vivente” havia permanentemente entrado em sua própria alma. Possuindo assim compreensão da vontade divina, ele afirmou-se particularmente qualificado para executar a missão divina. Ele até falou de si mesmo como “tornando-se Deus”. Tendo se graduado do mundo do aprendizado, Müntzer agora estava pronto para o mundo da ação.
Müntzer perambulou pela Alemanha Central por vários anos, ganhando adeptos e inspirando insurreições que foram rapidamente sufocadas. Após conseguir um posto ministerial na pequena cidade turíngia de Allstedt, Müntzer ganhou muitos seguidores populares pregando no vernáculo, atraindo um grande número de mineiros iletrados, com os quais formou uma organização revolucionária chamada de “Liga dos Escolhidos”.
Um ponto crucial na carreira de Müntzer chegou em 1524, quando o duque João, irmão do Eleitor da Saxônia e luterano, veio à cidade e pediu a Müntzer que lhe pregasse um sermão. Agarrando sua oportunidade, Müntzer pôs as cartas na mesa: os príncipes da Saxônia teriam que tomar sua posição ou como defensores de Deus ou do Diabo. Se fizessem o primeiro, deveriam “avançar com a espada” para “exterminar” todos os “ateus” e “malfeitores”, especialmente aqueles que fossem padres, monges ou governantes. Se os príncipes saxões falhassem nessa tarefa, Müntzer alertou, “a espada lhes será tomada. Se os príncipes resistirem, serão mortos sem piedade.” Tal exterminação, executada pelos príncipes e guiada por Müntzer, traria o reino de mil anos dos Escolhidos.
A reação do duque João a esse ultimato agourento foi surpreendentemente indiferente. Mas, avisado repetidamente por Lutero de que Müntzer estava se tornando perigoso, o duque finalmente ordenou que ele se abstivesse de pregações provocadoras até que seu caso fosse decidido pelo Eleitor.
Essa reação dos príncipes saxões, por branda que tivesse sido, foi suficiente para empurrar Thomas Müntzer para seu caminho revolucionário final. Os príncipes haviam se mostrado inconfiáveis: a massa dos pobres deveria carregar a revolução. Os pobres, os Escolhidos, estabeleceriam uma sociedade de comunismo igualitário compulsório, onde todas as coisas seriam possuídas em comum por todos, e todos seriam iguais em tudo, e cada pessoa receberia de acordo com sua necessidade.
Mas ainda não era a hora. Pois até mesmo os pobres deviam antes ter purgados seus desejos terrenos e prazeres frívolos, e teriam que reconhecer a liderança de um novo “servo de Deus” que “teria que andar à frente, no espírito de Elijah (…) e dar início às mudanças”. Não é difícil adivinhar quem seria esse líder.
Sentindo que Allstedt era inóspita, Müntzer mudou-se para a cidade turíngia de Muhlhausen, onde sentiu-se em casa em uma terra de turbulência política. Sob a inspiração de Müntzer, um grupo revolucionário apossou-se de Muhlhausen em fevereiro de 1525, e Müntzer e seus aliados não tardaram em impor um regime comunista sobre a cidade.
Os monastérios de Muhlhausen foram invadidos, e toda propriedade foi declarada comum: como consequência, notou um observador contemporâneo, o regime “alegrou tanto o povo que ninguém queria trabalhar”. Da mesma forma que sob os taboritas, o regime de comunismo e amor logo se tornou, na prática, uma desculpa sistêmica para o roubo:
“… quando qualquer um precisava de comida ou roupas, ele se dirigia a um homem rico e as demandava dele em nome de Cristo, pois Cristo havia ordenado que todos compartilhassem com os necessitados. Muitos agiam dessa forma. Thomas [Müntzer] instituiu essa bandidagem e a multiplicava diariamente.”[30]
Nesse ponto, a grande Guerra dos Camponeses estourou por toda a Alemanha, uma rebelião do campesinato em favor de sua autonomia local, e em oposição ao novo governo centralizador e taxador dos príncipes alemães. Durante o processo de esmagar o campesinato fragilmente armado, os príncipes vieram a Muhlhausen em 15 de maio, e ofereceram anistia aos camponeses se estes entregassem Müntzer e seus seguidores mais próximos. Os camponeses ficaram tentados, mas Müntzer, levantando sua espada desembainhada, proferiu seu último discurso inflamado, declarando que Deus havia pessoalmente lhe prometido vitória, que ele pararia as balas de canhão do inimigo nas mangas de sua capa, e que Deus os protegeria.
Em um momento climático no discurso de Müntzer, um arco-íris apareceu. Como Müntzer havia adotado o arco-íris como símbolo de seu movimento, os camponeses crédulos naturalmente interpretaram esse evento como um verdadeiro Sinal dos céus. Infelizmente o Sinal não funcionou, e o exército dos príncipes esmagou o campesinato, matando 5000 e perdendo apenas meia dúzia de soldados. O próprio Müntzer fugiu e se escondeu, mas foi capturado em pouco tempo, torturado até confessar, e devidamente executado.
Comunismo e o Reino de Deus na Terra: a tomada de Münster
Thomas Müntzer e seu Sinal podiam ter recebido pouca atenção, e seu cadáver estar decompondo-se na cova, mas seu espírito continuou marchando. Sua causa foi revivida por um de seus discípulos, o encadernador Hans Hut.
Hut alegou ser um profeta enviado por Deus para anunciar que Cristo retornaria durante o Pentecostes de 1528, e daria a Hut e seu séquito de santos rebatizados o poder para fazer a justiça. Os santos então empunhariam “espadas de fio duplo” e levariam a vingança de Deus aos padres, pastores, reis e nobres. Hut e seus seguidores então “estabeleceriam o reino de Hans Hut na terra”, com Mulhausen como capital do mundo, como era de se esperar. Cristo, ajudado por Hut e sua companhia, estabeleceria então um milênio de comunismo e amor livre.
Hut foi capturado em 1527 (antes de Jesus poder retornar, infelizmente), aprisionado em Augsburg, e morto, supostamente ao tentar escapar. Por um ano ou dois, seguidores huttianos apareceram ocasionalmente pelo sul da Alemanha, ameaçando estabelecer o Reino de Deus comunista pela força das armas. Em 1530, porém, eles foram esmagados e sufocados pelas alarmadas autoridades. O Anabatismo à la Müntzer mudar-se-ia agora para o noroeste da Alemanha.
Essa região possuía um número de pequenos estados eclesiásticos, cada um deles governado por um príncipe-bispo (bispos que eram senhores aristocráticos seculares, e não ordenados como padres). O clero governante se eximia de taxação, ao mesmo tempo em que cobravam pesados impostos do resto da população. Em geral, as capitais de cada estado eram governadas por uma oligarquia de guildas, as quais cartelizavam suas atividades, e lutavam com o clero por autonomia.
O maior desses estados eclesiásticos no noroeste alemão era o bispado de Münster. A cidade capital, Münster, de umas 10000 pessoas, estava sob o controle das guildas locais. Durante e após a Guerra dos Camponeses, as guildas e o clero batalharam repetidamente, até que em 1532 as guildas, com o apoio da população, tomaram a cidade, logo forçando o bispo católico a reconhecer Münster oficialmente como uma cidade luterana.
Mas o destino de Münster não era ser luterana por muito tempo. De todo o noroeste, hordas de loucos Anabatistas inundaram a cidade, buscando a Nova Jerusalém. O Anabatismo escalou quando o jovem, eloquente e popular pregador Bernt Rothmann, um filho altamente educado de um ferreiro local, converteu-se ao Anabatismo.
Originalmente um padre católico, Rothmann tornara-se amigo de Lutero e líder da igreja luterana em Münster. Mas agora ele emprestava sua pregação eloquente à causa do comunismo como supostamente existira na Igreja cristã primitiva, com tudo sendo possuído por todos, sem meu nem teu, e com cada homem recebendo de acordo com sua “necessidade”. A forte reputação de Rothmann atraiu outros milhares para Münster, em geral os pobres, os vagabundos, e os devedores irrecuperáveis.
O líder da horda de Anabatistas de Münster, no entanto, não seria Rothmann, mas um padeiro holandês de Haarlem, Jan Matthys. No início de 1534, Matthys enviou missionários ou “apóstolos” para rebatizar todos os que podiam para o movimento de Matthys, e esses apóstolos foram recebidos em Münster com enorme entusiasmo. Até Rothmann foi rebatizado (de novo), seguido de várias freiras e grande parte da população.
O líder do movimento de Matthys logo chegou, um jovem holandês de 25, chamado Jan Bockelson (Jan van Leyden). Bockelson logo casou-se com a filha do abastado comerciante de tecidos Bernt Knipperdollinck, o líder das guildas de Münster. Os dois homens lideraram uma insurreição para apossarem-se da cidade, em meio ao frenesi apocalíptico. Eles enviaram mensageiros para fora da cidade, impelindo todos os seguidores a virem a Münster. O resto do mundo, eles proclamaram, seria destruído em um mês ou dois; apenas Münster seria salva, tornando-se a Nova Jerusalém.
Milhares vieram de lugares tão distantes quanto Frisia, no norte das Terras Baixas. Como resultado, os Anabatistas puderam impor controle absoluto sobre a cidade. Matthys, com Bockelson a seu lado, tornou-se virtual ditador de Münster ao chegar à cidade. Finalmente, o Anabatismo havia ganhado controle de uma cidade real; o maior experimento comunista na história até aquele momento podia começar.
O primeiro programa dessa nova teocracia comunista foi, é claro, purgar Nova Jerusalém dos pecadores e dos descrentes, como prelúdio à sua exterminação no resto do mundo. Matthys, assim, ordenou a execução de todos os católicos e luteranos remanescentes, mas Knipperdollinck, mais politicamente astuto, avisou que tal matança repentina poderia trazer a ira do resto do mundo. Dessa forma, Matthys partiu para o plano B, e em 27 de fevereiro os católicos e luteranos foram expulsos da cidade, em meio a uma nevasca horripilante.
Antecipando as ações do Camboja comunista nos anos 1970, todos os não-Anabatistas, incluindo os velhos, os inválidos, bebês, e mulheres grávidas foram forçados a enfrentar a tempestade, e todos tiveram que deixar para trás tudo que era seu: dinheiro, bens, comida e roupas. Os luteranos e católicos que permaneceram na cidade foram compulsoriamente rebatizados, e os que recusaram foram mortos. A expulsão dos não-Anabatistas foi suficiente para o bispo, que começou no dia seguinte um longo cerco militar a Münster.
Com todos na cidade recrutados para o trabalho de cerco, Jan Matthys lançou sua revolução social totalitário-comunista. O primeiro passo foi confiscar toda a propriedade dos que haviam sido expulsos. Todos os seus bens terrenos foram colocados em armazéns centrais, e os pobres foram encorajados a de lá tomar “de acordo com suas necessidades”; as “necessidades” seriam interpretadas por “diáconos” escolhidos por Matthys.
Quando um ferreiro protestou as medidas impostas, revoltantemente, por um grupo de estrangeiros holandeses, Matthys prendeu o corajoso ferreiro. Convocando toda a população da cidade para testemunharem o ato, Matthys pessoalmente matou o “ímpio” ferreiro a tiros e facadas, e então aprisionou vários cidadãos que protestaram tal tratamento. A multidão foi aconselhada a aproveitar esta execução pública, e eles obedientemente cantaram um hino em honra da matança.
Uma parte crucial do reino de terror Anabatista foi sua decisão, novamente pressagiando a do Khmer Vermelho no Camboja, de abolir toda a propriedade privada de dinheiro. Sem dinheiro para comprar qualquer bem, a população tornou-se totalmente dependente de esmolas ou rações da elite no poder. Dessa maneira, Matthys, Rothmann e o resto lançaram uma campanha de propaganda declarando que era anti-cristão possuir dinheiro privadamente, e que todo dinheiro devia ser possuído “em comum”, o que na prática significava que todo e qualquer dinheiro devia ser entregue a Matthys e seus seguidores próximos. Vários Anabatistas que mantiveram ou esconderam seu dinheiro foram presos e intimidados a arrastarem-se até Matthys, implorando perdão de joelhos. Matthys magnanimamente o concedeu.
Depois de dois meses de propaganda incessante, combinada com ameaças e terror contra aqueles que desobedeciam, a posse privada de dinheiro em Münster foi efetivamente abolida. O governo apossou-se de todo o dinheiro e utilizou-o para comprar bens ou contratar trabalhadores do mundo exterior. Salários eram pagos em espécie pelo único empregador: o Estado teocrático Anabatista.
A comida foi confiscada e racionada de acordo com a vontade dos diáconos do governo. Similarmente, para acomodar a legião de imigrantes, todas as casas foram efetivamente comunizadas, e a todos foi permitido morarem onde quisessem; era proibido fechar, e ainda mais trancar, as portas. Refeitórios comunais compulsórios foram instituídos, nos quais as pessoas comiam juntas, ouvindo pregações do Velho Testamento.
O comunismo compulsório e o reino de terror foram executados em nome da fraternidade e do “amor” cristão. Essa comunização era considerada o primeiro grande passo na direção do comunismo igualitário, no qual, nas palavras de Rothmann, “tudo seria comum, não haveria propriedade privada e ninguém precisaria mais trabalhar, apenas confiar em Deus.” Por algum motivo, a parte do “não trabalhar” parecia não chegar nunca.
Um panfleto enviado pelo regime de Matthys para outras comunidades Anabatistas aclamava a nova ordem do amor através do terror:
“Pois não apenas nós pusemos todos os nossos pertences à disposição da comunidade, aos cuidados dos diáconos, e vivemos deles de acordo com nossa necessidade; nós adoramos a Deus através de Cristo com um só coração e uma só mente, e ansiamos por ajudar uns aos outros de todas as formas. Da mesma forma, tudo que servia aos propósitos do egoísmo e da propriedade privada, como a compra e a venda, o trabalho por dinheiro, a cobrança de juros e a usura (…), ou se alimentar do suor dos pobres (…) e de fato tudo que nos ofende e ao amor – todas essas coisas foram abolidas entre nós pelo poder do amor e da comunidade.”
Ao final de março de 1534, no entanto, a arrogância delirante de Matthys trouxe sua queda. Convencido, no período da Páscoa, que Deus havia ordenado que ele e alguns poucos fiéis levantassem o cerco do bispo e libertassem a cidade, Matthys avançou contra o exército sitiante, e foi cortado em pedaços.
A morte de Matthys deixou Münster nas mãos do jovem Bockelson. E se Matthys havia castigado o povo de Münster com chicotes, Bockelson alegremente os castigaria com flagelos. Ele desperdiçou pouco tempo em luto por seu mentor. Bockelson pregou aos fiéis: “Deus lhes dará outro Profeta, que será mais poderoso.”
Como poderia este entusiasmado jovem superar seu mestre? No início de Maio, Bockelson chamou a atenção da cidade ao correr nu e enlouquecido pelas ruas, caindo então em um êxtase silencioso de três dias. Quando ele se ergueu, anunciou à população uma nova ordenação que Deus havia lhe revelado.
Com Deus a seu lado, Bockelson aboliu os antigos postos do Conselho e de Burgomestre, e instalou um novo conselho governante composto de 12 anciões, e liderado por ele próprio. Aos anciões foi dada autoridade sobre a vida e a morte, os bens e o espírito de todo habitante de Münster. As antigas guildas foram abolidas, e um rigoroso sistema de trabalho forçado foi imposto. Todos os artesões não recrutados como soldados eram agora empregados públicos, trabalhando para a comunidade sem recompensa material.
O totalitarismo em Münster agora estava completo. A morte agora era a punição para praticamente toda ação independente. A pena capital fora decretada para os altos crimes de assassinato, roubo, mentira, avareza e discórdia. A morte também era decretada para todo tipo concebível de insubordinação: dos filhos contra os pais, das mulheres contra maridos, e, é claro, de todos e qualquer um contra o representante de Deus na Terra, o governo de Münster. Bernt Knipperdollinck foi indicado alto-carrasco para fazer cumprir os decretos.
O único aspecto da vida que não fora alterado até então era o sexo, e agora essa falha era corrigida. A única relação sexual permitida pelo regime de Bockelson era o casamento entre dois Anabatistas. O sexo de qualquer outra forma, incluindo o casamento com um dos “ímpios”, era um crime capital.
Mas logo Bockelson foi além desse credo conservador, e decidiu impor a poligamia compulsória em Münster. Como vários dos que haviam sido expulsos tinham deixado suas filhas e mulheres para trás, Münster agora tinha três vezes mais mulheres em idade de casamento do que homens, tornando a poligamia tecnicamente factível. Bockelson convenceu os alarmados pregadores citando a poligamia entre os patriarcas de Israel, e reforçando o argumento com ameaças de morte para os relutantes.
A poligamia compulsória foi demais para muitos dos habitantes de Münster, os quais lançaram uma rebelião em protesto. Esta, no entanto, foi rapidamente esmagada, com a maioria dos rebeldes sendo executados. Assim, em agosto de 1554, a poligamia havia sido coercivamente estabelecida em Münster. Como era de se esperar, o jovem Bockelson logo desenvolveu uma afinidade pelo novo regime, tomando para si um harém de 15 esposas, incluindo Divara, a bela e jovem viúva de Jan Matthys.
O restante da população masculina também aderiu entusiasticamente ao novo decreto. Mas muitas das mulheres reagiram diferentemente, e por isso os Anciãos promulgaram uma lei ordenando o casamento compulsório para toda mulher abaixo (e presumivelmente acima) de uma certa idade, o que geralmente significava se tornar compulsoriamente uma terceira ou quarta esposa.
Já que o casamento com infiéis era não só inválido como ilegal, as mulheres dos exilados tornaram-se esposas em potencial, e foram forçadas a “casarem-se” com bons Anabatistas. A recusa em submeter-se ao novo decreto era punível, é claro, pela morte, e algumas mulheres foram efetivamente executadas como resultado. As mulheres “antigas” que se ressentiam das novas competidoras em suas casas também tonaram-se alvos do regime, e muitas mulheres foram assim executadas por causarem discórdia.
O despotismo bockelsoniano tinha um limite, no entanto, e devido à resistência geral o regime foi forçado a recuar e permitir o divórcio. Em uma reviravolta completa, não apenas o divórcio era agora permitido, mas todo casamento era tornado completamente ilegal. Como resultado, Münster tornava-se um regime, para todos os efeitos, de amor livre compulsório. Assim, no decorrer de alguns meses, um puritanismo rígido havia se transmutado em promiscuidade obrigatória.
Bockelson mostrou-se um excelente organizador de uma cidade sob cerco. O trabalho compulsório era rigidamente policiado, e ele também foi capaz de convencer muitos dos mercenários mal pagos do bispo a desertarem, oferecendo-os pagamento regular – com dinheiro, é claro, confiscado dos habitantes de Münster. Quando o bispo lançou panfletos na cidade oferecendo anistia geral em troca de capitulação, Bockelson tornou a leitura de tais panfletos um crime punível pela morte. Os exércitos do bispo estavam em desordem ao final de agosto, e o cerco foi temporariamente levantado.
Jan Bockelson tomou essa oportunidade para triunfantemente levar sua revolução comunista “igualitária” um passo crucial à frente: declarar-se rei e messias dos Últimos Dias.
Bockelson percebeu que proclamar a si mesmo rei poderia parecer pouco convincente, mesmo para os fiéis bockelsonianos. Então ele providenciou para que um tal de Dusentschur, um ourives de uma cidade próxima e autoproclamado profeta, fizesse o serviço para ele. No início de setembro, Dusentschur anunciou a todos uma nova revelação: que Jan Bockelson seria o rei de todo o mundo, o herdeiro do Rei Davi, destinado a manter seu trono até que o próprio Deus viesse reivindicar Seu Reino.
Previsivelmente, Bockelson confirmou que ele próprio tinha tido essa mesma revelação. Depois de um momento de falsa hesitação, Bockelson aceitou de Dusentschur a Espada da Justiça e sua unção como Rei do Mundo, e anunciou à multidão que Deus havia lhe dado poder sobre “todas as nações da terra”, e que todos os que ousassem resistir à vontade de Deus seriam “sem mais tardar postos à morte pela espada.” Os pregadores Anabatistas de Münster diligentemente explicaram para suas estupefatas congregações que Bockelson era o próprio messias pressagiado no Velho Testamento, portanto o governante temporal e espiritual, por direito, do mundo todo.
Frequentemente, aqueles que se autoproclamam “igualitários” encontram exceções (para eles próprios) que permitem escapar da monótona uniformidade da vida. Foi o caso do rei Bockelson. Era importante enfatizar de todas as maneiras possíveis a importância do Advento do messias. E assim Bockelson vestia os trajes mais finos, metais e joias; ele nomeou cortesãos e cavalheiros-em-armas, os quais se vestiam esplendidamente. A esposa principal do rei Bockelson, Divara, foi proclamada Rainha do Mundo, e ela também vestia-se finamente e desfrutava de uma corte de seguidores.
Essa nova, luxuosa corte incluía duzentas pessoas, vivendo em belas mansões requisitadas para esse propósito. O rei Bockelson concedia audiências em praça pública, sentado em um trono, vestido com um pano de ouro, usando uma coroa e empunhando um cetro. Finamente vestidos também eram seus leais ajudantes, incluindo Knipperdollinck como ministro-chefe, e Rothmann como orador real.
Se o comunismo é a sociedade perfeita, alguém deve usufruir de suas benesses; e quem melhor que o messias e seus cortesãos? Apesar de a propriedade privada e o dinheiro terem sido abolidos, o ouro e prata confiscados eram agora cunhados em moedas ornamentais em honra do novo rei. Todos os cavalos foram confiscados para o esquadrão armado do rei. Os nomes na Münster revolucionária também foram transformados: todas as ruas foram renomeadas; domingos e dias festivos foram abolidos; e todos os recém-nascidos eram nomeados pessoalmente pelo rei de acordo com um padrão especial.
Para que o rei e seus nobres pudessem viver em luxo, seus súditos agora eram roubados de tudo acima do mínimo para a sobrevivência; vestuário e moradias agora eram severamente racionados, e todo “excedente” deveria ser entregue ao rei Bockelson sob pena de morte.
Não é de se surpreender que as massas desiludidas de Münster tivessem começado a resmungar sobre serem forçadas a viver em pobreza abjeta enquanto o rei Bockelson e sua corte viviam em grande estilo, financiados pelas suas posses confiscadas. Bockelson respondeu produzindo mais propaganda para justificar o sistema.
A justificativa era a seguinte: não havia injustiça no fato de Bockelson viver com luxo e pompa porque ele já estava “morto” no mundo e na carne. Já que ele estava morto para o mundo, em um sentido profundo o seu luxo não contava. Da mesma forma que todo guru que já viveu luxuosamente em meio a seus seguidores pobres e crédulos, ele explicou que, para ele, meros objetos materiais não tinham valor.
Talvez mais importante, Bockelson assegurou seus súditos de que ele e sua corte eram apenas a vanguarda de uma nova ordem; logo, eles também viveriam no mesmo luxo milenar. Sob essa nova ordem, o povo de Münster logo marcharia, armados com a vontade de Deus, e conquistariam o mundo inteiro, exterminando os ímpios, após o que Jesus retornaria e eles viveriam em conforto e perfeição. Então o comunismo igualitário, com luxo para todos, seria alcançado.
Um aumento da dissidência significava, é claro, uma escalada do terror, e o reino de “amor” e de morte do rei Bockelson intensificou seu caminho de intimidação e matança. Assim que foi proclamada a monarquia, o profeta Dusentschur anunciou uma nova revelação divina: que todos os que insistiam em discordar de, ou desobedecer ao rei Bockelson seriam mortos, e sua memória apagada para sempre. Muitas das vítimas executadas eram mulheres, mortas por negar aos seus maridos os seus direitos matrimoniais, insultar um pregador, ou ousar praticar a poligamia – que era considerada um privilégio exclusivamente masculino.
O bispo começava a reconstituir seu cerco, mas Bockelson conseguiu usar muito do ouro e prata expropriados para enviar apóstolos e panfletos para as regiões circundantes, tentando exaltar as massas à revolução Anabatista. A propaganda teve efeito considerável, levando a insurreições em massa pela Holanda e o noroeste da Alemanha durante janeiro de 1535.
Mil Anabatistas armados uniram-se sob a liderança de alguém que se auto intitulava Cristo, Filho de Deus. E insurreições Anabatistas sérias ocorreram no oeste da Frísia, na cidade de Minden, e até na grande cidade de Amsterdã, onde os rebeldes conseguiram capturar a prefeitura. Todas essas insurreições foram eventualmente sufocadas, com a ajuda da delação dos nomes dos rebeldes e da localização de seus depósitos de munições.
A essa altura, os príncipes do noroeste europeu já tinham perdido a paciência; e todos os estados do Sacro Império Romano concordaram em enviar tropas para esmagar o regime infernal em Münster. Ao final de janeiro, a cidade havia sido totalmente isolada do resto do mundo.
A fome atacou imediatamente, e a crise foi enfrentada pelo regime de Bockelson com vigor característico: toda a comida que restava foi confiscada, e todos os cavalos mortos, para alimentar o rei, sua corte, e seus guardas. Por toda a duração do cerco o rei e sua corte comeram e beberam bem, enquanto a fome e a destruição varriam o restante da cidade, e as massas comiam literalmente qualquer coisa, comestível ou não, em que conseguiam pôr as mãos.
O rei Bockelson manteve seu poder através de propaganda contínua e promessas às massas famintas. Deus certamente os salvaria até a Páscoa, ou Bockelson queimar-se-ia vivo em praça pública. Quando a Páscoa veio e se foi, e nenhuma salvação havia aparecido, Bockelson espertamente explicou que ele, na verdade, quisera dizer a salvação espiritual, que de fato havia ocorrido.
Ele então prometeu que Deus transformaria as pedras das ruas em pão, e isso evidentemente também não aconteceu. Finalmente, Bockelson, que sempre fora fascinado pelo teatro, ordenou que seus súditos esfomeados dedicassem três dias à dança e ao atletismo. Atuações dramáticas foram realizadas, bem como uma Missa Negra.
Os pobres populares famintos de Münster estavam agora totalmente perdidos. O bispo continuava a lançar folhetos na cidade prometendo uma anistia geral, se eles apenas depusessem o rei Bockelson e sua corte e os entregassem às forças dos príncipes. Para proteger-se dessa ameaça, Bockelson ampliou ainda mais seu reino de terror.
No início de maio, Bockelson dividiu a cidade em 12 seções, e nomeou um “duque” para cada uma delas com uma força de 24 homens armados. Os duques eram estrangeiros como ele próprio, e como imigrantes holandeses era mais provável que fossem leais ao rei Bockelson. Cada duque era estritamente proibido de deixar sua própria seção, e eles, por sua vez, proibiam qualquer reunião de até mesmo algumas poucas pessoas.
A ninguém era permitido deixar a cidade, e qualquer um que fosse pego tentando ou planejando escapar era instantaneamente decapitado – em geral, pelo próprio rei Bockelson. Em meados de junho tais feitos ocorriam diariamente, com os corpos sendo esquartejados e as partes afixadas como avisos para as massas de Münster.
Bockelson indubitavelmente teria preferido que toda a população morresse de fome a se render; mas dois fugitivos indicaram pontos fracos nas defesas da cidade e, na noite de 24 de junho de 1535, o pesadelo da Nova Jerusalém, do comunismo e do “amor”, finalmente chegou a um fim sangrento. As últimas centenas de soldados Anabatistas renderam-se sob a promessa de anistia e foram prontamente massacrados, e a rainha Divara foi decapitada. Quanto ao rei Bockelson, ele foi escoltado em correntes pela cidade, e no próximo mês de janeiro, ele e Knipperdollinck foram publicamente torturados até a morte, e seus corpos suspensos em jaulas (que ainda estão lá) da torre da igreja de São Lamberto.
O antigo regime de Münster foi restabelecido e a cidade tornou-se mais uma vez católica. Os astros estavam novamente em seus cursos, e os eventos de 1534-35 compreensivelmente levaram a uma persistente desconfiança de misticismos e movimentos radicais por toda a Europa protestante.
É instrutivo entender a atitude de todos os historiadores marxistas quanto a Münster e os outros movimentos milenaristas do início do século XVI. Os marxistas sempre, compreensivelmente, elogiaram esses movimentos e regimes, (a) por serem comunistas, e (b) por serem movimentos revolucionários que começaram nas camadas mais baixas da sociedade. Os marxistas invariavelmente aclamaram esses movimentos como precursores do seu próprio.
Ideias são notoriamente difíceis de matar, e o Anabatismo comunista era uma dessas ideias. Um dos colaboradores de Müntzer, Henry Niclaes, natural de Münster, sobreviveu para fundar o Familismo, um credo panteísta que afirmava que o Homem é Deus, e que clamava pelo estabelecimento do Reino de Deus na terra, o único lugar em que tal reino jamais existiria. Uma das chaves desse reino seria um sistema em que toda propriedade era tida em comum, e todos os homens atingiriam a perfeição de Cristo.
As ideias familistas foram levadas à Inglaterra por um discípulo holandês de Niclaes, Christopher Vittels, e o Familismo espalhou-se pela Inglaterra durante o século XVI. Um centro do Familismo na Inglaterra do início do século XVII eram os Grindletonians, em Grindleton, Yorkshire, liderados na década seguinte a 1615 pelo pároco auxiliar, Reverendo Roger Brearly. Parte do atrativo do Familismo era seu antinomianismo – a visão de que pessoas verdadeiramente boas, como eles próprios, jamais poderiam cometer um pecado, por definição – e antinomianos geralmente ostentavam aquilo que a maior parte das pessoas classificaria como pecados, para demonstrar sua imunidade a eles.
Durante a Guerra Civil Inglesa dos anos 1640 e 1650, muitos grupos religiosos radicais vieram à tona, incluindo Gerrard Winstanley e os comunistas-panteístas Diggers, notados acima. Demonstrando um antinomianismo extremo, combinado com panteísmo e comunismo, incluindo comunismo de mulheres, haviam os marginalmente loucos Ranters, que urgiam a todos que pecassem para demonstrar sua pureza.
O reaparecimento do comunismo na Revolução Francesa
Em tempos de distúrbios, guerras, e convulsões sociais, seitas milenaristas e messiânicas sempre apareceram e floresceram. Depois do fim da Guerra Civil Inglesa, credos comunistas e milenaristas voltaram ao subterrâneo, reaparecendo com força na época da Revolução Francesa. A diferença era que agora movimentos comunistas seculares, e não religiosos, apareciam pela primeira vez.
Mas os novos profetas seculares do comunismo enfrentavam um grave problema: qual seriam os agentes da mudança social? Para os milenaristas religiosos, os agentes aclamados eram sempre Deus e seu oportuno Messias ou vanguarda de profetas, e tribulações apocalípticas predestinadas. Mas quais seriam os agentes do milênio secular, e como poderiam os profetas seculares inspirar confiança no seu triunfo inevitável?
Os primeiros comunistas secularizados apareceram como dois indivíduos isolados na França de meados do século XVIII. Um foi o aristocrata Gabriel Bonnot de Mably, irmão mais velho do filósofo liberal laissez-faire Etienne Bonnot de Condillac. O principal foco de Mably era insistir que todos os homens eram “perfeitamente” iguais e uniformes, idênticos em tudo sem exceção.
Como no caso de muitos comunistas futuros, Mably viu-se obrigado a confrontar um dos maiores problemas do comunismo: se toda propriedade é possuída em comum e toda pessoa é igual, então haveria pouco ou nenhum incentivo para trabalhar. Pois apenas o estoque comum se beneficiaria do trabalho de qualquer um, e não o próprio indivíduo. Para Mably esse problema era particularmente espinhoso, já que além de tudo ele insistia que o estado natural e original do homem era o comunismo, e que a propriedade privada devia sua existência precisamente ao fato de alguns homens indolentes desejarem viver à custa de outros. Como aponta Alexander Gray, “a indolência que arruinou o comunismo primitivo provavelmente arruinaria novamente o comunismo, se restabelecido.”
As duas respostas propostas por Mably para esse problema crucial não eram exatamente adequadas. Uma foi instigar a todos que apertassem os cintos e se contentassem com uma austeridade espartana. A outra foi a criação do que Che Guevara e Mao Tse-tung um dia chamariam de “incentivos morais”: substituir a recompensa monetária crua pelo reconhecimento do mérito – na forma de faixas, medalhas, etc. Em sua crítica devastadoramente perspicaz e afiada, Alexander Gray escreve que
“A ideia de que o mundo poderia obter sua motivação de uma Lista de Honras de Aniversário (o Rei fazendo aniversário 365 vezes por ano, se necessário) ocorre com frequência patética nas formas mais utópicas de literatura socialista. (…)
Mas obviamente, se alguém fosse sábio ou depravado o suficiente para dizer que preferia a indolência a uma fita de honra (e haveria muitos assim) dever-se-ia permitir que esses continuassem a levar vidas ociosas, sendo como esponjas de seus vizinhos; talvez alguns daqueles que de fato atingissem a tal fita acabassem sucumbindo a um acesso de faineantise (preguiça) para que pudessem melhor aproveitar os prazeres que acompanham o reconhecimento.”
Gray continua e aponta que quanto mais “distinções” fossem entregues como incentivos, menos elas realmente distinguiriam, e portanto menos influência teriam. Além disso, Mably “não diz como ou por quem essas distinções deveriam ser concedidas.” Diz Gray:
“(…) assume-se, e é assumido sempre, que haverá uma crença universal e inquestionável de que a fonte de honra borrifou suas águas apenas naqueles que mais merecem, e apenas neles. Essa confiança ingênua e inocente não existe no mundo que conhecemos, nem é provável que exista em qualquer paraíso terreno que muitos possam imaginar.”
Gray conclui que em uma sociedade comunista no mundo real, muitos dos que não recebessem honras sentir-se-iam insatisfeitos e ressentidos devido à suposta injustiça: “um general ou servidor público, forçado a esperar tempo demais na fila da glória, poderia sentir seu ardor juvenil sendo substituído pelo azedume da esperança eternamente adiada, e seu zelo poderia se desvanecer.”[31]
Assim, em ambas suas soluções propostas, Gabriel de Mably punha suas esperanças em uma transformação milagrosa da natureza humana, de forma muito similar à busca dos marxistas pelo advento do Novo Homem Socialista, disposto a suprimir seus desejos e incentivos para servir às necessidades da comunidade, e a esforçar-se para obter os enfeites e pompas por ela concedidos. Mas apesar de sua devoção ao comunismo, Mably era no fundo um realista, e portanto não tinha esperança nenhuma para o triunfo do comunismo. O homem estava por demais submerso nos pecados do egoísmo e da propriedade privada para que uma vitória ocorresse. Claramente, Mably mal havia começado a resolver o problema da mudança social secularista, ou a inspirar o nascimento e florescimento de um movimento revolucionário comunista.
Se o pessimismo de Mably não era exatamente adequado para inspirar um movimento, o mesmo não era verdade do outro comunista secular influente na França do meio do século XVIII, o escritor Morelly. Apesar de pouco conhecido em pessoa, sua obra La Code de la Nature, publicada em 1755, foi altamente influente, tendo passado por cinco edições em 1773. Morelly não tinha dúvida alguma sobre a factibilidade do comunismo; para ele, não havia nenhum problema de preguiça ou incentivo negativo, e, portanto, nenhuma necessidade de criar um Novo Homem Socialista.
Para Morelly, o homem é sempre bom, altruísta, e dedicado ao trabalho; apenas instituições são degradadas e corruptas, especificamente a instituição da propriedade privada. Uma vez abolida, a bondade natural do homem facilmente triunfaria. (Pergunta: de onde vieram essas instituições humanas corruptas, se não do próprio homem?)
Similarmente, para Morelly, assim como para Marx e Lenin depois dele, a administração da utopia comunista seria absurdamente fácil. Atribuir a cada homem sua função na vida, e decidir quais bens e serviços materiais satisfariam suas necessidades, aparentemente seriam problemas triviais para um Ministério do Trabalho ou do Consumo. Para Morelly, essa era meramente uma questão de enumerar e listar coisas e pessoas.
No entanto, de alguma forma as coisas não seriam tão fáceis na utopia de Morelly. Enquanto Mably, o pessimista, estava aparentemente disposto a deixar a sociedade à mercê das ações voluntárias dos indivíduos, o otimista Morelly estava alegremente preparado para empregar métodos coercitivos brutais para manter na linha seus cidadãos “naturalmente bons”. Morelly esboçou uma visão intricada de seu governo e sociedade ideais, cuja maior parte seria supostamente imutável e eterna, dizendo basear-se nos ditados evidentes da lei natural.
Especificamente, não haveria propriedade privada, exceto para necessidades diárias; cada pessoa seria mantida e empregada pela coletividade. Todo homem seria forçado a trabalhar e a contribuir com o armazém comum, de acordo com seus talentos, e então receberia bens desses mesmos armazéns de acordo com suas presumidas necessidades.
Casamentos seriam compulsórios, e as crianças seriam criadas comunalmente, recebendo alimentação, roupas e treinamento absolutamente iguais. Doutrinas filosóficas e religiosas seriam absolutamente proscritas; nenhuma diferença seria tolerada; e as crianças não deveriam ser corrompidas por “fábulas, estórias ou ficções ridículas”. Toda permuta e negociação seria proibida por “lei inviolável”. Todas as construções seriam as mesmas, agrupadas em quarteirões iguais; todas as roupas seriam feitas do mesmo tecido (uma profecia da China de Mao). As ocupações seriam limitadas e estritamente atribuídas pelo Estado.
Finalmente, as leis impostas deveriam ser consideradas sagradas e invioláveis, e qualquer um que tentasse mudá-las deveria ser isolado e encarcerado pelo resto da vida.
Deve ficar claro que essas utopias eram versões secularizadas e depreciadas das visões dos milenaristas cristãos. Não só não havia nenhum agente de mudança social para chegar ao estado almejado, mas elas não possuíam o apelo reluzente do governo messiânico e a glorificação de Deus para disfarçar o fato de que as utopias são estados estáticos, nos quais, como coloca Gray,
“Nada jamais acontece; ninguém discorda de ninguém; o governo, qualquer que seja sua forma, é sempre guiado tão sabiamente que pode haver lugar para a gratidão, mas nunca para críticas. Nada acontece, nada pode acontecer em nenhuma delas.”
Gray conclui que, apesar de os escritores utópicos “nos assegurarem de que jamais haveria população mais feliz (…), na realidade nenhuma Utopia foi apresentada na qual qualquer homem são consentiria em viver, se pudesse escapar.”[32]
Não devemos pensar, no entanto, que o comunismo milenarista cristão havia desaparecido. Pelo contrário, o messianismo cristão herético também reviveu durante a turbulenta segunda metade do século XVIII. Assim, o pietista da Suábia Johann Christoph Otinger, em meados do século XVIII, profetizou a vinda de um reino mundial teocrático de santos, vivendo comunalmente, sem hierarquia ou propriedade, como membros de uma comunidade cristã milenar.
Particularmente influente entre os pietistas alemães tardios foi o místico e teosofista francês Louis Claude de Saint-Martin, o qual, em seu influente Des Erreurs et la Verite (1773), retratou uma “igreja secreta dos escolhidos” que ele alegava existir desde o alvorecer da história, e que logo tomaria o poder na era que se aproximava. Esse tema “martinista” foi desenvolvido pelo movimento rosacruciano, concentrado na Bavária. Originalmente alquimistas místicos nos séculos XVII e XVIII, os rosacrucianos da Bavária começaram a enfatizar a chegada ao poder da igreja dos Escolhidos durante a nascente era milenar.
O autor rosacruciano bávaro mais influente, Carl von Eckartshausen, expôs esse tema em dois trabalhos amplamente lidos, Informação sobre Mágica (1788-1792) e Da Perfectibilidade (1797). Neste último, ele desenvolveu a ideia de que a reclusa igreja dos Escolhidos havia existido desde Abraão, e então avançou no tempo para a ideia de um governo mundial liderado por esses guardiões da luz divina.
A terceira e última Era da História, a Era do Espírito Santo, estava prestes a chegar. Os Escolhidos iluminados, destinados a governar a nova ordem mundial comunal, eram, um tanto obviamente, a Ordem Rosacruciana, já que a principal evidência da aproximação da Terceira Era consistia da rápida propagação do martinismo e do próprio Rosacrucianismo.
E esses movimentos estavam de fato se alastrando durante os anos 1780 e 1790. O rei prussiano Frederick William II e boa parte de sua corte converteram-se ao Rosacrucianismo ao final da década de 1780, como também o czar russo Paulo I, uma década depois, baseado em suas leituras de Saint-Martin e Eckartshausen, os quais acreditava serem transmissores da revelação divina. Saint-Martin também possuía influência como líder da Maçonaria do Rito Escocês em Lyons, e era a figura central daquilo que pode se chamar de ala cristã-apocalíptica do movimento maçônico.[33]
O principal movimento comunista durante a Revolução Francesa, no entanto, era secular. As ideias de Mably e Morelly não tinham esperanças de serem implantadas na ausência de um movimento ideológico concreto, e a tarefa de aplicar essas ideias em forma de movimento foi assumida por um jovem jornalista e comissário de títulos de terra em Picardy, François Noel (“Caius Gracchus”) Babeuf, que chegou a Paris com 26 anos de idade em 1790, e inalou a inebriante atmosfera revolucionária daquela cidade.
Já em 1793, Babeuf dedicara-se ao igualitarismo e ao comunismo; dois anos mais tarde, ele fundou a secreta Conspiração dos Iguais, uma organização revolucionária conspiratória dedicada à realização do comunismo. A Conspiração era organizada em torno de seu novo jornal, a Tribuna do Povo. A Tribuna, em prefiguração da Iskra de Lenin um século mais tarde, foi usada para pregar uma visão coerente para seus seguidores próximos e públicos. A Tribuna de Babeuf “foi o primeiro periódico na História a funcionar como braço legal de uma conspiração revolucionária extralegal.”[34]
O ideal máximo de Babeuf e sua conspiração era a igualdade absoluta. A natureza, eles alegavam, requer igualdade perfeita; toda desigualdade é injustiça; portanto, a propriedade comunal devia ser estabelecida. Como a Conspiração declarou enfaticamente em seu Manifesto dos Iguais – escrito por um dos principais ajudantes de Babeuf, Sylvain Marechal – “Nós demandamos igualdade verdadeira, ou Morte; é isso que perseguimos.” “Pela igualdade”, continuou o Manifesto, “estamos preparados para qualquer coisa; estamos dispostos a varrer tudo. Que as artes desapareçam, se necessário, contanto que reste para nós a verdadeira igualdade.”
Na sociedade comunista ideal almejada pela Conspiração, a propriedade privada seria abolida, e toda propriedade seria comunal, armazenada em depósitos comunais. Desses depósitos, bens seriam distribuídos “equitativamente” pelos superiores – estranhamente, parece que haveriam “superiores” nesse mundo “igualitário”! Haveria trabalho compulsório universal, “servindo a terra pátria com trabalho útil”. Professores e cientistas deveriam “submeter certificados de lealdade” aos superiores.
O Manifesto reconhecia que haveria uma enorme expansão do número de oficiais e burocratas do governo no mundo comunista, o que era inevitável em uma sociedade onde “a pátria toma controle de um indivíduo de seu nascimento até sua morte”. Haveria punições severas, consistindo de trabalho forçado, contra “pessoas de ambos os sexos que deem um mau exemplo à sociedade por falta de visão cívica, por ociosidade, libertinagem, licenciosidade”. Essas punições, descritas, como notado por um historiador, “carinhosa e detalhadamente”,[35] consistiam de deportação para ilhas-prisão.
A liberdade de expressão e da imprensa eram tratadas como seria de se esperar. À imprensa não seria permitido “pôr em perigo a justiça da igualdade” ou sujeitar à República a “discussões intermináveis e fatais”. Além do mais, “A ninguém será permitido murmurar opiniões que contradigam diretamente os princípios sagrados de igualdade e soberania do povo”. Na verdade, textos só seriam autorizados a serem impressos “se os guardiões da vontade da nação considerarem que sua publicação possa beneficiar a República.”
Todas as refeições seriam feitas em público em toda comuna, e o comparecimento, é claro, seria compulsório para todos os membros da comunidade. Adicionalmente, todos poderiam obter sua “ração diária” apenas no distrito em que vivesse; a única exceção seria quando estivesse “viajando com permissão da administração”. Todo entretenimento privado seria “estritamente proibido”, para evitar que a “imaginação, livre da supervisão de um juiz rígido, resultasse em vícios abomináveis e contrários ao bem comum”. E quanto à religião, “toda suposta revelação deve ser banida por lei.”
Foi importante influência para o futuro marxismo-leninismo não apenas o ideal comunista de Babeuf, mas também sua teoria e prática da estratégia de organização concreta da atividade revolucionária. Os desiguais, proclamaram os babouvitas, deveriam ser despojados; os pobres deveriam rebelar-se e saquear os ricos.
Acima de tudo, a Revolução Francesa tinha que ser “completada” e refeita; deveria haver uma total sublevação (bouleversement total), uma completa destruição das instituições existentes para que um mundo novo e perfeito pudesse ser construído a partir das ruínas. Como clamou Babeuf na conclusão de seu Manifesto Plebeu, “Que tudo retorne ao caos, e que do caos surja um mundo novo e regenerado”.[36] De fato, o Manifesto Plebeu, publicado pouco antes do Manifesto dos Iguais em novembro de 1795, foi o primeiro de uma série de manifestos revolucionários que chegaria ao clímax no Manifesto Comunista de Marx meio século depois.
Os dois Manifestos, o Plebeu e dos Iguais, revelaram diferenças importantes entre Babeuf e Marechal, o que poderia ter causado uma divisão no movimento, se este não tivesse sido esmagado pouco depois pela repressão policial. Pois no Manifesto Plebeu, Babeuf aproximava-se do messianismo cristão, não apenas prestando homenagens a Moisés e Josué mas também, particularmente, a Jesus Cristo (como “colega” do autor, Babeuf). Na prisão, além disso, Babeuf escrevera Uma Nova História da Vida de Jesus Cristo. A maioria dos Iguais, no entanto, eram ateus militantes, o mais eminente sendo Marechal, que gostava de se referir a si mesmo pelo acrônimo grandioso l’HSD, l’homme sans Dieu (o Homem Sem Deus).
Além da revolução conspiratória, Babeuf, fascinado por questões militares, começou a desenvolver a ideia da guerrilha popular: da revolução ser organizada em “falanges”, por pessoas cuja ocupação permanente seria fazer a revolução – aqueles que Lenin depois chamaria de “revolucionários profissionais”. Ele também ventilou a ideia de as falanges militares conquistarem uma base geográfica e então avançar a partir dela.
Um círculo conspiratório secreto e uma falange de revolucionários profissionais – inevitavelmente isso significava que a perspectiva estratégica de Babeuf para sua revolução incorporava alguns paradoxos fascinantes. Pois em nome do objetivo da harmonia global e igualdade perfeita, os revolucionários seriam liderados por uma hierarquia que demandava nada menos que a obediência total; o grupo central imporia sua vontade à massa. O líder absoluto, à frente de um pequeno grupo detentor de total poder, sinalizaria o momento apropriado para a chegada da sociedade de perfeita igualdade. A revolução seria feita para acabar com todas as revoluções; a hierarquia seria necessária, alegava-se, para pôr um fim definitivo à hierarquia.
Obviamente, não havia nenhum paradoxo de fato, porque Babeuf e seus seguidores não tinham nenhuma real intenção de eliminar a hierarquia. As odes à “igualdade” eram uma camuflagem frágil para o real objetivo – uma ditadura total e permanente.
Depois de sofrer repressão policial ao final de fevereiro de 1796, a Conspiração dos Iguais foi ao subterrâneo, e, um mês depois, constituiu-se como o Diretório Secreto de Segurança Pública. Os sete diretores secretos, os quais se encontravam toda noite, chegavam a decisões anônimas e coletivas, e então cada membro desse comitê central irradiava as diretrizes para 12 “instrutores”, os quais mobilizavam grupos revoltosos em um dos 12 distritos de Paris.
Dessa forma, a Conspiração conseguia mobilizar 17000 parisienses, mas a avidez por recrutas acabou por levar à traição do movimento. Um informante levou à prisão de Babeuf em 10 de maio, seguida pela destruição da Conspiração dos Iguais. Babeuf foi executado no ano seguinte.
A repressão policial, no entanto, quase sempre deixa concentrações de dissidentes prontas para revoltarem-se novamente, e o novo portador da tocha do comunismo revolucionário foi um Babouvita que havia sido preso com seu líder, mas conseguira evitar a execução. Filippo Guiseppe Maria Lodovico Buonarroti era o filho mais velho de uma empobrecida família aristocrática florentina, e um descendente direto de Michelangelo. Estudando Direito na Universidade de Pisa na década de 1780, Buonarroti foi convertido pelos discípulos de Morelly que lá lecionavam.
Como jornalista e editor radical, Buonarroti participou de batalhas contra tropas italianas ao lado da Revolução Francesa. Na primavera de 1794, ele foi posto no comando das forças de ocupação francesas na cidade italiana de Oneglia, onde anunciou ao povo que todos os homens devem ser iguais, e que qualquer tipo de distinção entre eles era uma violação das leis da natureza. De volta a Paris, Buonarroti defendeu-se com sucesso em um julgamento sobre o seu uso do terror em Oneglia, e finalmente juntou-se à Conspiração dos Iguais de Babeuf. A amizade de Napoleão o poupou do carrasco, e eventualmente ele foi enviado como exilado a um campo de detenção em Genebra.
Pelo resto de sua vida, Buonarroti tornou-se aquilo que seu biógrafo moderno chama de “O Primeiro Revolucionário Profissional”, tentando organizar revoluções e conspirações por toda a Europa. Antes da execução de Babeuf e seus comparsas, Buonarroti prometeu a eles que escreveria sua história completa, e ele cumpriu essa promessa quando publicou na Bélgica, aos 67 anos, A Conspiração pela Igualdade de Babeuf (1828).
Àquela altura, Babeuf e seus seguidores há muito haviam sido esquecidos; essa obra maciça agora contava a primeira e mais completa narrativa da saga Babouvita. O livro tornou-se uma inspiração para grupos comunistas e revolucionários, e foi extremamente popular: a tradução inglesa de 1836 vendeu 50000 cópias em um curto espaço de tempo. Em sua última década de vida, o antes obscuro Buonarroti foi honrado pela ultraesquerda europeia.
Remoendo fracassos revolucionários anteriores, Buonarroti aconselhou que era necessário um regime elitista férreo imediatamente após a tomada do poder pelas forças revolucionárias. Resumidamente, o poder da revolução deveria ser imediatamente entregue a uma “vontade iluminada, forte, constante e inflexível”, a qual “direcionaria toda a força da nação contra seus inimigos internos e externos”, e muito gradualmente prepararia o povo para sua soberania. O motivo, para Buonarroti, era que “as massas são incapazes de se regenerarem por si próprias, ou de reconhecer aqueles que deverão dirigir a sua regeneração.”
O florescimento do comunismo nas décadas de 1830 e 1840
Os anos 1830 e 1840 assistiram a um considerável crescimento de grupos comunistas e socialistas messiânicos e milenistas por toda a Europa, notavelmente na França, Bélgica, Alemanha e Inglaterra. owenitas, cabetistas, fourieristas, são-simonianos e muitos outros surgiram e interagiram, e não é necessário para nós examinar todos eles e suas variações sutis com grandes detalhes. O galês Robert Owen foi o primeiro a usar a palavra “socialista” em mídia impressa em 1827, e também considerou “comunionista”, mas a palavra “comunista” finalmente se tornou o título mais popular para o novo sistema.
A palavra foi usada pela primeira vez em uma obra impressa popular na narrativa utópica de Etienne Cabet, Voyage in Icaria (1839),[37] e a partir daí se espalhou como um incêndio por toda a Europa, impulsionada pelo desenvolvimento recente de um serviço postal regular por barco a vapor, e pelos primeiros telégrafos. Quando Marx e Engels, em sua famosa abertura do Manifesto Comunista de 1848, escreveram que “Um espectro assombra a Europa – o espectro do comunismo”, isso era até certo ponto uma hipérbole retórica, mas não estava tão longe da realidade. Como escreve Billington, a palavra-talismã “comunismo” “espalhou-se pelo continente com uma velocidade sem precedentes na histórica de tais epidemias verbais”.[38]
Em meio a esse caldeirão de indivíduos e grupos, alguns mostram-se particularmente interessantes. O primeiro grupo de revolucionários alemães exilados foi a Liga dos Foras-da-Lei, fundada em Paris por Theodore Schuster, sob a inspiração dos escritos de Buonarroti. O panfleto de Schuster, Confissão de Fé de um Fora-da-Lei, foi talvez a primeira projeção da revolução vindoura como sendo a obra de foras-da-lei e párias à margem da sociedade, aqueles fora do ciclo da produção, os quais Marx poria bruscamente de lado (compreensivelmente), chamando-os de “Lumpenproletariat”. Os Lumpen foram mais tarde enfatizados nos anos 1840 pelo principal anarco-comunista, o russo Mikhail Bakunin, prenunciando várias correntes da Nova Esquerda do final dos anos 1960 e início dos 1970.
Os foras-da-lei foram a primeira organização internacional de revolucionários comunistas, compostos por cerca de 100 membros em Paris e quase 80 em Frankfurt. A Liga dos Foras-da-Lei, no entanto, desintegrou-se por volta de 1838; muitos de seus membros, incluindo o próprio Schuster, mudaram seu foco para a agitação nacionalista. Mas a Liga logo foi sucedida por um grupo maior de exilados alemães, a Liga dos Justos, também centrada em Paris.
Os grupos comunistas alemães sempre tendem a ser mais cristãos que os de outras nacionalidades. Assim, Karl Schapper, líder da sede parisiense da Liga dos Justos, chamava seus seguidores de “Irmãos em Cristo”, e aclamava a revolução social vindoura como “o grande dia da ressurreição do povo.”
O tom religioso da Liga dos Justos era intensificado pelo eminente comunista alemão, o alfaiate Wilhelm Weitling. No manifesto que escreveu para a Liga dos Justos, A Humanidade como é e como deveria ser (1838), que apesar de secreto foi amplamente disseminado e discutido, Weitling proclamou-se um “luterano social”, e condenou o dinheiro como a fonte de toda corrupção e exploração. Toda propriedade privada e todo dinheiro deveria ser abolido, e o valor de todos os produtos ser calculado em “horas-trabalho” – a teoria do valor-trabalho levada demasiado a sério. Para a indústria pesada e utilidades públicas, Weitling propunha a mobilização de um “exército industrial” centralizado, abastecido pela conscrição de todo homem e mulher entre as idades de 15 e 18 anos.
Expulsos da França depois das convulsões revolucionárias de 1839, a Liga dos Justos mudou-se para Londres, onde também estabeleceu uma fachada mais ampla, a Sociedade Educacional para Trabalhadores Alemães, em 1840. Os três principais líderes da Sociedade, Karl Schapper, Bruno Bauer, e Joseph Moll, conseguiram ampliar seus números para mais de 1000 membros em 1847, incluindo 250 membros em outros países da Europa e da América Latina.
Um contraste fascinante pode ser observado entre dois jovens comunistas, ambos líderes do movimento nos anos 1840, e ambos dos quais foram quase totalmente esquecidos pelas gerações subsequentes – até mesmo pela maioria dos historiadores.
Um era o cristão inglês John Goodwyn Barmby, visionário e sonhador. Com 20 anos de idade, Barmby, àquela altura um owenita, chegou a Paris em 1840 com a proposta de estabelecer uma Associação Internacional de Socialistas ao redor do mundo. Um comitê provisório chegou a ser formado, encabeçado pelo owenita francês Jules Gay, mas ao final o esquema não levou a nada. O plano, no entanto, prefigurou a Primeira Internacional.
Mais importante, em Paris Barmby descobriu a palavra “comunismo”, e adotando-a ajudou a espalhá-la com enorme fervor. Para Barmby, “comunista” e “comunitarista” eram termos intercambiáveis, e ele ajudou a organizar por toda a França o que ele descreveu aos owenitas ingleses como “banquete(s) sociais da Escola Comunista ou Comunitarista”.
Voltando à Inglaterra, o fervor de Barmby não diminuiu. Ele fundou uma Sociedade de Propaganda Comunista, que logo seria chamada Sociedade Comunitarista Universal, e estabeleceu um periódico, O Prometeano ou Apóstolo Comunitarista, que logo foi rebatizado como A Crônica Comunista. O comunismo, para Barmby, era tanto a “ciência social” quanto a religião final da humanidade. Seu Credo, apresentado na primeira edição do Prometeu, alegava que “o divino é o comunismo, e o demonico é o individualismo”.
Depois desse início energético, Barmby escreveu hinos e preces comunistas, e clamou pela construção de Comunitariums, todos dirigidos por uma Comunarquia suprema liderada por um Comunarca e Comunarquesa eleitos. Barmby proclamava repetidamente a “religião do Comunismo”, e para garantir que tudo correria bem, declarou-se “Pontifarca da Igreja Comunista”.
O subtítulo da Crônica Comunista revela seu messianismo neo-cristão: “O Apóstolo da Igreja Comunista e da Vida Comunitiva: Comunhão com Deus, Comunhão dos Santos, Comunhão de Sufrágios, Comunhão de Labores e Comunhão de Bens”. A luta pelo comunismo, declarou Barmby, era apocalíptica, fadada a terminar com a reunião mística de Satã com Deus:
“Na sagrada Igreja Comunista, o demônio se converterá em Deus. E nessa conversão de Satã, Deus chama aos povos (…) para aquela comunhão de sufrágios, de labores, e de bens tanto espirituais quanto materiais (…) para esses dias vindouros.”[39]
A chegada a Londres de Wilhelm Weitling em 1844 levou ele e Barmby a colaborarem na promoção do comunismo cristão, mas ao final de 1847, eles haviam perdido, e o movimento comunista deslocava-se decisivamente em direção ao ateísmo.
A virada crucial veio em junho de 1847, quando os dois grupos comunistas mais ateístas – a Liga dos Justos em Londres, e o pequeno Comitê de Correspondência Comunista de Bruxelas, de 15 pessoas, liderado por Karl Marx – fundiram-se para formar a Liga Comunista. Em seu segundo congresso, em dezembro, discordâncias ideológicas dentro da Liga foram resolvidas quando foi solicitado a Marx que escrevesse a declaração do novo partido, a qual se tornaria o famoso Manifesto Comunista.
Cabet e Weitling, admitindo sua derrota, migraram separadamente para os Estados Unidos em 1848, para lá tentar estabelecer o comunismo. Ambas as tentativas fracassaram vergonhosamente em meio à sociedade americana em expansão e altamente individualista. Os icarianos de Cabet estabeleceram-se no Texas e depois em Nauvoo, Illinois, e então dividiram-se uma e duas vezes, até que Cabet, expulso pelos seus antigos seguidores em Nauvoo, retirou-se para St. Louis e morreu, rejeitado por quase todos, em 1856.
E quanto a Weitling, ele desistiu mais rapidamente. Em Nova York, ele tornou-se um seguidor do esquema individualista, mas Ricardiano de esquerda, da moeda-trabalho, de Josiah Warren. E em 1854 ele desviou-se mais ainda, tornando-se um burocrata no Serviço Americano de Imigração, gastando a maior parte de seus últimos 17 anos tentando promover suas várias invenções. Ao que parece, Weitling, sem motivo aparente, havia afinal decidido juntar-se à ordem capitalista.
Nesse meio tempo, Goodwyn Barmby isolou-se em uma após outra das Ilhas Anglo-Normandas, tentando fundar uma comunidade utópica, e acusou um de seus antigos seguidores de “infringir seu direito autoral” sobre a palavra “comunismo”, por ter organizado o sucintamente nomeado Periódico Comunista. Gradualmente, no entanto, Barmby abandonou seu universalismo e passou a se intitular um “Nacional Comunista”. Finalmente, em 1848, ele foi à França, tornou-se um ministro Unitário e amigo de Mazzini, e abandonou o comunismo em favor do nacionalismo revolucionário.
Por outro lado, um eminente e jovem comunista francês, Theodore Dezamy, representava uma outra corrente de ateísmo militante com uma perspectiva dura e elitista. Tendo sido secretário pessoal de Cabet no início de sua carreira, Dezamy liderou a súbita explosão comunista iniciada em 1839 e 1840. No ano seguinte, Dezamy tornou-se possivelmente o fundador da tradição marxista-leninista de excomungar todos aqueles que desviem da linha correta. Na verdade, em 1842, Dezamy, um prolífico panfleteiro, atacou amargamente seu mentor, Cabet, e o denunciou, em Calúnias e Políticas do Sr. Cabet, pela sua vacilação crônica. Em Calúnias, Dezamy, pela primeira vez, argumentou que o movimento comunista precisava não só de disciplina política, mas também ideológica.
Mais importante, Dezamy queria purgar do comunismo francês a influência do código comunista poético, moralista e pseudo-religioso exposto por Cabet em sua Voyage in Icaria, e especialmente em seu Credo Comunista de 1841. Dessa forma, Dezamy contra-atacou com seu Código da Comunidade no ano seguinte. Dezamy tentou ser severamente “científico” e alegou que a revolução comunista era não só racional mas também inevitável. Não é de surpreender que Dezamy fosse admirado por Marx.
Adicionalmente, medidas pacíficas ou graduais deviam ser rejeitadas. Dezamy insistia que uma revolução comunista precisaria confiscar toda propriedade privada e todo dinheiro imediatamente. Meias-medidas não satisfariam a ninguém, e além disso, como parafraseado por Billington, “uma mudança rápida e total seria menos sangrenta que um processo lento, já que o comunismo liberta a bondade natural do homem.”[40] Foi de Dezamy, também, que Marx adotou a visão absurdamente simplista de que a administração do comunismo seria um mero trabalho burocrático de listar e registrar pessoas e recursos.[41]
O comunismo revolucionário não seria apenas imediato e total; seria também global e universal. No futuro mundo comunista, haveria um “congresso [global] da humanidade”, uma única língua, e um único serviço chamado de “atletas industriais”, que trabalhariam na forma de festivais da juventude comunais. Além disso, o novo “país universal” aboliria não apenas o “limitado” nacionalismo, mas também outras lealdades divisórias como a família.
Em forte contraste com sua carreira de excomungador ideológico, Dezamy proclamou que, sob o comunismo, o conflito seria logicamente impossível: “não pode haver divisões entre comunistas; nossos embates entre nós mesmos podem apenas ser embates de harmonia, ou de raciocínio,” já que “princípios comunitaristas” constituem “a solução de todos os problemas”.
Em meio a este ateísmo militante havia, porém, uma espécie de fervor e até mesmo fé religiosa. Pois Dezamy falava da “sublime devoção que constitui o socialismo”, e ele exortou os proletários a retornarem à “igreja igualitária, fora da qual não pode haver salvação”.
A prisão e julgamento de Dezamy em 1844 inspirou comunistas alemães em Paris, como Arnold Ruge, Moses Hess, e Karl Marx. Hess começou a trabalhar em uma tradução alemã do Código de Dezamy, encorajado por Marx, que proclamou ser o Código “científico, socialista, materialista, e real-humanista.”[42]
Karl Marx: comunista apocalíptico reabsorcionista
Karl Marx nasceu em Trier, uma venerável cidade na Renânia prussiana, em 1818, filho de um distinto jurista, e neto de um rabino. De fato, ambos os pais de Marx descendiam de rabinos. O pai de Marx, Heinrich, era um racionalista liberal sem grandes ressentimentos quanto à sua conversão forçada ao luteranismo oficial, em 1816. O que é pouco sabido é que, em seus primeiros anos, Karl, tendo sido batizado, era um cristão dedicado.[43]
Em seus ensaios de graduação do gymnasium de Trier em 1835, o jovem Marx prefigurou seu futuro desenvolvimento. Seu texto sobre um tema proposto, “Da União dos Fiéis com Cristo”, era cristianismo evangélico ortodoxo, mas também continha sinais do tema fundamental da “alienação” que ele encontraria em Hegel mais à frente. A discussão de Marx sobre a “necessidade de união” com Cristo enfatizava que essa união poria fim à tragédia da suposta rejeição do homem por Deus. Em um ensaio relacionado, sobre as “Reflexões de um Jovem sobre a Escolha de uma Profissão”, Marx expressou preocupação com seu próprio “demônio da ambição”, da grande tentação que ele sentia de “injuriar a Divindade e amaldiçoar a humanidade”.
Indo primeiro à Universidade de Bonn e depois à prestigiosa Universidade de Berlim para estudar Direito, Marx logo se converteu ao ateísmo militante, mudou seu curso para filosofia, e entrou em um Doktorklub de Hegelianismo Jovem (ou de Esquerda), do qual ele rapidamente se tornou um líder e secretário-geral.
A mudança para o ateísmo logo deu ao demônio da ambição de Marx total controle. Existem volumes de poemas, a maior parte deles perdida até que alguns foram recuperados em anos recentes,[44] que são particularmente reveladores do caráter adulto, bem como jovem, de Marx. Historiadores, ao discutirem esses poemas, tendem a desprezá-los como ânsias Românticas rudimentares, mas eles são demasiado congruentes com as doutrinas sociais e revolucionárias do Marx adulto para serem casualmente abandonados.
Certamente, aqui parece haver um caso em que um Marx unificado (jovem e maduro) é vividamente revelado. Assim, em seu poema Sentimentos, dedicado à sua namorada de infância e futura esposa, Jenny von Westphalen, Marx expressou tanto sua megalomania quanto sua enorme sede por destruição:
“O Paraíso eu abraçaria
Eu traria o mundo a mim;
Amando, odiando, eu pretendo
Que minha estrela brilhe intensamente”
E
“Mundos eu destruiria para sempre,
Já que nenhum mundo posso criar;
Já que meu chamado eles nunca ouvem”
Aqui, é claro, está uma expressão clássica do suposto motivo de Satã para odiar, e rebelar-se contra, Deus.
Em outro poema, Marx escreve sobre seu triunfo após ter destruído o mundo criado por Deus:
“Então eu andarei triunfantemente,
Como um deus, pelas ruínas do seu reino.
Cada palavra minha é fogo e ação.
Meu seio é igual àquele do Criador.”
E em seu poema Invocação de Um em Desespero, Marx escreve,
“Eu construirei meu trono nas alturas,
Frio, tremendo será seu cume.
Sua defesa – o medo supersticioso.
Seu general – a mais negra agonia.” [45]
O tema de Satã é avançado em sua forma mais explícita em O Violinista de Marx, dedicado ao seu pai:
“Vê esta espada?
O príncipe da escuridão
Vendeu-a para mim.”
E
“Com Satã eu selei meu acordo,
Ele marca os sinais, bate o tempo
Eu toco a marcha da morte rápido e solto.”
É particularmente instrutivo o longo drama poético inacabado de Marx sobre o período de sua juventude, Oulanem, Uma Tragédia. No decorrer deste drama o herói, Oulanem, declama um notável solilóquio, com sustentada invectiva, um profundo ódio do mundo e da humanidade, um ódio da criação, e uma ameaça e uma visão da destruição total do mundo.
Assim Oulanem despeja os frascos de sua ira:
“Uivarei maldições gigantescas sobre a humanidade.
Ha! Eternidade! Ela é uma dor eterna.
Nós sendo as engrenagens, cegamente mecânicas,
Feitos para sermos calendários do Tempo e do Espaço,
Sem propósito que não seja acontecermos, e nos arruinarmos,
Para que assim haja algo a arruinar
Se há um Algo que devora,
Para dentro dele eu saltarei, pois que eu leve o mundo a ruínas –
O mundo que se impõe entre mim e o Abismo
Eu quebrarei em pedaços com minhas contínuas maldições.
Jogarei meus braços para abraçar sua dura realidade:
Abraçando-me, o mundo mudamente morrerá,
E então afundará até o completo nada,
Perecido, sem existência – isso seria realmente viver!”
E
“(…) o peso do mundo prende-nos sem folga
E estamos acorrentados, estilhaçados, vazios, amedrontados,
Eternamente presos a este bloco de mármore da Existência,
(…) e nós – Nós somos os macacos de um Deus frio.”[46]
Tudo isso revela um espírito que muitas vezes parece motivar o ateísmo militante. Em contraste com o ateísmo não-militante, que simplesmente expressa descrença na existência de Deus, o ateísmo militante parece acreditar implicitamente na existência de Deus, mas odeia-O e se esforça pela Sua destruição.
Tal espírito é revelado muito claramente na réplica do ateísta militante e anarco-comunista Bakunin ao famoso dito pró-teísta de Voltaire, “Se Deus não existisse, seria necessário criá-Lo”. A isso, Bakunin retrucou insanamente: “Se Deus existisse, seria necessário destruí-Lo.” Era esse ódio contra Deus, como criador maior que ele próprio, que aparentemente movia Karl Marx.
Quando Marx chegou à Universidade de Berlim, o coração do Hegelianismo, ele encontrou essa como a doutrina reinante, mas um tanto descoordenada. Hegel morrera em 1831; o Grande Filósofo supostamente traria consigo o fim da História, mas agora Hegel morrera e a história petulantemente continuava a marchar. E se o próprio Hegel não era a culminação da História, então talvez o Estado prussiano de Friedrich Wilhelm III também não fosse o estágio final da História. Mas se não era, não estaria a dialética, talvez, se preparando para outra grande mudança, outra Aufhebung?
Assim raciocinaram grupos de jovens radicais os quais, entre os anos 1830 e 1840 na Alemanha e outros lugares, formaram o movimento dos Jovens Hegelianos (ou Hegelianos de Esquerda). Desiludidos com o Estado prussiano, esses Jovens Hegelianos proclamavam a aproximação inevitável de uma revolução apocalíptica que, dessa vez, realmente traria o fim da História, na forma do comunismo racional ou mundial. Ou seja, depois de Hegel, a dialética deveria andar ainda mais um passo.
Um dos primeiros e mais influentes Hegelianos de Esquerda era um aristocrata polonês, Conde August Cieszkowski, que escreveu em alemão e publicou em 1838 seus Prolegómenos para uma Historiosofia. Cieszkowski trouxe ao Hegelianismo uma nova dialética da História, uma nova variante das três eras do homem.
A primeira era, a da antiguidade, era por algum motivo a Era da Emoção, a época do puro sentimento e nenhum pensamento reflexivo, do imediatismo elemental e, portanto, da união com a natureza. O “espírito” estava em “si mesmo” (an sich). A segunda era, a Cristã, a qual se estendia do nascimento de Jesus até a morte do grande Hegel, era a Era do Pensamento, da reflexão, na qual o “espírito” movia-se “em direção a si mesmo”, rumo à abstração e à universalidade. Mas o cristianismo, a Era do Pensamento, também fora uma era de intolerável dualidade, de alienação, do Homem separado de Deus, do espírito separado da matéria, e o pensamento da ação.
Finalmente, a era culminante que alvorecia, prenunciada (é claro) pelo Conde Cieszkowski, seria a Era da Ação. A terceira era pós-Hegeliana seria uma era de ação prática, na qual o pensamento tanto do cristianismo quando de Hegel seriam transcendidos e incorporados em um ato de vontade, uma revolução final que derrubaria e transcenderia as instituições existentes.
Para o termo “ação prática”, Cieszkowski emprestou a palavra grega praxis para resumir o caráter da nova era, um termo que logo serviria como um talismã para o marxismo. A era final da ação traria, no mínimo, uma abençoada união entre pensamento e ação, espírito e matéria, Deus e terra, e completa “liberdade”. Concordando com Hegel e os místicos, Cieszkowski enfatizou que todos os eventos do passado, mesmo aqueles aparentemente malévolos, haviam sido necessários à culminação da salvação final.
Em uma obra publicada em francês em Paris em 1844, Cieszkowski também anunciou a nova classe destinada a tornarem-se os líderes da sociedade revolucionária: a intelligentsia, uma palavra recentemente cunhada pelo polonês educado na Alemanha B. F. Trentowski.[47] Cieszkowski assim proclamou e glorificou um aspecto que seria ao menos implícito no movimento marxista (afinal, todos os grandes marxistas, a começar por Marx e Engels, eram intelectuais burgueses e não filhos do proletariado). Em geral, no entanto, os marxistas têm evitado mencionar essa realidade que sabota o igualitarismo e proletarismo ostensivos de sua ideologia. Os teóricos da “nova classe” têm sido todos críticos do socialismo marxista (e.g. Bakunin, Machajski, Michels, Djilas).
O conde Cieszkowski, por seu lado, não estava destinado a surfar a futura onda do socialismo revolucionário. Pois ele adotou o caminho cristão messiânico, e não ateísta, para a nova sociedade. Em sua maciça e inacabada obra de 1848, Nosso Pai (Ojcze nasz), Cieszkowski sustentava que a nova era de comunismo revolucionário seria uma Terceira Era, a Era do Espírito Santo (ecos de Joachim de Fiore!), uma era em que haveria um Reino de Deus na Terra “como é no Paraíso”. Esse RDT final reintegraria toda a “humanidade orgânica”, e seria governado por um Governo Central de Toda a Humanidade, liderado por um Conselho Universal do Povo.
À época, não estava claro qual vertente de comunismo revolucionário, a religiosa ou a ateísta, afinal triunfaria. Assim Alexander Ivanovich Herzen, um fundador da tradição revolucionária russa, fascinou-se com a versão do Hegelianismo de esquerda avançada por Cieszkowski, escrevendo que “a sociedade futura será obra não do coração, mas do concreto. Hegel é o novo Cristo trazendo a verdade aos homens.”[48] E logo Bruno Bauer, amigo e mentor de Karl Marx e líder do Doktorklub de Jovens Hegelianos na Universidade de Berlim, aclamou a nova filosofia da ação de Cieszkowski ao final de 1841 como o “clarim do Juízo Final.”
Mas a corrente vitoriosa no movimento socialista europeu, como já indicamos, foi eventualmente o ateísmo de Karl Marx. Enquanto Hegel “panteizara” e elaborara a dialética do messianismo cristão, Marx agora “virava Hegel de ponta-cabeça”, “ateizando” a dialética, e apoiando-a não no misticismo ou no “espírito”, nem na Ideia Absoluta ou na Mente Universal, mas na fundação supostamente sólida e “científica” do materialismo filosófico.
Marx adotou seu materialismo do Hegeliano de esquerda Ludwig Feuerbach, particularmente de sua obra A Essência do Cristianismo (1843). Em contraste com a ênfase Hegeliana no “espírito”, Marx estudaria as leis ostensivamente científicas da matéria, que de alguma forma operavam por meio da História. Marx, em resumo, pegou a dialética e moldou-a em uma “dialética materialista histórica”.
Ao reforjar a dialética em termos materialistas e ateístas, no entanto, Marx perdeu a poderosa força motriz da dialética como esta supostamente operara através da História: ou o messianismo cristão, ou a Providência, ou a crescente autoconsciência do Espírito Universal. Como poderia Marx encontrar um substituto materialista e “científico”, baseado nas inescapáveis “leis da História”, que pudesse explicar não só o processo histórico até aqui, mas, mais importantemente, a inevitabilidade da transformação apocalíptica iminente de todo o mundo para o comunismo?
Basear suas predições do Armageddon iminente na Bíblia é uma coisa; deduzir tal evento a partir de uma lei científica é outra bem diferente. Explicar o funcionamento desse motor da História ocuparia Karl Marx pelo resto de sua vida.
Apesar de Feuerbach ter sido indispensável para a adoção, por Marx, de uma posição consistentemente materialista e ateísta, Marx logo sentiu que Feuerbach não tinha ido longe o suficiente. Apesar de ser filosoficamente um comunista, Feuerbach basicamente acreditava que se o homem apenas abandonasse a religião, sua alienação em relação a si mesmo terminaria.
Para Marx, a religião era apenas um dos problemas. O próprio mundo do homem (o Menschenwelt) era alienante, e precisaria ser derrubado radicalmente, da raiz às folhas. Apenas a destruição apocalíptica desse mundo do homem permitirá a realização da verdadeira natureza humana. Apenas então o não-homem existente (Unmensch) verdadeiramente se transformaria em homem (Mensch). Como Marx declarou contundentemente na quarta de suas Teses sobre Feuerbach, “devemos destruir a ‘família terrena’ como ela é tanto ‘na teoria quanto na prática’”.[49]
Particularmente, declarou Marx, o verdadeiro homem, como argumentara Feuerbach, é um “ser comunal” (Gemeinswen) ou “ser de espécie” (Gattungswesen). Apesar de o Estado em sua presente forma precisar ser negado ou transcendido, a participação do homem no Estado era o resultado de tal natureza.
O principal problema surge na esfera privada, o mercado, ou “sociedade civil”, na qual o não-homem age como egoísta, como pessoa privada, tratando seus pares como meios, e não coletivamente como mestres de seus destinos. E no atual estado das coisas, infelizmente, a sociedade civil é primária, enquanto o Estado, ou “comunidade política”, é secundário. Para realizar a verdadeira natureza da humanidade, seria necessário transcender o Estado e a sociedade civil através da politização de toda a vida, tornando “coletivas” as ações do homem. Então o homem individual se tornará verdadeira e completamente um ser de espécie.[50]
Mas apenas uma revolução, uma orgia de destruição, poderia realizar tal tarefa. E aqui Marx voltava ao espírito que inspirara os apelos pela total destruição nos poemas de sua juventude. Realmente, em um discurso em Londres em 1856, Marx expressou vívida e carinhosamente esse objetivo de sua “praxis”. Ele mencionou que na Alemanha, durante a Idade Média, existira um tribunal secreto chamado Vehmgericht. Como ele explicou:
Se a marca de uma cruz vermelha fossa vista em uma casa, as pessoas sabiam que seu dono havia sido condenado pelo Vehm. Todas as casas da Europa estão agora marcadas com a misteriosa cruz vermelha. A história é o juiz – e o proletariado seu carrasco.[51]
Marx, na verdade, não estava satisfeito com o comunismo filosófico ao qual ele e Engels haviam sido separadamente convertidos pelo Hegeliano de esquerda Moses Hess, pouco mais velho que eles, nos anos 1840. Ao final de 1843, Marx adicionou ao comunismo de Hess a ênfase crucial no proletariado, não simplesmente como classe econômica, mas aquela destinada a se tornar a “classe universal” quando o comunismo fosse atingido.
Ironicamente, Marx adquiriu essa visão do proletariado como chave para a revolução comunista de um influente livro publicado em 1842, por um jovem inimigo do socialismo, Lorenz von Stein. Stein interpretou os movimentos socialistas e comunistas contemporâneos como racionalizações dos interesses de classe do proletariado despojado. Marx descobriu no ataque de Stein o motor “científico” da chegada inevitável da revolução comunista.[52] O proletariado, a classe mais “alienada” e supostamente “despojada”, seria a chave.
Nós nos acostumamos, desde as alterações feitas por Stalin ao marxismo, a considerar o “socialismo” como o primeiro “grande passo” de uma sociedade comunista, e o “comunismo” como o estágio final. Não era assim que Marx via o desenvolvimento de seu sistema. Marx, assim como os outros comunistas de sua época, usava “comunismo” e “socialismo” como termos intercambiáveis para descrever sua sociedade ideal. Ao invés disso, Marx previu que a dialética operaria misteriosamente para fazer surgir o primeiro estágio, o do comunismo “cru” ou “bruto”, o qual seria magicamente transformado pela mesma dialética no estágio “mais elevado” do comunismo.
É notável que Marx, especialmente em seu Propriedade Privada e Comunismo, aceitasse a imagem horripilante pintada por von Stein do estágio “bruto” do comunismo. Stein previa que o comunismo procuraria forçar o igualitarismo, ferozmente roubando e destruindo propriedades, confiscando-as, e comunizando coercitivamente as mulheres assim como a riqueza material. De fato, a avaliação de Marx do comunismo bruto, o estágio da ditadura do proletariado, era ainda mais negativa que a de Stein:
Da mesma forma que a mulher deverá trocar o casamento pela prostituição universal, também o mundo da riqueza como um todo, isto é, o ser objetivo do homem, deverá abandonar sua relação conjugal exclusiva com o possuidor de propriedade privada, em favor da relação de prostituição geral com a comunidade.
Não apenas isso, mas, como explicado pelo Professor Tucker, Marx concede que “o comunismo bruto não é a real transcendência da propriedade privada, mas apenas sua universalização, e não é a abolição do trabalho, mas apenas sua extensão a todos os homens. É meramente uma nova forma na qual a podridão da propriedade privada vem à superfície.”
Em resumo, no estágio de comunização da propriedade privada, aquilo que o próprio Marx considera serem as piores características da propriedade privada será maximizado. Não só isso, mas Marx concede a verdade da acusação dos anticomunistas de então e de hoje, de que o comunismo e a comunização são apenas a expressão, nas palavras de Marx, da “inveja e [d]o desejo de reduzir tudo a um nível comum”. Longe de dizer que o comunismo levará a um florescimento da personalidade humana, como é frequentemente alegado, Marx admite que o comunismo negará totalmente essa personalidade. Assim, Marx escreve,
Ao negar completamente a personalidade do homem, esse tipo de comunismo, na verdade, nada mais é que a expressão lógica da propriedade privada. A inveja generalizada, constituindo-se como uma potência, é o disfarce através do qual a ganância se restabelece e satisfaz, mas de outra forma. (…) Ao enxergar a mulher como o espólio e a serva do desejo comunal, é expressa a degradação infinita na qual o homem existe para si próprio.[53]
Marx claramente não enfatizou esse lado negro da revolução comunista em suas obras posteriores. O Professor Tucker explica que “essas indicações vívidas dos manuscritos de Paris, da forma como Marx encara e julga o período imediatamente após a revolução, muito provavelmente explicam sua extrema reticência sobre o assunto em suas obras publicadas”.[54]
Mas se esse comunismo é, por sua própria admissão, tão monstruoso, um regime de “degradação infinita”, qual o motivo para alguém defendê-lo, e ainda por cima dedicar sua vida, e uma revolução sangrenta, ao seu estabelecimento? Aqui, como acontece frequentemente no pensamento e nos escritos de Marx, ele recua para a mística da “dialética” – aquela maravilhosa varinha mágica através da qual um regime inevitavelmente leva à vitória de sua própria transcendência e negação; e, neste caso, através da qual o puro mal – o qual, curiosamente, é o estado pós-revolucionário e não o capitalismo que o precedeu – transforma-se no puro bem, uma Terra do Nunca na qual não existe a divisão do trabalho nem nenhuma outra forma de alienação.
O ponto curioso é que, apesar das tentativas de Marx de explicar o movimento dialético do feudalismo para o capitalismo e do capitalismo para o primeiro estágio do comunismo em termos da luta de classes e das forças materiais produtivas, ambos esses fatores desaparecem uma vez atingido o comunismo bruto. A transformação supostamente inevitável do inferno do comunismo bruto para o paraíso do comunismo “elevado” é deixada sem nenhuma explicação; para o mecanismo dessa transformação crucial, devemos nos contentar com a fé na mística da dialética.
Não obstante a pretensão de Marx de ser um “socialista científico”, menosprezando todos os outros socialistas, os quais ele desdenhava como moralistas e “utópicos”, está claro que o próprio Marx estava ainda mais ligado à tradição messiânica utópica do que seus concorrentes “utopistas”. Pois Marx não apenas almejava uma sociedade futura que poria um fim à História, como também alegava ter encontrado um caminho para tal utopia inevitavelmente determinado pelas “leis da História”.
Um utopista, e um dos ferozes, Marx certamente era. Uma marca registrada de toda utopia é um desejo militante de pôr um fim à História, de congelar a humanidade em um estado estático, de pôr um fim à diversidade e ao livre arbítrio do homem, e de organizar a vida de todos de acordo com o plano totalitário do utopista. Muitos socialistas e comunistas anteriores expuseram suas utopias com detalhes absurdamente minuciosos, determinando o tamanho dos quartos de cada pessoa, o alimento que todos comeriam, etc. Marx não era tolo o suficiente para fazer isso, mas todo o seu sistema, como aponta o Professor Thomas Molnar, é “a busca da mente utopista pela estabilização definitiva da humanidade, ou, em termos gnósticos, sua reabsorção pelo ser atemporal.”
Para Marx, sua busca pela utopia era, como vimos, um ataque explícito à Criação de Deus, e um desejo feroz de destruí-la. A ideia de esmagar as muitas e diversas facetas da criação, e de retornar a uma suposta união perdida com Deus começou, como vimos, com Plotinus. Como resumiu Molnar,
De acordo com essa visão, a própria existência é um ferimento na não-existência. Filósofos de Plotinus a Fichte e além sustentaram que a reabsorção do universo policrômico pelo Ser eterno seria preferível à criação. Se isso se mostrar impossível, eles propõem organizar um mundo em que a mudança é posta sob controle, de forma a pôr um fim à vontade perturbadoramente livre dos homens e aos movimentos imprevisíveis da sociedade. Eles buscam retornar do conceito linear judaico-cristão para o ciclo greco-hindu – isto é, para a permanência imutável e atemporal.
O triunfo da união sobre a diversidade significa, para os utopistas, incluindo Marx, que a “sociedade civil, com sua diversidade perturbadora, pode ser abolida”.[55]
Em Marx, preenchendo o lugar da vontade divina e da dialética Hegeliana do espírito universal ou da Ideia Absoluta, está o materialismo monista; sua suposição central, como diz Molnar, é “que o universo consiste de matéria, mais alguma forma de lei unidimensional imanente na matéria”. Nesse caso, “o próprio homem é reduzido a um agregado material complexo, mas manipulável, vivendo na companhia de outros agregados, e formando superagregados de crescente complexidade: sociedades, corpos políticos, igrejas, etc.” As supostas leis da história, então, são derivadas por marxistas científicos como supostamente evidentes e imanentes na própria matéria.
O processo marxista em direção à utopia, então, é a conscientização gradual do homem quanto à sua própria natureza, e subsequentemente a recriação do mundo de acordo com essa natureza. Engels, na verdade, proclamou explicitamente os conceitos Hegelianos do Deus-Homem:
Até aqui a pergunta sempre se manteve: o que é Deus? – e a filosofia alemã Hegeliana respondeu-a da seguinte forma: Deus é o homem. (…) O homem agora precisa organizar o mundo de uma forma realmente humana, de acordo com as necessidades de sua natureza.[56]
Mas esse processo é crivado de autocontradições; por exemplo, e crucialmente, como pode a mera matéria compreender sua própria natureza? Como explica Molnar, “pois de que forma pode a matéria ganhar compreensão? E se ela pode compreender, não é apenas matéria, mas matéria mais algo.”
Nesse processo pretensamente inevitável da chegada à utopia proletária comunista depois de a classe proletária tornar-se consciente de sua própria natureza, qual seria a função de Karl Marx? Na teoria Hegeliana, o próprio Hegel é a última e maior figura “histórico-mundial”, o Deus-Homem dos deuses-homens. Similarmente, Marx se vê em um ponto focal da História, como o homem que trouxe ao mundo o conhecimento crucial da natureza do homem e das leis da História, servindo, dessa forma, como “parteiro” do processo que poria fim à História. Assim, Molnar escreve:
Assim como todos os utopistas e autores gnósticos, Marx está muito menos interessado nos estágios da História até o presente (o agora egotista de todos os escritores utopistas) do que nos estágios finais, quando a essência do tempo se torna mais concentrada, quando o drama se aproxima de seu desfecho. Na verdade, o autor utopista concebe a História como um processo cujo ápice é ele próprio, aquele que finalmente compreende, a figura central da História. É natural que as coisas acelerem durante sua própria vida, e cheguem a um divisor de águas: ele se põe entre o Antes e o Depois.[57]
Dessa forma, em comum com outros utopistas socialistas e comunistas, Marx procurava no comunismo a apoteose da espécie coletiva – a humanidade como um novo superser, no qual o único papel do indivíduo é como partícula negligível daquele organismo coletivo. Muitos dos numerosos epígonos de Marx continuaram essa busca.
Uma caracterização incisiva do organicismo coletivo marxista – o que poderia ser chamado de uma celebração do Novo Homem Socialista a ser criado durante o processo comunizante – foi aquela de um alto teórico bolchevique do início do século XX, Alexander Alexandrovich Bogdanov. Bogdanov também falava de “três eras” da História humana. A primeira foi uma sociedade religiosa e autoritária, de economia autosuficiente.
Depois veio a “segunda era”, uma economia de trocas, marcada pela diversidade e pela emergência da “autonomia” da “personalidade humana individual”. Mas esse individualismo, inicialmente progressista, depois torna-se um obstáculo ao progresso, pois dificulta e “contradiz as tendências unificantes da era das máquinas”. Mas então chegará a Terceira Era, o estágio final da História: o comunismo. Este último estado será marcado por uma economia coletiva e autosuficiente, e pela
Fusão das vidas pessoais em um todo colossal, cujas partes funcionam em harmonia, sistematicamente agrupando todos os seus recursos em favor de uma luta comum – a luta contra a infindável espontaneidade da natureza. (…) Uma enorme massa de atividade criadora (…) é necessária para completar essa tarefa. Ela demanda as forças não apenas do homem, mas da humanidade – e a Humanidade como entidade em si própria surge apenas ao trabalhar nessa tarefa.[58]
Finalmente, no ápice do comunismo messiânico marxista está um homem que funde todas as tendências e vertentes analisadas até aqui. Uma mistura de cristão messianista e um Marxista-Leninista-Stalinista dedicado, o marxista alemão do século XX Ernst Bloch expôs sua visão em uma obra de três volumes, recentemente traduzida, O Princípio da Esperança (Daz Prinzip Hoffung).
Logo cedo em sua carreira, Bloch escreveu um estudo religioso das crenças e vida do comunista Anabatista coercivo Thomas Müntzer, o qual aclamou como mágico, ou “teúrgico”. A “verdade” profunda, escreveu Bloch, só será descoberta após uma “grande transformação do universo, um grande apocalipse, a vinda do Messias, um novo paraíso e uma nova terra.”
Nas obras de Bloch há mais que uma leve sugestão de que as doenças, e até a própria morte, seriam abolidas com o advento do comunismo.[59] Deus está em desenvolvimento; “o próprio Deus é parte da Utopia, um fim ainda não realizado.” Para Bloch, êxtases místicos e adoração a Lênin e Stálin andavam de braços dados. Como escreve J. P. Stern, o Princípio da Esperança de Bloch contém declarações tão inesquecíveis quanto “Ubi Lenin, ibi Jerusalem” (“Onde está Lenin, há Jerusalém”), e que “a realização bolchevique do Comunismo” é parte da “imemorial luta por Deus”.
Na pessoa de Ernst Bloch, a velha e amarga divisão dos anos 1830 e 1840 entre as alas ateia e cristã do movimento comunista europeu foi afinal resolvida. Ou, dito de outra forma, em uma reviravolta bizarra da dialética da História, a derrota total do comunismo cristão, às mãos da vontade e organização revolucionárias superiores de Karl Marx, tinha sido transcendida e negada.
A visão messiânica e escatológica dos comunismos religiosos heréticos agora voltava com força total, dentro da suposta fortaleza do comunismo ateu: o próprio marxismo. De Ernst Bloch aos cultos de personalidade fanáticos de Stálin e Mao, passando pela visão genocida de Pol Pot no Camboja, e pela guerrilha do Sendero Luminoso no Peru, parece que, no coração e na alma do marxismo, Thomas Müntzer triunfara conclusivamente sobre Feuerbach.
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Notas
[1] Ernest L. Tuveson, “The Millenarian Structure of The Communist Manifesto,” em C. Patrides e J. Wittreich, eds., The Apocalypse in English Renaissance Thought and Literature (Ithaca, N.Y.: Cornell University Press, 1984), pp. 326–27. Tuveson especula que Marx e Engels podem ter sido influenciados pela explosão de milenarismo na Inglaterra nos anos 1840. Sobre esse fenômeno, particularmente o afloramento dos milenitas na Inglaterra e nos Estados Unidos, os quais prediziam o fim do mundo em 22 de outubro de 1844, ver o trabalho clássico sobre o milenarismo moderno, Ernest R. Sandeen, The Roots of Fundamentalism: British and American Millenarianism, 1880–1930 (Chicago: University of Chicago Press, 1970). Veja Tuveson, “Millenarian Structure,” p. 340, n. 5.
[2] Assim, na obra altamente estimada de Thomas Sowell, Marxism: The Philosophy and Economics (London: Unwin Paperbacks. 1986), o comunismo recebe pouquíssima atenção.
[3] O livro-texto soviético oficial sobre o marxismo tratava seu próprio objetivo de forma brusca e evasiva, insistindo que todos os soviéticos deveriam trabalhar duro e não tentar pular nenhum dos “estágios” na longa estrada para o comunismo. “O PCUS [Partido Comunista da União Soviética], sendo um partido de comunismo científico, avança e resolve o problema da construção do comunismo considerando os seus pré-requisitos materiais e espirituais, os quais devem estar prontos e maduros, guiado pelo fato de que os estágios de desenvolvimento necessários não devem ser pulados. Fundamentos do Marxismo-Leninismo, 2a rev. ed. [Moscou: Casa de Publicações em Línguas Estrangeiras, 1963], p. 662. Ver também ibid, pp. 645-46, 666-67, e 674-75.
[4] Ver a obra iluminadora de Robert C. Tucker, Philosophy and Myth in Karl Marx (1970, New York: Cambridge University Press, 1961).
[5] O Que Marx Realmente Quis Dizer era o título de uma obra simpática ao marxismo, por G. D. H. Cole (London, 1934).
[6] Alexander Gray, The Socialist Tradition (London: Lougmans Green, 1946), pp. 321–22.
[7] Outro exemplo do que pode ser chamado de comportamento “religioso” dos marxistas é a insistência de pensadores que claramente abandonaram todos os pontos cruciais do marxismo de continuarem a se chamarem pelo nome mágico “marxista”. Um caso recente é o dos “marxistas analíticos” britânicos, como John Roemer e Jon Elster. Para uma crítica dessa escola por um marxista ortodoxo, ver Michael A. Lebowitz, “Is ‘Analytical Marxism’ Marxism?” Science and Society, vol. 52 (Verão de 1988): pp. 191–214.
[8] Leszek Kolakowski, Main Currents of Marxism: Its Origins, Growth and Dissolution, vol. 1 (Oxford: Oxford University Press, 1981) pp. 9-39.
[9] O grande apologista do cristianismo ortodoxo G. K. Chesterton iluminou brilhantemente a diferença entre o individualismo cristão e o coletivismo panteísta na seguinte crítica à budista Sra. Annie Besant, uma das fundadoras da Sociedade Fabiana: “De acordo com a Sra. Besant a Igreja universal é simplesmente o Ego universal. É a doutrina de que somos todos uma única pessoa; que não existem muros de individualidade entre um homem e outro. (…) Ela não nos ensina a amar nossos vizinhos; ela nos exorta a sermos nossos vizinhos. (…) O abismo intelectual entre o budismo e o cristianismo é que, para o budista ou o teosofista, a personalidade é a queda do homem; para o cristão, é o próprio propósito de Deus, o motivo de toda a Sua ideia cósmica.” G.K. Chesterton, Orthodoxy (New York, 1927), pp. 244–45. Citado em Thomas Molnar, Utopia: The Perennial Heresy (New York: Sheed and Ward, 1967), p. 123.
[10] Alexander Gray se divertiu um bocado com o conceito de “negação” na dialética Hegeliana e marxista. Ele escreve que os exemplos da “negação da negação” no Anti-Duhring de Hengel “podem se tratar de Hegelianismo bem embasado, mas continuam sendo um tanto ridículos. Uma semente de cevada cai no chão e germina: negação da semente. No outono ela produz mais grãos de cevada: negação da negação. Uma borboleta surge do ovo: negação do ovo. Depois de muitas transformações, a borboleta acasala e morre: negação da negação. (…) Certamente Hegel deve ser algo mais que isso.” Gray ainda comenta que o resumo admirador do Hegelianismo feito por Marx em seu Pobreza e Filosofia tem um “certo valor como entretenimento”: “sim torna-se não, não torna-se sim, sim vira ao mesmo tempo sim e não, não é ao mesmo tempo não e sim, os contrários se equilibram, neutralizam, e paralisam”. (Minha própria tradução (Rothbard) da frase original de Gray em francês, que ele achava “especialmente” divertido). Gray, Socialist Tradition, p. 300, n. 1 and n. 2.
[11] Ver M. H. Abrams, Natural Supernaturalism: Tradition and Revolution in Romantic Literature (New York: Norton, 1971), p. 161.
[12] A maioria dos protestantes aderiam à visão muito diferente, e muito mais correta, de que a Conquista Normanda havia imposto a separação da terra em propriedades feudais, em uma Inglaterra que antes fora quase um idílio de genuína propriedade privada.
Engels e outros historiadores e antropólogos enxergavam o Comunismo Primitivo, ou Era Dourada, em sociedades tribais pré-mercado. Pesquisas antropológicas modernas, no entanto, demonstraram que a maioria das sociedades tribais e primitivas eram baseadas em propriedade privada, dinheiro, e economias de mercado. Ver Bruce Benson, “Enforcement of Private Property Rights in Primitive Societies: Law Without Government,” Journal of Libertarian Studies, vol. 9 (Inverno de 1989): 1–26.
[13] In M.H. Abrams, Natural Supernaturalism, p. 517n.
[14] Christopher Hill, The World Turned Upside Down: Radical Ideas During the English Revolution (Londres: Penguin Books, 1975), p. 136. Ver também F. D. Dow, Radicalism in the English Revolution 1640–1660 (Oxford: Basil Blackwell, 1985), pp. 74–80.
[15] Ver a obra superba do principal crítico literário do Romantismo, Abrams, Natural Supernaturalism.
[16] Hegel era nominalmente um Luterano, mas o Luteranismo na Alemanha à época era evidentemente abrangente o suficiente para incluir panteísmo.
[17] Robert C. Tucker, Philosophy and Myth, pp. 53–54.
[18] Ver Raymond Plant, Hegel (Bloomington Indiana University Press, 1973), p. 120.
[19] Ferguson, além do mais, usou sua frase de forma muito similar à de Hegel, e originalmente estava bem distante da análise Hayekiana do livre mercado. Ferguson, como um jovem ministro calvinista, se alistou para a supressão da rebelião jacobina de 1745 na Escócia. Após a rebelião ter sido finalmente esmagada, Ferguson deu um sermão no qual ele procurava resolver a grande questão: por que Deus permitiu que os Católicos quase triunfassem na busca de seus malignos objetivos? Sua resposta foi que os Católicos, mesmo enquanto conscientemente praticavam atos maus, serviam como agentes do propósito de Deus; no caso, erguer a Igreja Presbiteriana escocesa do que ele considerava como apatia. Assim, um esboço da “astúcia da Razão” na História, mas com objetivos teístas e não panteístas. Ver Richard B. Sher, Church and University in the Scottish Enlightenment (Princeton, Princeton University Press, 1985), pp. 40–44.
[20] Como corretamente enfatizou Paul Craig Roberts, a “alienação” do Homem não é simplesmente a relação capitalista de assalariamento, mas algo mais profundo: a divisão do trabalho e a própria economia monetária. Mas como vimos, a alienação está ainda mais profundamente enraizada na condição cósmica da situação do homem, até a reabsorção da coletividade homem-natureza sob o comunismo. Ver Paul Craig Roberts, Alienation and the Soviet Economy (Albuquerque: University of New Mexico, 1971); e Roberts e Matthew A. Stephenson, Marx’s Theory of Exchange, Alienation and Crisis, 2a ed. (New York: Praeger, 1983).
[21] Plant, Hegel, p. 96.
[22] Ver Plant, Hegel, pp. 122, 123, e 181. Ver também Karl R. Popper, The Open Society and its Enemies, vol. 2 (New York: Harper Torchbooks, 1963), p. 31.
[23] Tucker, Philosophy and Myth, pp. 54–55. E. F. Carritt aponta que, para Hegel, a “liberdade” é “desejar acima de tudo servir ao sucesso e à glória de seu Estado. Ao desejar isso, deseja-se que seja feita a vontade de Deus.” Se um indivíduo acredita que ele deve fazer algo que não seja para o sucesso e glória de seu Estado, então, para Hegel, ele deve ser ‘forçado a se libertar’”. Como uma pessoa pode saber qual ação resultará na glória do Estado? Para Hegel, a resposta era simples. O que quer que os governantes do Estado demandarem, já que “o próprio fato de serem governantes é o sinal mais certo de que Deus quer que o sejam.” Lógica impecável! Ver E. F. Carritt, “Reply” (1940), republicado em W Kauffmann, ed., Hegel’s Political Philosophy (New York: Atherton Press, 1970), pp. 38–39.
[24] Tucker oferece um comentário interessante sobre a reação do eminente Hegeliano W. T. Stace, o qual havia escrito que “não devemos chegar à conclusão prepostera de que, de acordo com a filosofia de Hegel, eu, este espírito particularmente humano, sou o Absoluto, nem que o Absoluto seja qualquer espírito em particular, nem mesmo a humanidade em geral. Tais conclusões seriam nada menos que chocantes.” Tucker nota que esse “argumento de propriedade” não responde à questão “por que devemos assumir que Hegel jamais poderia ser ‘chocante’”. Ou prepostero, ou megalomaníaco. Tucker, Philosophy and Myth, pp. 46n., 47n.
[25] Sobre a influência exercida pelos pontos de vista de Schiller sobre o organicismo e alientação em Hegel, Marx e posteriormente na sociologia, ver Leon Bramson, The Political Context of Sociology (Princeton: Princeton University Press, 1961), p. 30n.
[26] Ver Abrams, Natural Supernaturalism, p. 311.
[27] Como coloca o historiador Normal Cohn, o “novo mundo joachimita seria um vasto monastério em que todos os homens seriam monges contemplativos em êxtase místico, e unidos no louvor a Deus.” Norman Cohn, The Pursuit of the Millennium, rev. ed. (New York: Oxford University Press, 1970), pp. 108–09.
[28] Cohn, Pursuit of the Millennium, p. 182.
[29] Ronald A. Knox, Enthusiasm: A Chapter in the History of Religion (1950; New York: Oxford University Press, 1961), pp. 132–34.
[30] Citado em Igor Shafarevich, The Socialist Phenomenon (New York: Harper and Row, 1980), p. 57.
[31] Gray, Socialist Tradition, pp. 90–91.
[32] Gray, Socialist Tradition, pp. 62–63.
[33] Ver o revelador artigo de Paul Gottfried, “Utopianism of the Right: Maistre and Schlegel,” Modern Age, vol. 24 (Primavera de 1980): pp. 150–60.
[34] James H. Billington, Fire in the Minds of Men: Origins of the Revolutionary Faith (New York: Basic Books, 1980), p. 73.
[35] Para essa e outras citações traduzidas do Manifesto, ver Shafarevich, The Socialist Phenomenon, pp. 121–24. Ver também Gray, Socialist Tradition, p. 107.
[36] Billington, Fire in the Minds, p. 75. Ver também Gray, Socialist Tradition, p 105n. Como comenta Gray, “o que se deseja é a aniquilação de todas as coisas, esperando-se que do pó da destruição uma bela cidade poderá surgir. Propelido por essa esperança, Babeuf esperava alegremente pela catástrofe.” Ibid., p. 105.
[37] Cabet fora um distinto advogado francês e advogado-geral da Córsega, mas foi exonerado por suas atitudes radicais quanto ao governo francês. Depois de fundar um periódico, Cabet fugiu em exílio para Londres nos anos 1830 e, inicialmente, tornou-se um owenita. Apesar da nacionalidade de Cabet, o livro foi originalmente escrito e publicado em inglês, e uma tradução para o francês foi publicada no ano seguinte. Um comunista pacífico, e não um revolucionário, Cabet tentou estabelecer comunas utopistas em vários projetos fracassados nos Estados Unidos, de 1848 até sua morte 8 anos depois.
[38] Billington, Fire in the Minds, p. 243.
[39] Billington, Fire in the Minds, p. 257.
[40] Billington, Fire in the Minds, p. 251.
[41] Ver a biografia padrão de Marx por David McLellan, Karl Marx: His Life and Thought (New York: Harper and Row, 1973), p. 118.
[42] Ver J. L. Talmon, Political Messianism: The Romantic Phase (New York: Praeger, 1960), p. 157.
[43] Friedrich Engels era o filho de um importante industrialista e fabricante de algodão, e um Pietista convicto da área de Barmen, na Renânia alemã. Barmen era um dos principais centros de Pietismo na Alemanha, e Engels foi criado em termos estritamente Pietistas. Um ateu e eventualmente um hegeliano em 1839, Engels foi parar na Universidade de Berlim e nos Jovens Hegelianos em 1841, movendo-se pelos mesmos círculos que Karl Marx, e tornando-se seu amigo próximo em 1844.
[44] Os poemas foram na sua maioria compostos em 1836 e 1837, nos primeiros meses de Marx em Berlim. Dois dos poemas constituem as primeiras obras publicadas de Marx, no Ateneu de Berlim em 1841. Os outros foram em geral perdidos.
[45] Richard Wurmbrand, Marx and Satan (Westchester, Ill.: Crossway Books, 1986), pp. 12–13.
[46] Para o texto traduzido completo do Oulanem, ver Roberty Payne, The Unknown Karl Marx (New York: New York University Press, 1971), pp. 81-83. Outra análise excelente dos poemas e de Marx como messianista é a de Bruce Mazlish, The Meaning of Karl Marx (New York, Oxford University Press, 1984).
O pastor Wurmbrand nota que o Oulanem é um anagrama de Emmanuel, o nome bíblico de Jesus, e que tais inversões de nomes sagrados são práticas padrão em cultos satânicos. Não há nenhuma evidência, no entanto, de que Marx tenha sido membro de tal culto. Wurmbrand, Marx and Satan, pp. 13–14 e passim.
[47] Em B. F. Trentowski, The Relationship of Philosophy to Cybernetics (Poznan, 1843), no qual o autor também cunhou a palavra “cibernética” para a nova e emergente forma de tecnologia social racional que transformaria a humanidade. Ver Billington, Fire in the Minds, p. 231.
[48] Billington, Fire in the Minds, p. 225.
[49] Tucker, Philosophy and Myth, p. 101.
[50] Tucker, Philosophy and Myth, p. 105. É simultaneamente irônico e fascinante que os intelectuais dominantes na Hungria contemporânea, os quais lideram o movimento do socialismo para a liberdade, honrem o conceito marxista de “sociedade civil” como a direção que buscam tomar, enquanto se distanciam do coletivo e do comunal.
[51] Tucker, Philosophy and Myth, p. 15.
[52] Stein era um monarquista Hegeliano conservador, enviado pelo governo da Prússia para estudar as novas e perturbadoras doutrinas do socialismo e comunismo, as quais se alastravam pela França. Marx demonstrou uma “pequena familiaridade textual” com o livro de Stein, Lorenz von Stein, Der Socialismus und Communismus des heutigen Frankreichs (Leipzig, 1842), que ainda não foi traduzido. Stein gastou seus anos maduros como professor de finanças públicas e administração pública na Universidade de Viena. Ver Tucker, Philosophy and Myth, pp. 114–17.
[53] Citado em Tucker, Philosophy and Myth, p. 155. Os itálicos são de Marx.
[54] Tucker, Philosophy and Myth, pp. 155–56.
[55] Thomas Molnar, “Marxism and the Utopian Theme,” Marxist Perspectives (Inverno de 1978): p. 153–54. O economista David McCord Wright, apesar de não se aprofundar nas raízes religiosas do problema, enfatiza que um grupo da sociedade, os estatistas, buscam “atingir um padrão ideal e estático de organização técnica e social. Uma vez que esse ideal tenha sido alcançado ou quase, é necessário apenas repeti-lo infinitamente.” David McCord Wright, Democracy and Progress (New York: Macmillan, 1948), p. 21.
[56] Molnar, “Marxism,” pp. 149, 150–51.
[57] Molnar, “Marxism,” pp. 151–52.
[58] Citado em S. V. Utechin, “Philosophy and Society: Alexander Bogdanov,” em Leopold Labedz, ed., Revisionism: Essays on the History of Marxist Ideas (New York: Praeger, 1962), p. 122.
[59] J.P. Stern, “Marxism on Stilts: Review of Ernst Bloch, The Principle of Hope,” The New Republic, vol. 196 (9 de Março, 1987): pp. 40, 42. Ver também Kolakowski, Main Currents, vol. 3, pp. 423–24.