A Economia do Intervencionismo

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18. Dogmatismo e Ideologia Intervencionista

Nos capítulos anteriores argumentamos que a discussão da economia contemporânea deveria substituir o aparato marxista, que interpreta o sistema econômico atual como uma fase do “capitalismo”, por uma análise que vê a realidade como um caso de sistema econômico intervencionista, tal como era feito pelos economistas clássicos em sua análise do mercantilismo e, mais tarde, pelos economistas austríacos, a partir da crítica de Mises ao intervencionismo. Neste capítulo, examinamos alguns aspectos da ideologia que caracteriza esse sistema econômico.Uma ideologia não pode ser reduzida, como fizeram Marx e os economistas liberais franceses do século XIX e no século seguinte os economistas da Escola da Escolha Pública, à análise dos interesses dos grupos que se beneficiam com os sistemas econômicos: no caso do intervencionismo, os empresários que demandam privilégios monopolísticos e os políticos e funcionários públicos, que, na ausência de um sistema de normas liberais, são capazes de ofertá-lo. Esses fatores seguramente são capazes de dar conta da tenacidade da ideologia intervencionista. Ao longo do tempo, porém, como acreditam tanto Keynes quanto Hayek, os interesses particulares dão lugar em importância ao poder transformador das ideias e estas alimentam ou enfraquecem a aprovação ao sistema. Devemos, portanto, examinar a mentalidade estatista em si.

Esse exame revelará que a ideologia intervencionista não pode ser entendida como um programa ideológico baseado em um corpo de proposições razoavelmente consistentes entre si, que se referem a um sistema econômico desejado ou defendido por algum grupo de pessoas. Pelo contrário, o estudo de tal ideologia nos revela um quadro de contínua mudança, o que resulta num corpo de doutrina fragmentário e inconsistente internamente. Ao contrário dos socialistas, que utilizam o referencial teórico marxista ou dos liberais, que utilizam alguma variante da teoria econômica moderna, os intervencionistas se orgulham de seu pragmatismo, que os leva a rejeitar qualquer teoria geral sobre o funcionamento do estado em favor de um exame “caso a caso” a respeito da desejabilidade das intervenções particulares.

Isso nos leva a uma das principais características da ideologia intervencionista: a recusa de examinar teorias sobre o funcionamento do estado, recusa essa disfarçada de pragmatismo. Esse pragmatismo, pela sua centralidade, pode ser abundantemente ilustrado. Entre os economistas, por exemplo, as teorias deixaram de funcionar como guias para a comparação institucional e assumiram o papel de “ferramentas” de intervenção pública, cuja aplicabilidade dependeria das circunstâncias particulares. Na macroeconomia, seguindo o espírito da Teoria Geral de Keynes, temos a discussão sobre a eficácia de “políticas fiscais e monetárias” como instrumentos de controle da economia por parte de uma elite dirigente benevolente e instruída[1]. Na microeconomia, seguindo o espírito da Economia do Controle de Lerner[2], a análise da igualdade entre preço e custo marginal como característica definidora de alocações de equilíbrio eficientes serve da mesma forma como guia para avaliar, em cada caso, a necessidade de controle por parte do estado, novamente desconsiderando qualquer referência a elementos institucionais que possam levar a questionamentos sobre a lógica do funcionamento da ação estatal que pretende corrigir as falhas de mercado. Para Lerner, esse tipo de consideração seria de natureza meramente sociológica ou histórica, devendo ser excluída da análise econômica.

Do mesmo modo, qualquer discussão moderna sobre o desempenho do estado, seja teórica ou empírica, é cuidadosamente afastada, utilizando-se o argumento pragmático. Boa parte das defesas da privatização, por exemplo, enfatizam o seu valor como instrumento adequado em certas ocasiões apenas, fazendo questão de afastar como dogmática e ideológica qualquer defesa da redução do tamanho e atuação do estado[3].

Esse tipo de exemplo não é isolado, mas parte integral da forma típica de pensar em nosso tempo, que resultou em uma curiosa ideologia do não comprometimento ideológico, como notou Hayek, um dos mais astutos analistas da ideologia intervencionista:

… o progressivo abandono de princípios, conjugado à determinação cada vez mais forte nos últimos 100 anos de se agir pragmaticamente, é uma das mais significativas inovações no campo da política social e econômica. Chega-se mesmo a proclamar, agora, como a nova sabedoria de nossa era, que devemos renegar todos os princípios ou ‘ismos’ para conquistar maior domínio sobre o nosso destino. Aplicarmos a cada tarefa as ‘técnicas sociais’ mais apropriadas à sua solução, libertos de qualquer crença dogmática, parece, a alguns, o único procedimento digno de uma era racional e científica. As ‘ideologias’, ou seja, conjuntos de princípios, tornaram-se em geral tão impopulares quanto sempre o foram aos olhos de aspirantes de ditador como Napoleão I ou Karl Marx, os dois homens que conferiram à palavra ‘ideologia’ seu moderno sentido depreciativo[4]

O quão acertado é esse diagnóstico a respeito da mentalidade ideológica prevalecente em nossa época pode ser atestado pela popularidade da distinção criada por Isaiah Berlin em seu ensaio sobre Tolstoi[5]. Para Berlin, os intelectuais podem ser classificados como ouriços ou raposas: os primeiros sabem uma única coisa e organizam seus sistemas explanatórios baseados nesse grande princípio, ao passo que os segundos conhecem coisas diversas, sendo mais flexíveis na sua recusa de adoção de um princípio norteador. Repelidos pelas ideologias totalitárias que dominaram o século XX, as pessoas tendem a elogiar as raposas e condenar os ouriços. O próprio Hayek – o autor mais distorcido da história das ideias – é visto com frequência como exemplo de ouriço, um ideólogo dogmático[6], justamente por defender princípios que contrariam a ideologia da ausência de princípios. No parágrafo seguinte ao citado anteriormente, o suposto ouriço escreve uma crítica a essa ideologia:

Se não estou enganado, o desprezo pela ‘ideologia’, hoje em moda, ou por todos os princípios gerais ou ‘ismos’ é uma atitude típica de socialistas desiludidos que, forçados a abandonar a própria ideologia pelas contradições que lhe eram inerentes, concluíram que as ideologias são errôneas e que, para serem racionais, devemos dispensá-las todas. Mas é impossível ser orientado somente, como eles supõem, por objetivos específicos e explícitos conscientemente adotados, e rejeitar todos os valores gerais cuja utilidade para a obtenção de resultados específicos desejáveis não pode ser demonstrada.

Esse parágrafo menciona diversos aspectos da crítica que pretendemos desenvolver neste texto. Iniciemos pela segunda afirmação da citação. O analista econômico não pode se dar ao luxo de se ater apenas aos propósitos da intervenção e posteriormente lamentar que o plano fracassou devido às circunstâncias não antecipadas. Afinal, a teoria econômica, na sua essência, trata das consequências não intencionais da ação humana. Até quando a maior parte da profissão conseguirá bloquear o emprego dessa lógica ao estudo das próprias intervenções, para desenvolver modelos de funcionamento do estado e sistematicamente estudar as falhas de governo?

A negação da existência de regularidades nesse campo, isto é, a crença de que não existem forças sistemáticas que fazem com que as intervenções fracassem, faz parte de uma espécie de historicismo que domina o pensamento intervencionista, que ignora as explicações teóricas sobre as falhas de governo. Como, porém, essa crença historicista pode ser conciliada com os padrões empíricos gerados pela contínua observação das falhas de governo? Isto é, como é possível acreditar que regulações gerando rent-seeking e falta de inovação, ou protecionismo gerando acomodação e não afetando emprego em absoluto, ou ainda políticas macroeconômicas de estímulo falhando e gerando bolhas em seu lugar sejam todos vistos como fracassos eventuais, que poderão ser corrigidos da próxima vez que forem tentados?

A resposta hayekiana aludida no final do parágrafo citado consiste em salientar o pedigree positivista da ideologia intervencionista. O positivismo só aceita como científico o conhecimento que pode ser demonstrado com certeza. Ora, relações de causação sobre as quais pairam poucas dúvidas são estabelecidas apenas em sistemas relativamente simples, cujas partes podem ser controladas. Quando migramos para sistemas complexos, por outro lado, a “mentalidade de engenheiro”, que identifica compreensão com controle, não se aplica: em tais sistemas, como os mercados, não podemos conhecer os detalhes das relações entre os elementos da estrutura ou compreender como essas relações continuamente se alteram. Os agentes econômicos, dessa forma, pautam seu comportamento não pelo entendimento dos detalhes do sistema econômico como um todo, mas seguem normas abstratas. Nesse assunto, o conhecimento do cientista social assume a forma de leis (ou padrões) abstratas, rejeitadas como não científicas pela retórica positivista. Isso faz com que, no que se refere às normas sociais, a ideologia intervencionista desenvolva um ponto cego sobre o valor de normas abstratas, em comparação com a ação baseada no mérito de cada caso, supondo-se irrealisticamente o conhecimento de todos os detalhes necessários para o sucesso do julgamento caso a caso.

Passamos agora ao problema das transformações da ideologia intervencionista, aludido na primeira metade do parágrafo da citação prévia. Devemos mostrar que a ideologia moderna envolve a transformação de um ouriço coletivista em uma raposa intervencionista. Em outros termos, não podemos efetuar uma análise puramente estática da ideologia intervencionista: esta deve ser vista como um processo de desencanto com ideologias coletivistas mais puras, desencanto esse resultante da fricção desse ideal com a realidade que o nega.

A ideologia intervencionista pode ter origem nos mesmos instintos coletivistas que analisamos no último capítulo, ou seja, no conjunto de valores morais moldados durante nosso passado tribal, durante o qual instintos como exclusividade das relações personalistas, desconfiança com o ganho alheio ou visão do comércio como jogo de soma zero faziam sentido. Como argumentamos naquela ocasião, Hayek explica os sentimentos socialistas como fruto da evolução cultural que nos legou um conjunto de preferências políticas incompatíveis com as normas impessoais necessárias para o convívio em sociedade mais complexas.

Dada a tese austríaca sobre a impossibilidade do cálculo econômico em uma sociedade socialista, toda tentativa de implementar essas preferências coletivistas disfuncionais resulta, na melhor das hipóteses, em sociedades altamente intervencionistas. Tais sociedades são, portanto, sujeitas às mesmas regularidades estudadas pela teoria austríaca do intervencionismo.

Para essa teoria, o intervencionismo pode ser visto como uma ordem espontânea, na qual as indesejáveis consequências não intencionais das intervenções frustram os planos governamentais e engendram um processo de acúmulo de erros que requerem a escolha entre reformas liberalizantes ou a adoção de novas intervenções para corrigir as falhas de suas antecessoras. Alívios obtidos com essas reformas, por sua vez, abrem espaço para novas expansões do estado, motivadas tanto pelos privilégios legais gerados no sistema quanto pelos fatores ideológicos aqui estudados.

A lógica básica da teoria do intervencionismo, segundo a qual cada intervenção gera consequências não intencionais opostas ao desejado é responsável assim pelo contínuo processo de revisão das crenças ideológicas intervencionistas, que resulta no seu caráter fragmentário e, portanto, na sua aparente falta de compromisso ideológico com princípios básicos. Em termos concretos, estamos falando do processo de desilusão com o estatismo que está por traz do adágio segundo o qual “quem não era socialista na juventude não tem coração e quem continua socialista na velhice não tem cérebro”. Sendo assim, ao longo da vida de cada indivíduo podemos observar uma “migração para o centro” causada pelo contraste entre ideologia e realidade, independente da lógica do teorema do eleitor mediano[7].

Dada a rigidez dos instintos coletivistas exposta no último capítulo, a dinâmica da ideologia intervencionista envolve algo como um modelo de gerações sobrepostas, no qual cada geração progressivamente se desaponta com partidos idealistas, detentores de valores coletivistas, que assim que assumem o poder adotam as práticas dos demais partidos, e cujos programas falham em entregar o prometido, gerando como subproduto apenas uma economia mais controlada. No longo prazo, em vez de aprendizado sobre a lógica do intervencionismo, temos novos partidos com ideologia coletivista pura povoando o imaginário das novas gerações, reiniciando o sistema, até que o acúmulo de erros force algum aprendizado em direção a um menor controle.

Finalmente, o terceiro grupo de observações sobre a ideologia do intervencionismo trata da questão do dogmatismo. Tal ideologia parece não dogmática devido a dois fatores: o fato de que se trata efetivamente de uma defesa do status quo e também por causa de sua alegada falta de princípios ideológicos.

A primeira alegação é consequência da natureza subjetiva do conceito de custo de oportunidade: quem sabe prever como seria um mundo diferente? Esse só pode ser imaginado, ao passo que o conjunto presente de instituições já foi testado. Embora esse seja de fato poderoso argumento em favor do conservadorismo, introduz um claro viés em favor do sistema intervencionista presente. Devido à falta de imaginação (ou pesquisa histórica) sobre arranjos institucionais diferentes, qualquer afastamento do status quo sempre soa como radical. O defensor do intervencionismo, no entanto, facilmente perde sua aparente serenidade quando alguém especula, apenas como exercício intelectual, sobre algum arranjo institucional alternativo, como um sistema monetário no qual reinasse a competição bancária no lugar do presente sistema regido por bancos centrais monopolistas. Efetue o seguinte teste empírico: deposite a Desestatização do Dinheiro de Hayek na mesa de um economista ortodoxo ou apresente a literatura que argumenta que patentes e direitos autorais não têm os efeitos desejados e observe a reação emocional de seu interlocutor. De fato, qualquer contestação das instituições presentes refuta a hipótese de que as crenças econômicas majoritárias são não ideológicas.

A segunda alegação, por sua vez, não resiste à crítica dos filósofos da ciência. Como mostraram vários deles, como Popper, não existem dados sem teoria e a ciência sempre parte da formulação de problemas, não da observação desinteressada de fatos. Toda observação é impregnada de interpretações prévias, já embutidas nas nossas perguntas. Não tem sentido, portanto, a antiga noção de que é necessário distanciamento para que sejam obtidas observações neutras que embasam a ciência.

A ideologia intervencionista, em particular, não escapa desse argumento, já que ela também, como qualquer outra concepção de mundo, utiliza concepções prévias. Ela só aparenta distanciamento na medida em que emprega princípios explanatórios que causam a falsa sensação de ocupar posição intermediária entre os extremos liberal e socialista. No caso, a “sabedoria do meio termo” só se sustenta se adotarmos um espectro político unidimensional, do tipo esquerda/direita ou progressivo/reacionário. Se levarmos em conta outras variáveis de análise no espaço das opções políticas, teríamos no lugar um poliedro, com cada posição igualmente situada em algum vértice, ou extremo, dissolvendo a impressão de sabedoria centrista.

A despeito de tudo isso, os economistas liberais são sempre acusados de dogmatismo. Evidentemente, existem pessoas dogmáticas em qualquer tradição teórica e o combate ao dogmatismo é vital para o desenvolvimento de qualquer uma dessas tradições. Mas todos se dizem pluralistas e defensores da crítica, acusando os oponentes de dogmáticos. Como separar a mera retórica das acusações verdadeiras? Eu tenho um teste simples: verifique se o defensor de uma teoria já leu os autores de tradições rivais sobre os mesmos problemas ou se eles se isolam e apenas criticam espantalhos, caricaturas de autores que nunca leram. Este teste nos mostra com bastante eficácia quem é dogmático ou não no debate político.



[1] Buchanan (1978).

[2] Lerner (1944).

[3] Ver, por exemplo, Savas (1987).

[4]  Hayek (1985), pag. 64.

[5] Berlin (2008).

[6] É curioso notar que tal autor é ao mesmo tempo acusado pela esquerda de “dogmatismo intransigente”,  por causa de seus princípios liberais e pelos libertários modernos, por fazer parte de um “bando de socialistas”, justamente por falta de princípios liberais!

[7] Na literatura de Escolha Pública, como se supõe que os políticos gostem de poder, os partidos contrariam suas ideologias e migram para o centro para aumentar o número de votos obtidos.

 

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