A Economia do Intervencionismo

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2. Bastiat e as Máquinas de Moto-Perpétuo Econômicas

A despeito da admiração que Bastiat desperta, sua reputação como economista teórico é disputada. É famosa a opinião de Schumpeter segundo a qual aquele autor seria apenas um brilhante expositor das teorias econômicas. Contrariando essa crença, neste texto prestaremos uma homenagem à grandeza analítica de Bastiat.Schumpeter, admirador do formalismo matemático, considerava a teoria do Equilíbrio Geral de Walras como a maior realização da ciência econômica[1]. O fascínio que o formalismo exerce, contudo, fez com que os economistas no século XX concentrassem suas energias em quebra-cabeças puramente matemáticos, como o uso de teoremas de ponto fixo para provar a existência de equilíbrio no modelo, relegando a um segundo plano a investigação de problemas econômicos reais.

Por outro lado, escrevendo no século XIX, duas décadas antes da Revolução Marginalista que inaugurou a teoria moderna, Bastiat, embora não tenha criado uma teoria do valor satisfatória ou construído modelos formalmente elegantes em Harmonias Econômicas[2], deve ser reconhecido como um dos economistas que melhor realizou a tarefa de analisar diferentes propostas de políticas econômicas à luz do problema fundamental posto pela teoria econômica.

Esse problema pode ser resumido do seguinte modo: em razão da escassez de meios disponíveis para satisfazer as múltiplas necessidades humanas e às virtualmente infinitas possibilidades de escolha de como combinar os recursos produtivos, as decisões econômicas devem levar em conta o valor que os bens gerariam nos empregos alternativos mais atraentes; ou seja, deve-se comparar o valor gerado pelos recursos com o seu custo de oportunidade. Dada a complexidade dessa tarefa em sociedades com uma população maior do que alguns milhares de pessoas, a coordenação das ações dos indivíduos só pode ser levada a cabo de forma satisfatória com o auxílio do sistema de preços, que permite a comparação dos benefícios com os custos em termos monetários.

Uma das conclusões práticas derivadas dessa abordagem consiste em notar que, se existe escassez e todos os mercados estão interligados, qualquer “estímulo” a algum setor causado por alguma política econômica requer investigar de onde os recursos foram extraídos e avaliar se a realocação induzida pela política representa de fato uma melhora. Esse raciocínio é natural no contexto da teoria de equilíbrio geral, ao passo que na teoria de equilíbrio parcial[3] é muito frequente perder isso de vista e acreditar que políticas de incentivo a algum setor podem ser efetuadas a custo nulo, ou seja, sem consequências negativas nos demais mercados.

Em um dos mais importantes textos publicados em Economia – O que se vê e o que não se vê[4] – Bastiat distingue a boa da má análise econômica em termos da capacidade (ou não) de enxergar os efeitos de uma política em todos os setores da economia e não apenas no mercado que se pretende gerar o benefício. De fato, a obra do autor investiga sistematicamente os custos de oportunidade das políticas econômicas em todo o sistema econômico, resultando disso a crítica daquilo que poderíamos chamar de falácia do (mau uso do) equilíbrio parcial, que relata apenas as consequências benéficas de uma política em um mercado, esquecendo seus impactos potencialmente negativos no resto do sistema.

O emprego dessa falácia permite a construção de verdadeiras máquinas de moto-perpétuo econômicas, que prometem gerar riqueza a partir do nada. A grandeza de Bastiat repousa no fato de ter sido o maior crítico dessas máquinas. Antes de ilustrar essa afirmação, recordemos o que são máquinas de moto-perpétuo.

Máquinas de moto perpétuo são dispositivos que, uma vez postos em funcionamento, continuariam em movimento por si próprios para sempre. O fascínio que exerceram ao longo da história está relacionado à possibilidade de gerar uma invenção que poupe a humanidade do trabalho braçal, uma vez que poderiam realizar trabalho sem uma fonte externa de energia.

fabio1.jpgUm exemplo clássico desse tipo de mecanismo é a roda com pesos desequilibrados, descrita entre outros pelo arquiteto Villard de Honnecourt, na Idade Média. A figura ao lado[5] mostra uma versão da máquina. Pesos são ligados ao eixo de rotação da roda por hastes com dobradiças no meio, que dobram apenas em uma direção. Como os pesos no lado direito da roda estão mais distantes do eixo de rotação do que os pesos no lado oposto, ela teria uma tendência a girar no sentido horário. Assim que passam para o lado esquerdo, os pesos se dobram e aqueles que passam para o lado direito se estendem, tornando o movimento contínuo.

A defesa da funcionalidade do equipamento naturalmente enfatiza o que ocorre do lado direito. A explicação de porque tal máquina não funciona, por sua vez, faz uso da descrição de todas as forças que atuam sobre a roda. Note, por exemplo, que existem mais pesos do lado esquerdo que do lado direito. Levando-se em conta todas as forças envolvidas, pode-se mostrar que de fato o sistema está em equilíbrio estático, não havendo tendência alguma ao movimento.

Cyrano de Bergerac, personagem da peça homônima de Rostand, propunha como um método para se chegar à Lua subir em uma plataforma metálica e lançar um imã para cima. Quando a plataforma subir, atraída pelo ímã, este é lançado novamente, até chegarmos ao destino. Evidentemente, sabemos que a plataforma e afabio2.jpggravidade atraem o imã para baixo. Para evitar a gravidade e o trabalho humano de lançar o ímã, considere o carro movido a magnetismo representado na figura. O magneto atrai a bigorna presa ao carro, fazendo com que este se mova para a esquerda. Na verdade, ninguém seria convencido de que tal carro funcione. Por que essa máquina de moto-perpétuo tem baixo poder de convencimento? Quanto menos complexo for o projeto de uma máquina de moto-perpétuo, menos provável será que alguém acredite em sua funcionalidade, uma vez que diminui a chance de que a nossa atenção seja dirigida para apenas algumas forças atuantes em detrimento de outras.

Com máquinas muito complexas, o difícil trabalho de analisar cada aspecto do sistema é elegantemente contornado com o auxílio das leis da termodinâmica, cuja violação gera uma classificação das máquinas de moto-perpétuo. As máquinas do primeiro tipo, que pretendem gerar trabalho sem fazer uso de fontes externas de energia, violam a Primeira Lei da Termodinâmica – a lei da conservação da energia em um sistema fechado. As do segundo tipo, por sua vez, buscam transformar espontaneamente calor em trabalho mecânico, contrariando a Segunda Lei da Termodinâmica – a lei da entropia crescente.

No que se refere a máquinas de moto-perpétuo econômicas, o que seria o análogo ao princípio da conservação de energia? Como em toda metáfora, não devemos identificar cada aspecto dos objetos comparados. Afinal, a riqueza pode variar ao longo do tempo e de fato existem alterações institucionais que promovem ganhos de riqueza a partir do nada; ou seja, podem existir “notas de 50 dólares na calçada”[6]. Entretanto, no que se refere às falácias que estamos investigando, o análogo econômico à lei da conservação de energia poderia ser expresso pela conhecida máxima “não existe almoço grátis”; ou seja, cada ação econômica tem um custo de oportunidade.

Bastiat, em Sofismas Econômicos[7], mostra que várias propostas de política econômica não passam de máquinas de moto-perpétuo, que generalizam para toda a economia os efeitos de um estímulo a um único setor. Para criticar esse tipo de argumento, conhecido em lógica como falácia da composição, Bastiat constrói sátiras que utilizam o argumento da redução ao absurdo. Vejamos alguns exemplos célebres: a) se a construção de uma estação intermediária como parada obrigatória em uma ferrovia estimulasse a economia local, por que não construir uma estação a cada centímetro? Onde está na proposta a análise dos efeitos do aumento nos custos do transporte disso resultante? b) se um produto importado devesse ser proibido porque tem a metade do preço de um similar nacional, por que deveria ser permitida a existência de janelas, uma vez que aquele concorrente estrangeiro desleal, a luz do sol utilizada para iluminar as casas, é totalmente gratuita? Os efeitos no desemprego deveriam ser mais devastadores ainda! Embora a proibição das janelas estimule de fato a indústria de iluminação, onde estão as considerações sobre o desestímulo sobre outros setores causados pelo desvio de recursos para a indústria de iluminação? c) Reduzir a jornada acaba com o desemprego sem redução salarial? Fácil! Aprove uma lei que proíba as pessoas de trabalhar com a mão direita, afirma Bastiat. Se isso reduzisse a produtividade pela metade, as firmas não teriam que contratar o dobro? Entretanto, nada é dito sobre a relação entre redução de jornada e aumento de produtividade. No nosso exemplo, a produção total ficou a mesma, de modo que o salário real deveria cair pela metade. d) quebrar uma janela é bom para a economia, uma vez que aumenta a renda do vidraceiro, que por sua vez gasta em outros bens e inicia-se uma onda de novos gastos que estimulam a economia. Bastiat, por outro lado, mostra que o gasto para reparar a janela seria empregado em outro uso, o que geraria o mesmo efeito estimulador, com a diferença que teríamos bens a mais em vez da mera reposição daquilo que já existia.

Existe outro aspecto da “falácia da janela quebrada”, que Bastiat explora por meio do experimento mental da economia de Robson Crusoé. Na ilha, um furacão que destrua o patrimônio de Robson é visto como algo negativo. Em uma economia real, por outro lado, o paradoxo de que a destruição possa ser algo benéfico é defendido com o argumento segundo o qual um furacão estimularia a construção civil e outros setores. O experimento mental permite revelar o erro de raciocínio: na ilha, os meios e os fins de Robson não podem ser dissociados e por isso o argumento soa tão falacioso quanto nosso carro magnético, ao passo que nos mercados, como cada pessoa fornece meios para os fins dos outros, podemos construir uma máquina de moto-perpétuo mais complexa, acreditando que a destruição é benéfica porque gera emprego, quando na verdade sem destruição haveria o mesmo emprego, só que utilizado para produzir riqueza adicional.

Histórias de Crusoé, ridicularizadas por Marx, que considerava Bastiat um “economista vulgar”, permitiram, no entanto, a este último, evitar falácias que povoam as teorias do primeiro. O mesmo argumento da janela quebrada foi empregado por Bastiat para estudar os efeitos do progresso técnico no longo prazo. Enquanto Marx acreditava que no longo prazo o progresso técnico causaria desemprego, Bastiat, analisando a economia como um todo, foi capaz de compreender como o progresso, ao reduzir os custos de produção de alguns bens, diminui o preço dos mesmos, de forma que haverá demanda por bens em outros setores. Ao mesmo tempo, a oferta desses novos bens será possível, utilizando-se os recursos liberados nos segmentos nos quais ocorreu o progresso técnico, como a história mostrou ser o caso.

Poderíamos sofisticar novamente a máquina de moto-perpétuo adicionando novos componentes, cuja função seria, no exemplo da janela quebrada, mostrar que, apesar de haverem necessidades insatisfeitas, os agentes não comprariam outras coisas caso a janela não fosse quebrada. Isso de fato foi feito pela mais complexa máquina de moto-perpétuo econômica jamais construída, aquela construída por Lord Keynes. Nessa teoria, as peças adicionais são as expectativas: em uma economia monetária, o dinheiro recebido pelo pagamento de um serviço não necessariamente será gasto na aquisição de outro bem se o agente temer o futuro e deixá-lo guardado consigo, a despeito de existirem necessidades não satisfeitas e recursos ociosos necessários para satisfazê-las. Consegue-se assim esconder temporariamente a escassez, de modo que o estímulo a algum setor não tenha custo de oportunidade em termos de desestímulos a outros setores. Para que soe plausível, a teoria nunca nos informa sobre o funcionamento do sistema em sua totalidade: como as expectativas são corrigidas, quando os preços refletem ou não a escassez ou quando as consequências negativas de uma política de curto prazo se fazem sentir são questões sem respostas definidas. Com efeito, o confinamento da análise a sucessões de curtos prazos não conectados entre si lembra cada passo isolado na forma como Cyrano chega à Lua.

Máquinas de moto-perpétuo econômico como as mencionadas neste texto são criadas e recriadas todos os dias. A contínua e árdua tarefa de analisá-las requer que prestemos atenção aos aspectos deixados de fora das mesmas, pois lá geralmente se esconde a escassez. Nessa tarefa os analistas devem se inspirar em Bastiat, que, com o seu legado analítico, honra a tradição da Economia como a triste ciência de revelar custos, em contraste com a política, a alegre arte de escondê-los.

 



[1] Schumpeter (1954).

[2] Bastiat, (1996).

[3] Iniciada pela obra de A. Marshall, é a abordagem que utiliza o famoso gráfico de oferta e procura por um bem, ensinado nos cursos introdutórios.

[4] Bastiat (1995).

[5] Ilustração original encontrada em Gramatke, H.P. Perpetuum Mobile Exhibition  Disponível em:  <http://www.hp-gramatke.net/perpetuum/english/page7000.htm>  Acesso: 12/06/2010.

[6] OLSON (1996).

[7] Bastiat (1996b).

 

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