A Europa já ultrapassou o ponto sem retorno?

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KansasPointOfKnowReturnUm espectro assombra o mundo, e especialmente a Europa: o espectro de uma insolvência soberana.  A grave crise da dívida soberana é, em grande medida, resultado de intervenções governamentais feitas em resposta à crise financeira.

Como a teoria austríaca dos ciclos econômicos explica, a expansão do crédito por meio do sistema bancário de reservas fracionárias provocou um crescimento econômico insustentável.  A taxas de juros artificialmente baixas, novos projetos de investimentos foram empreendidos sem que tivesse havido um correspondente aumento na poupança.  Esses investimentos foram pagos simplesmente pela criação artificial de crédito.  Muitos desses empreendimentos constituíam investimentos errôneos que teriam de ser liquidados, cedo ou tarde.  No atual ciclo, esses investimentos errôneos ocorreram principalmente nos ultradimensionados setores automotivo, imobiliário e financeiro.

A liquidação desses maus investimentos é benéfica no sentido de que ela promove uma limpa nos projetos ineficientes e realinha a estrutura da produção de modo que esta agora passe a atender às reais preferências dos consumidores.  Os fatores de produção que foram inadequadamente utilizados nesses maus investimentos são liberados e transferidos para aqueles projetos que os consumidores querem que sejam mais urgentemente realizados.

Soluções para a crise: caminhos divergentes

Na atual recessão, a liquidação dos investimentos errôneos — preços imobiliários em queda e empréstimos ruins — gerou problemas no sistema bancário.  Calotes e prejuízos nos investimentos passaram a ameaçar a solvência dos bancos.  Esses problemas de solvência desencadearam uma crise de liquidez na qual os bancos com problemas de maturação de suas dívidas passaram a ter dificuldades para rolar suas dívidas de curto prazo.

Na época, havia alternativas disponíveis para lidar com o problema da solvência e recapitalizar o sistema bancário.  Investidores privados poderiam ter injetado capital nos bancos que eles considerassem viáveis no longo prazo.  Ademais, credores poderiam ter se transformado em acionistas, desta forma reduzindo o endividamento dos bancos, reforçando seu capital.  Instituições financeiras inviáveis — para as quais não houvesse um número suficiente de capital privado ou de credores transformados em acionistas — teriam sido liquidadas.

Entretanto, essas soluções de livre mercado para os problemas das solvências bancárias foram deixadas de lado e, em seu lugar, outra opção foi escolhida.  Governos de todo o mundo saíram injetando dinheiro nos bancos ao mesmo tempo em que garantiam os passivos do sistema bancário.  Já que impostos são bastante impopulares, essas injeções governamentais foram financiadas pelo aumento da dívida pública, algo menos impopular e cujas consequências aparecem apenas mais tarde.  Em outras palavras, os investimentos errôneos induzidos pelo inflacionário sistema bancário encontraram nos governos um patrocinador supremo, cujo método de financiamento consistia em inchar as dívidas públicas.

Há outras razões para que as dívidas públicas tenham aumentado dramaticamente.  Os governos incorreram em medidas adicionais para lutar contra o saudável processo de depuração que o livre mercado faria contra os investimentos errôneos — medidas essas que serviram apenas para postergar a recuperação.  Além do setor financeiro, outros setores ultradimensionados receberam injeções diretas de capital ou se beneficiaram com subsídios do governo.

Dois principais exemplos de recebedores de subsídios são o setor automotivo dos EUA (por exemplo, o infame programa “Dinheiro por Sucata”) e o setor da construção civil na Espanha.  Tais subsídios postergaram ainda mais a reestruturação dessas economias.  A livre mobilidade dos fatores de produção foi obstruída por programas de obras públicas que serviram apenas para absorver recursos escassos que eram necessitados mias urgentemente em outras indústrias.  Subsídios mais generosos para os desempregados aumentaram o déficit ao mesmo tempo em que reduziram os incentivos de essas pessoas procurarem emprego fora dessas indústrias sobredimensionadas.  Outro fator que ajudou a aumentar os déficits foi a queda nas receitas tributárias causada pelo aumento do desemprego e pela queda dos lucros.

Portanto, as intervenções governamentais não apenas postergaram a recuperação econômica, como também fizeram isso à custa do aumento dos déficits públicos — aumentos esses que estão avolumando os já enormes níveis da dívida pública.  Essa grande dívida pública pré-existente é o produto dos gastos governamentais voltados para o esforço de guerra (Afeganistão e Iraque) e para o insustentável assistencialismo estatal.  Como esses sistemas de pensão criam passivos para os quais simplesmente não há fundos — obstáculos insuperáveis para os modernos estados de bem-estar social —, de certa forma a atual crise, com seu dramático aumento nas dívidas governamentais, representa um passo adiante rumo ao inevitável colapso do estado de bem-estar social.

A situação na Europa

Na Europa há uma peculiaridade adicional para o problema da dívida.  Na criação do euro, as nações membros fizeram um acordo implícito de que nenhuma delas deixaria o euro após se juntar a ele.  Se as coisas ficassem ruins, uma nação poderia ser socorrida pelo resto da União Monetária Europeia (UME).  Com essa garantia de socorro implícita, um severo problema de dívida soberana acabou sendo pré-programado.

Esse suposto apoio dado por nações fiscalmente mais robustas reduziu artificialmente as taxas de juros sobre os títulos das dívidas das nações fiscalmente irresponsáveis.  Acesso ao crédito barato permitiu que países como a Grécia mantivessem um setor público agigantado e ignorassem os problemas estruturais gerados por salários artificialmente altos (pouco competitivos).  Em última instância, quaisquer déficits poderiam ser financiados pela criação de dinheiro pelo Banco Central Europeu (BCE), externalizando os custos sobre os outros membros da UME.

Do ponto de vista de um político, os incentivos em tal sistema são explosivos: se eu, como um político em campanha, prometesse bondades para meus eleitores a fim de ganhar a eleição, poderia externalizar os custos dessas promessas, jogando-os todos sobre os outros países membros da UME por meio da inflação monetária — e os pagadores de impostos futuros é que terão de arcar com a dívida.  Mesmo que o governo venha a precisar de um socorro (o pior cenário possível), isso acontecerá somente num distante futuro pós-eleitoral.

Ademais, quando a crise estourar, eu poderei convencer os eleitores de que ela não foi causada por mim; ela se abateu sobre o país como um desastre natural — ou que (ainda melhor) ela foi causada por especuladores malvados.  Embora medidas de austeridade impostas pela UME ou pelo FMI possam surgir no futuro, a próxima eleição está bem mais próxima.  Em tal situação, a típica miopia dos políticos de uma democracia combina-se com a capacidade de externalizar sobre outras nações os custos dos déficits, produzindo uma explosiva inflação causada pelo endividamento.[1]

Devido a esses incentivos, alguns países europeus já estavam bastante adiantados em seu processo de insolvência quando estourou a crise financeira e os déficits explodiram.  Os mercados tornaram-se descrentes de várias promessas governamentais.  O recente episódio grego é um exemplo óbvio dessa desconfiança do mercado.  Como os políticos querem salvar o euro a qualquer custo, as garantias de socorro tornaram-se explícitas.  A Grécia receberá empréstimos da UME e do FMI, totalizando um valor estimado de 110 bilhões de euros ao longo dos próximos três anos.  Além disso, mesmo com os títulos do governo grego sendo classificados como lixo, o BCE continua aceitando-os em sua política monetária, passando inclusive a comprá-los diretamente do governo grego.

Existe também o perigo de contágio da Grécia para aqueles outros países — como Portugal, Espanha, Itália e Irlanda — que também possuem déficits e dívidas altos.  Alguns destes sofrem com alto desemprego e mercado de trabalho inflexível.  Um contágio desses países poderia desencadear sua insolvência — e o fim do euro.  A UME reagiu a essa possibilidade e entrou “com tudo”, prometendo, em conjunto com o FMI, um pacote adicional de 750 bilhões de euros para os países membros em apuros, a fim de estancar a ameaça de contágio.

Por que os governos não podem conter a crise

Esse socorro de 110 bilhões à Grécia, em conjunto com os 750 bilhões de euros adicionais que foram prometidos, podem impedir essa crise da dívida soberana?  Ou o ponto sem retorno já foi cruzado?  Há vários motivos que explicam por que as soluções políticas podem ser incapazes de impedir a difusão dessa crise de dívida soberana.

1. Os 110 bilhões dados à Grécia podem, por si sós, não ser suficientes.  O que vai acontecer se daqui a três anos a Grécia não tiver conseguido reduzir seus déficits suficientemente?  A Grécia não parece estar no rumo de se tornar autossuficiente em apenas três anos: ela está, paradoxalmente, fazendo pouco e muito para atingir esse intento.  Ela está fazendo muito no que tange aos impostos, aumentando a carga tributária e, com isso, prejudicando o setor privado.  Ao mesmo tempo, a Grécia está fazendo pouco no que tange aos gastos, não reduzindo suficientemente as despesas do governo.  Ademais, as greves estão paralisando a economia e as demonstrações violentas estão colocando em risco as medidas de austeridade.

2. Ao se gastar dinheiro para socorrer o governo grego, menos fundos ficam disponíveis para socorrer outros países.  Aumenta-se o risco de não haver dinheiro suficiente para socorrer o governo de outros países (tais como Portugal) caso uma ajuda se faça necessária.  Consequentemente, as taxas de juros cobradas sobre os títulos desses países — que agora se revelaram ainda mais arriscados — subiram.  Embora o pacote adicional de 750 bilhões tenha sido criado em resposta a esse risco, a iminente ameaça de contágio foi interrompida a um custo: um maior endividamento dos membros mais fortes da UME, o que significa que o problema da dívida soberana foi agravado ainda mais.

3. No final, sempre haverá alguém que terá de pagar por esse empréstimo de 5% feito pela UME à Grécia.  (Com efeito, os EUA [e o Brasil] estão pagando uma parte dessa soma indiretamente, por meio de sua participação no FMI).  À medida que as dívidas dos outros membros da UME aumentam, eles terão de pagar juros maiores sobre seus títulos.  Portugal já está pagando mais por sua dívida, e teria prejuízo caso emprestasse dinheiro a 5% para a Grécia.[2]  Dado que tanto a dívida total quanto os juros cobrados de Portugal estão subindo, é provável que logo, logo o país não mais consiga refinanciar sua dívida.  Por conseguinte, se Portugal tiver então de ser socorrido pelo resto da UME, as dívidas e os juros cobrados de outros países subirão ainda mais.  Isso poderá derrubar o próximo país mais fraco da lista, o qual por sua vez também necessitaria de um socorro, e assim por diante, em um efeito dominó.

4. O socorro à Grécia (e a promessa de apoio a outros países-membros problemáticos) reduziu os incentivos para se controlar os déficits.  O resto dos países da UME pode muito bem pensar que eles, assim como a Grécia, também têm direito ao auxílio da UME.  Por exemplo, dado que as taxas de juros podem se estabilizar após uma rodada de socorros, a pressão sobre o governo espanhol para que este reduza seu déficit e flexibilize suas leis trabalhistas será artificialmente removida — uma vez que estas medidas, embora necessárias, são extremamente impopulares entre os eleitores.

Os problemas da dívida soberana, portanto, podem ter atingido um ponto além de qualquer solução — a menos que haja calote ou altas taxas de inflação.  É provável que, com o socorro à Grécia, a Europa já tenha ultrapassado esse ponto sem retorno.

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Notas

[1] Para entender o horizonte temporal de políticos em uma democracia, ver Hans-Hermann Hoppe, Democracia: O Deus que Falhou (Transaction Publishers, 2001).

[2] Sendo assim, ainda não está claro se os países que estão pagando taxas de juros maiores que 5% irão participar.

 

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