Anarquia, Deus e o Papa Francisco

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Obrigado a todos os presentes neste evento. Mais uma vez, estou muito satisfeito por ter a oportunidade de me apresentar a todos os presentes neste 10º Congresso de Economia Austríaca. Tradicionalmente, minhas palestras lidam com temas de teoria econômica ou filosofia liberal. No ano passado, no entanto, apresentei uma exceção e desenvolvi uma pequena incursão no domínio da política: penso que a situação no nosso país a justificou. Este ano também abriremos uma exceção para realizar uma incursão no campo da teologia.

Há alguns anos, a professora María Blanco me entrevistou para um livro sobre os economistas espanhóis mais notáveis, e nela já dei indícios que é muito importante que, na abordagem multidisciplinar da Escola Austríaca, não esqueçamos a teologia: sem dúvida Filosofia, Direito etc. são muito importantes, mas a Teologia também é uma área que não deve ser esquecida e devemos a desenvolver. Hoje, portanto, vamos tentar fazer juntos um pequeno trabalho de pesquisa sobre teologia e sua relação com o movimento libertário.

As minhas primeiras palavras teriam de ser de agradecimento ao Papa Francisco, porque o conteúdo das seguintes reflexões foi inspirado por ele. Especificamente, por seus comentários sobre os libertários, que introduz os participantes na Sessão Plenária da Pontifícia Comissão de Ciências Sociais em 28 de abril. Então, agradeçamos ao Papa Francisco por dar origem ao que vou dizer hoje.

Gostaria também de salientar que preparei esta palestra à sombra de um pinheiro, às margens do Mar Mediterrâneo, na minha casa de Maiorca, sábado passado, 13 de maio de 2017: exatamente 100 anos após o aparecimento da Virgem de Fátima aos três pastorinhos portugueses, Francisco, Jacinta e Lúcia. A propósito, a mensagem mais importante da Virgem de Fátima foi que uma grande desgraça estava para chegar ao mundo com a Revolução Comunista na Rússia, de modo que muito deveria ser rezado pela Rússia: parece que as orações tiveram seu efeito e depois de mais de 70 anos o Muro caiu e o verdadeiro comunismo desapareceu. Embora deva ser dito que, no que diz respeito ao comunismo e ao marxismo cultural, ele ainda reina em toda parte; mesmo em amplas áreas da Igreja Católica. Por tudo isto, permitam-me que dedique a intervenção de hoje a Nossa Senhora de Fátima.

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Eu gostaria de partir de uma premissa: Deus existe. Isso chocará muitas pessoas: para alguns será óbvio (os crentes); outros terão suas dúvidas; e a outros causará repúdio, especialmente em uma área de cientistas, economistas, filósofos e amantes da liberdade como a que me encontro hoje. Mas eu gostaria que, mesmo para aqueles que não acreditam em Deus, pelo menos para fins dialéticos, façam um esforço de imaginação e, nos próximos minutos, imagine que Deus realmente exista.

O que entendemos por Deus? Devemos entender por Deus um Ser Supremo, Criador por amor de todas as coisas e de todas as criaturas que foram criadas. Em outro lugar, desenvolvi em sua totalidade a tese de que uma das criaturas mais importantes que Deus criou é o ser humano: precisamente à sua imagem e semelhança. E se há um ponto de conexão ou semelhança entre Deus e o homem, é precisamente na capacidade empreendedora criativa: prehendo, prehendi, prehensum, a capacidade de descobrir, ver e criar coisas novas. Mas não vou desenvolver esta teoria aqui porque já é conhecida e ela já foi exposta em detalhes em várias das minhas obras.

Mas hoje vou dar mais um passo e vou tentar mostrar que Deus não é apenas um Ser Supremo, Criador por amor de todas as coisas, mas também que… Deus é libertário. Essa é a principal tese sobre a qual minha intervenção vai se desenvolver. E o que significa ser um libertário? Talvez seja desnecessário que nos façamos esta pergunta aqui: é que o libertário é aquele que ama a liberdade, una e indivisível, do ser humano; sobretudo é quem defende a liberdade de empreendimento, a capacidade criativa do ser humano, a ordem espontânea do mercado e que abomina a coerção institucional, sistemática e organizada dessas agências monopolistas da violência que conhecemos pelo nome de Estado. Em outras obras – por exemplo, em meu artigo “Liberalismo clássico versus anarcocapitalismo” – estudei em detalhes por que o Estado é desnecessário, altamente prejudicial e ineficiente e, acima de tudo, imoral; e por que deve ser desmantelado.

E o que significa dizer que Deus é libertário? Qual é o sentido dessa expressão? Ela significa que sendo Deus, Senhor de todo o Universo, que tem poder absoluto sobre a Terra e o resto do Universo, ele decide não usar a força, e ao invés disso sempre deixa suas criaturas livres. A tal ponto que lhes deixa a liberdade de se rebelar contra Ele: por exemplo, esse é o caso dos Anjos Caídos, que se rebelam contra o seu Criador. Ele também deixa em liberdade o ser humano, para se rebelar contra Ele; embora, neste sentido, o ser humano seja mais afortunado do que os Anjos Caídos, porque ele é afortunado por ter sido redimido (ou seja, uma e outra vez, Deus perdoa o ser humano e permite que ele se levante e comece de novo).

Portanto, Deus – em suas três pessoas, Deus Pai, Deus Filho, Deus Espírito Santo – sempre deixa fazer, deixa passar, deixa que o universo que Ele criou flua e evolua sozinho e espontaneamente (“laissez faire, laissez passer, le monde va de lui me”, poderia ser o lema de nosso Deus libertário). E isso apesar de o ser humano tentar Deus repetidas vezes, exigindo que Ele manifeste seu poder absoluto, para nos dar sinais muito claros e indiscutíveis de Seu poder supremo para acreditar Nele. Mas, é claro, Deus não aceita esse desafio porque uma conversão forçada, por exemplo, por um cataclismo inquestionável, seria algo completamente contrário à liberdade inata com a qual, à sua imagem e semelhança, o Criador supremo, por amor, nos criou.

Os zelotes do tempo de Jesus (e o mundo ainda está cheio de zelotes hoje) clamaram e pediram a criação de um estado mundial onipotente, um Reino do Messias que exerceria seu poder e imporia sua vontade ao mundo inteiro. Também foram exigidos outros sinais: assim, por exemplo, quando Jesus foi crucificado, num escárnio, gritaram-lhe: “se és filho de Deus, desce da cruz e depois creremos em ti”. Mas Jesus, Deus Filho libertário, não desce da cruz. E por que não fez cair uma chuva de fogo que os arrasasse, manifestando a vontade do Criador supremo, como o napalm na Guerra do Vietnã ou a “mãe de todas as bombas”? E lembremo-nos de que mesmo tais apóstolos amados de Jesus como Tiago e João caem nessa tentação de pedir a Deus Filho para destruir com fogo e, assim, impor seu poder e vontade. Podemos ler isso em São Lucas, capítulo 9. Lá é dito: “Eles entraram em uma aldeia de samaritanos para fazer os preparativos, mas eles não o receberam porque sua aparência era a de quem estava caminhando para Jerusalém”. Quando viram isto, Tiago e João, seus discípulos, disseram-lhe: “Senhor, queres que digamos que desça fogo do céu e os consuma?” Jesus virou-se e os repreendeu e dirigiu-se para outra aldeia. E por que isto? Porque Deus, neste caso Deus Filho, é libertário.

Mas nem mesmo tendo o máximo poder concebível e sendo capaz de estabelecer de repente e para sempre, por exemplo, o melhor estado de bem-estar que se pode imaginar, nem mesmo nessas circunstâncias, Deus Filho, aceita nosso desafio. Temos o caso de seu discurso mais famoso, “o Sermão da montanha”: uma multidão que não tem nada para comer e testemunha e aproveita o milagre da multiplicação de pães e peixes. Então, quando todos estavam satisfeitos, perceberam que Jesus era capaz de alimentar todos de graça: isso era um paraíso. E qual foi a reação das pessoas? Tenho muito medo de que mais do que sensibilizado pela mensagem das Bem-aventuranças, tentadas pela possibilidade de alcançar aqui e agora um estado de bem-estar social, naquela época eles decidem nomeá-lo chefe de governo, do Estado … em poucas palavras, fazê-lo Rei. Vejamos como o Evangelho de São João diz isso (6: 14-15): “Sabendo, pois, Jesus que haviam de vir arrebatá-lo, para o fazerem rei, tornou a retirar-se, ele só, para o monte” – e por que? Porque Deus Filho, é um libertário.

Acontece que o Reino de Deus não é deste mundo; o próprio Jesus diz a um oficial assustado do estado romano que também é encarregado de julgá-lo: “Meu reino não é deste mundo”. Isso significa que haveria dois tipos de reinos ou Estados? Os reinos deste mundo, que estariam em seu nível legítimo (lembre-se do “dê a César o que é de César”), e o Reino de Deus, de além (e “dê a Deus o que é de Deus”). Essa é a interpretação padrão que prevaleceu até agora, mas que eu acho que está errada do começo ao fim.

A réplica de Jesus quando eles o colocaram nessa armadilha, que nunca poderíamos chamar de “saduceu”, quando perguntado se é legítimo pagar impostos, é uma réplica muito inteligente: “dê a César o que é de César e dê a Deus o que é de Deus”. E ele se livrou de problemas, naquele momento. Mas em nenhum momento ele especificou o que era de César… possivelmente nada. Jesus nunca pagou impostos. A única vez que ele teve que pagar um imposto ordenou-lhes para pescar um peixe, eles abriram a boca do peixe e de lá tiraram o dinheiro para pagar o imposto (Mateus 17:22-27). E que ele faz isso para “não dar um mau exemplo”. Não tem outro significado senão o de quem recomenda escravos que, para evitar o castigo, obedeçam ao seu mestre: Jesus não é um reformador social, e seu objetivo é outro muito diferente: alcançar o coração do ser humano e convertê-lo.

Na minha opinião, o que significa a passagem anterior é que o Reino de Deus – que é exatamente o oposto dos reinos deste mundo ou dos Estados – nunca usa sistematicamente a violência e a coerção: é um reino que já nos alcançou e que, além disso, nos foi dado gratuitamente, num ato de imensa misericórdia e amor (Deus caritas est). Um Reino que também deve acabar com o desmantelamento dos reinos deste mundo, dos Estados deste mundo, porque Deus é libertário e o homem é feito à imagem e semelhança de Deus.

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Mas qual é a origem e a natureza dos Estados ou reinos deste mundo? Sem dúvida, o estado é a encarnação do Mal, do Demônio, a correia de transmissão do Mal. Mas antes de provarmos este ponto, vamos fazer uma pequena digressão sobre qual é a origem do Estado.

Talvez a explicação mais clara que temos está no Antigo Testamento, no Livro de Samuel, capítulo 8. Pois ali é descrito como os reinos deste mundo, os Estados, surgem como um ato deliberado da rebelião do homem contra o Reino de Deus. O povo israelita viveu até então em uma espécie de semi-anarquia, com uma série de juízes ou árbitros que foram usados para resolver desacordos internos; mas, em um certo ponto, os israelitas se voltam para Samuel e dizem-lhe: “Dá-nos um rei para nos governar”. O que quer dizer, dá-nos um Estado. Lemos em Samuel como isso parecia muito ruim para ele e ele recorreu a Deus: ei, deixe-os fingir que lhes damos um Rei, que lhes damos um Estado. E Yahvé literalmente responde o seguinte: “Pedem um rei porque me rejeitam, para que eu não reine sobre eles.” Isto é, o Estado aparece como a alternativa a Deus. O reino deste mundo é a alternativa ao Reino de Deus. Mas Deus é libertário e deixa-o fazer: “se você quer um Estado, faça-o”. Mas Samuel, antes de seguir em frente, adverte-os em detalhes o que supõe cada Estado, cada reino deste mundo. Samuel, sem mais delongas, reúne o povo e diz-lhes o seguinte: Você quer um estado? Olha o que vai acontecer: Ele tomará os filhos de vocês para serem soldados; porá alguns para servirem nos seus carros de guerra, outros na cavalaria e outros para correrem adiante dos carros. Colocará alguns deles como oficiais encarregados de mil soldados, e outros encarregados de cinquenta. Os seus filhos terão de cultivar as terras dele, fazer as suas colheitas e fabricar as suas armas e equipamentos para os seus carros de guerra. As filhas de vocês terão de preparar os perfumes do rei e trabalhar como suas cozinheiras e padeiras. O Rei [o Estado] tomará de vocês os melhores campos, plantações de uvas, bosques de oliveiras e dará tudo aos seus funcionários. [igualzinho ocorre hoje] Ficará com a décima parte dos cereais e das uvas, para dar aos funcionários da corte e aos outros funcionários. Tomará também os empregados de vocês, o melhor gado e os melhores jumentos, para trabalharem para ele. E ficará com a décima parte dos rebanhos de vocês. E vocês serão seus escravos. Então a advertência de Yahvé é muito clara. Não sei como reclamamos depois …

Quanto ao Estado ser o principal instrumento ou correia de transmissão do mal, isto é, do poder do Maligno: quem é o Maligno, o Diabo, o Anjo caído? Qual é o objetivo do Maligno? Obviamente, seu objetivo é destruir a obra de Deus, destruir a ordem espontânea do Universo, dentro da qual está a ordem espontânea do mercado. Esse é o objetivo dele. E, portanto, o que é nosso inimigo, inimigo dos libertários? – É o Diabo. Estamos diante do Diabo e uma de suas principais manifestações está no Estado. Por isso, a questão é difícil. É árdua, mas não impossível de superar, porque temos em Deus um aliado ainda mais poderoso do que o próprio Diabo. Não há dúvida de que o Estado é a encarnação do Diabo: mas não sou eu que diz isso – o que não teria mérito e seria apenas um argumento de autoridade –, quem diz isso é São Lucas Evangelista e também se uniu muito bem a ele o Papa Emérito Bento XVI, Joseph Ratzinger, em sua biografia mais notável intitulada Jesus de Nazaré, em cujo volume II encontramos uma parte sublime onde ele comenta sobre cada uma das tentações a que Deus Filho, ou seja, Jesus, foi submetido.

Em São Lucas capítulo 4, do quinto versículo, a terceira e mais séria das tentações a que Jesus está sujeito, a mais perigosa, é descrita. Lemos no Evangelho: “E o diabo, levando-o a um alto monte, mostrou-lhe num momento de tempo todos os reinos [isto é, todos os Estados] do mundo e disse-lhe: “Dar-te-ei a ti todo este poder e a sua glória [e isso que diz abaixo é a coisa mais importante] porque a mim me foi entregue, e dou-o a quem quero. Eu dou-te esse poder se te ajoelhares à minha frente, tudo será teu.” Então, pela confissão do próprio Diabo, todos os Estados da Terra estão sob seu comando e dependem dele. Já podemos entender por que eles causam tanto dano… e o que Jesus responde? Jesus diz, como está escrito no Evangelho, “adorarás o Senhor teu Deus, e só a ele servirás.” – E por que? Porque Deus é libertário.

O próprio Ratzinger adverte que a principal ameaça do nosso tempo está precisamente no endeusamento da razão humana e que através da engenharia social (suposta e pseudocientífica), pretende-se construir, aqui e agora no mundo, sob a liderança de governos, governantes e seus especialistas e sempre através do Estado, o Nirvana, o paraíso terrestre. O grande problema da humanidade é que transformamos o Estado em um bezerro de ouro que todos adoram: o Estado é o verdadeiro Anticristo. É aí que reside o grande problema da humanidade.

Vamos ver como Ratzinger explica em Jesus de Nazaré (primeira parte, edição em espanhol, pp. 66-67): “A tentação não é tão grosseira a ponto de propor diretamente a adoração ao Diabo: ela só nos propõe preferir um mundo planejado e organizado. Ratzinger então se refere ao teólogo Soloviev, que atribui um livro ao Anticristo cujo título é O Caminho Aberto para a Paz e o Bem-Estar do Mundo, que se torna a nova Bíblia e que tem como conteúdo essencial o culto ao bem-estar social e ao planejamento racional do Estado. Ideia sobre a qual Bento XVI retorna em sua Encíclica Spe Salvi (XXX), onde condena “a esperança de estabelecer um mundo perfeito graças a uma política cientificamente fundamentada”. Ou naquele maravilhoso discurso que Ratzinger fez no parlamento alemão e onde disse, citando Santo Agostinho, que “um governo não sujeito à lei é uma gangue de ladrões”. Você e eu sabemos que, hoje e historicamente, quantitativa e qualitativamente, o principal condenado e inimigo da Lei (com “L” maiúsculo e no sentido hayekiano) é precisamente o próprio Estado e seu governo. Ou, por outro lado: a expressão “Estado de Direito” é uma contradição em termos. Não há maior inimigo do verdadeiro Direito do que o Estado. Isso é algo que somos todos testemunhas todos os dias desde o momento em que nos levantamos até irmos para a cama. E se o principal inimigo da Lei é o Estado e o próprio Ratzinger seguindo Santo Agostinho já indicou que um governo ou Estado não sujeito à Lei é uma gangue de ladrões (o que, por outro lado, é óbvio), a conclusão é muito clara: todos os Estados e governos são um bando de ladrões.

Aliás, Ratzinger também denuncia outra ideia muito importante: “você sabe quando a Igreja se desvirtuou? Muito simples, no momento em que ela se tornou a Igreja oficial do Estado.” As coisas são distorcidas, diz ele, não obviamente desde o Decreto de Teodósio, que é quando ela se torna a Igreja oficial do Império, mas antes, com Constantino, com o Édito de Milão que consagra a liberdade religiosa (ano 313 depois de Cristo). Alguns anos mais tarde, em 321, Constantino declara os domingos um feriado em todo o Império (em honra dos cristãos). E mais tarde, no Concílio de Nicéia, permite que os bispos se reúnam e cheguem a acordos e consensos, mas decreta que eles só serão válidos se o próprio Constantino os aprovar. A partir daí, a Igreja Católica está perdida: ela se torna uma instituição, poderíamos dizer, em conchavo com o Estado. E já podemos entender muitas atrocidades da história das Cruzadas, instituições genocidas como a Inquisição, etc. Porque a Igreja em muitas ocasiões – e contra a sua própria origem e natureza – torna-se um instrumento do Maligno, como Igreja oficial do Estado. E é por isso que é tão vital separar as duas instituições, como pensa Ratzinger.

No entanto, do ponto de vista intelectual, o maior dano não é este: o maior dano tem sido que, como durante séculos a Igreja tem sido a Igreja oficial do Estado, surgiu uma legião de intelectuais e teólogos que dedicaram seus esforços para tentar justificar o injustificável: ou seja, que o Estado é legítimo. Esperemos que haja uma virada de rumo e, a partir de agora, a Igreja se desapegue definitivamente da sua síndrome de Estocolmo e comece a denunciar, em vez da economia de mercado, o Estado como encarnação do mal, que é seu verdadeiro e principal inimigo.

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Creio que foi estabelecido que Deus nos deu por amor seu Reino, que Deus é criador e libertário, e que a principal ameaça para o Reino de Deus está no endeusamento da razão humana, a arrogância fatal (o título da última obra de Hayek), que age através dos estados ou reinos deste mundo que incorporam o mal sistemático. E se for assim, qual deve ser o fio condutor de nossa ação todos os dias? A resposta é óbvia: dedicar todo o nosso esforço e energia, intelectual e física, todo o nosso ser, a desmantelar os Estados e promover a ordem espontânea de Deus, baseada no amor e na cooperação voluntária. Trata-se de defender e promover a propriedade privada, a liberdade de empresa e a ordem espontânea do mercado. Tudo isso como condição necessária, embora não suficiente: é necessário também que o ser humano nunca perca o guia da ética e da moral, que é precisamente o melhor que a Igreja pode dar. Mas reconhecer que o que disciplina mesmo os bandidos é o mercado: porque o mercado nos força, em um ambiente de cooperação voluntária, a dialogar com o outro, a tentar descobrir suas necessidades e satisfazê-las pacificamente; isso nos força a manter uma reputação se quisermos que no dia de amanhã continuem a negociar conosco… Isso explica por que o grande Montesquieu chegou à conclusão de que, “onde o mercado prevaleceu, os costumes são doces”. Porque o mercado, como o Papa João Paulo II já disse muito bem, é a melhor “cadeia de solidariedade que se estende progressivamente” e atinge os últimos limites do ser humano (Centesimus Annus, capítulo IV, no 43, terceiro parágrafo).

Tenho revisado esta e outras declarações de João Paulo II sobre a doutrina social da igreja na Centesimus Annus, e a verdade é que elas são espetaculares; lembremo-nos de algumas outras delas. João Paulo II diz: “Quando uma empresa dá lucros, isso significa que os fatores produtivos foram usados adequadamente e que as necessidades humanas correspondentes foram adequadamente atendidas”. Então você deve buscar o lucro não por ganância, mas como uma manifestação de que o bem é feito ao outro. E os prejuízos, ao contrário, indicam que o mal é feito aos outros, dedicando indevidamente recursos escassos para atender necessidades menos importantes do que as mais valorizadas que não são atendidas. Papa João Paulo II continua: “Se o Estado deve ter alguma incumbência, deve ser garantir a propriedade e a liberdade individual para que qualquer pessoa que trabalhe e produza possa desfrutar dos frutos de seu trabalho e, portanto, se sinta encorajado a realizá-lo de forma eficiente e honesta” (capítulo V, no 48). Também disse: “Quando o interesse individual é violentamente suprimido, ele é substituído por um sistema de controle burocrático caro e opressivo que esteriliza qualquer iniciativa e criatividade” (capítulo III, no 25, terceiro parágrafo). Isto é o que acontece com nós todos os dias no ambiente opressivo em que vivemos. Acrescenta: “Uma estrutura social mais elevada não deve intervir na vida interior de um grupo social de nível inferior, privando-o de suas competências” (capítulo V, 48, quarto parágrafo). Afirma que: “Conhece melhor as necessidades e consegue satisfazê-las de uma maneira mais apropriada quem está perto delas ou quem está perto do necessitado”; e ele critica o estado de bem-estar social “porque, intervindo diretamente e removendo a responsabilidade civil da sociedade, causa a perda de energias humanas e o aumento exagerado de aparatos públicos dominados por lógicas burocráticas, em vez de pela preocupação real de servir os usuários, e tudo isso com enorme crescimento de gastos” (capítulo V, nº 48, quinto parágrafo). E qual é o preço justo? O que São João Paulo II diz sobre qual é o preço justo? Porque reclamamos muitas vezes dizendo, por exemplo: “você tem que pagar o salário justo”. Mas qual é o preço justo? Resposta do Santo Padre: “aquele estabelecido de comum acordo após uma livre negociação”. João Paulo II santo dixit (capítulo IV, n.o 32).

E qual foi a conclusão que cheguei? A conclusão a que cheguei é que um católico deve ser libertário em questões sociais. Além disso, ele deve ser um defensor da anarquia de propriedade privada. A verdadeira ciência econômica mostra que a única possibilidade de uma sociedade não estatal funcionar é através da ordem espontânea do mercado, proporcionando-lhe todos os bens públicos através da sociedade civil e de forma privada. É o estágio mais elevado da civilização que pode ser concebido e a realização do Reino de Deus, e tanto quanto humanamente possível, aqui na Terra. Anarquia da propriedade privada ou, se você quiser, podemos usar o termo capitalismo libertário, mesmo que isso assuste João Paulo II: é que assim como a palavra “capitalismo”, que há décadas e décadas, tem sido associada a tudo de ruim, ele não gosta e propõe substituí-la por outro nome como economia de livre iniciativa, economia de mercado, etc. Mas porque? Vamos chamar as coisas pelo nome: capitalismo libertário, anarquia da propriedade privada ou, a melhor expressão de todas, anarcocapitalismo. Uma expressão científica muito mais precisa do que, por exemplo, “autogoverno” ou outras expressões que levam à confusão. Estamos orgulhosos de ser anarcocapitalistas, anarquistas de propriedade privada, especialmente porque Deus é libertário e está conosco.

Anarquia significa etimologicamente a ausência de qualquer autoridade pública. A expressão é perfeita: tudo seria privado, não haveria autoridade pública. Arkhein vem do grego: significa comando, mandato, poder público. Anarquia: que não há autoridade pública. Outra expressão que pode ser usada também é ácrata: do grego kratos, que significa poder absoluto. Aqui devemos lembrar a famosa anedota de Hayek, quando ele se declara oposto à democracia (demo-kratos). Como kratos significa poder absoluto e ele é contra todo poder absoluto, mesmo que seja apoiado pelo povo, ele não defende a democracia, e é por isso que ele propõe outro sistema com outro nome: isomia, demarquia, etc. Vocês conhecem muito bem tudo isso e já estudaram os três volumes de Direito, legislação e liberdade. Temos orgulho de ser anarcocapitalistas e ácratas. Como eu me orgulho e tento ser o mais católico dos anarcocapitalistas, ou o mais anarcocapitalista dos católicos.

***

Terminarei meu discurso hoje com os versos de um grande libertário espanhol, de um grande anarquista que nasceu em Sevilha, chamado Melchor Rodríguez García. Eu não sei se você o conhece: Melchor Rodríguez García foi o último e efêmero prefeito de Madri na Segunda República; juntamente com o coronel Casado e o general Cipriano Mera (dois colegas anarquistas), ele deu um golpe de Estado contra as forças marxistas e comunistas do presidente Negrín, que era fantoche de Stalin, para acabar com a guerra civil. E foram precisamente eles que, depois de triunfarem em seu golpe e tomarem o poder, entregaram Madri às forças do general Franco.

Melchor Rodriguez também é conhecido como El Ángel Rojo (O Anjo Vermelho), porque salvou mais de 12.500 prisioneiros, que estavam em prisões de Madri, de serem mortos ou linchados. Las sacas de Madrid, que terminaram nos fuzilamentos de Paracuellos e eram responsabilidade direta (por ação ou omissão) de Santiago Carrillo, foram imediatamente interrompidas no momento em que Melchor Rodríguez foi nomeado inspetor-geral das prisões pelo ministro da Justiça, também anarquista García Oliver. Assim que ele chegou e assumiu o cargo, ele estabeleceu o seguinte: “está proibido que qualquer um seja retirado da prisão a partir das sete horas da tarde às sete da manhã sem minha autorização direta e expressa pessoalmente ao telefone”. E foi assim que os fuzilamentos ilegais pararam imediatamente.

Não é nem preciso dizer que os marxistas iniciaram uma ofensiva de difamação contra Melchor Rodriguez, que era uma instituição do movimento anarco-sindicalista na Espanha. Ele foi acusado de ser um traidor da República, e ele respondeu que os traidores eram os que tinham manchado a nobre ideia da anarquia com sangue. Ele acrescentou: “Você pode morrer por um ideal, mas nunca matar por ele.” Talvez o exemplo mais sublime de morrer por um ideal que temos é o caso de Deus Filho, o caso de Jesus. Ele morreu pelo ideal de redimir toda a raça humana: vítima da razão de Estado e de uma conspiração política… outra vítima, em suma, do Estado… Eles também acusaram Melchor Rodriguez dizendo-lhe: “Por que você fez isso? Por que defendes os quintos colunistas que temos na prisão? Não será um católico infiltrado?” Resposta de Melchor Rodriguez: “Eu fiz isso não como católico, mas como um libertário”. Não sabia que talvez fosse os dois lados da mesma moeda: católico e libertário. Além disso, Melchor Rodríguez García, apesar de ser da Federação Anarquista Ibérica, era de um grupo chamado “Os Libertos”, que defendia essas teses baseadas na liberdade e nos direitos humanos.

Quatro meses depois, ele foi demitido e nomeado inspetor-geral dos cemitérios, e com sua equipe ele ocupou o Palácio del Marqués de Viana em Madri. A primeira coisa que ele fez foi um inventário de todas as coisas nele: e olhar como este anarco-sindicalista era respeitoso com a propriedade privada que, quando o proprietário recuperou o palácio com o término da guerra, disse às autoridades que não faltava uma única colher de prata. Acontece que o Anjo Vermelho, Melchor Rodriguez, não teve condições de se formar. Desde muito jovem, ele cresceu em uma família muito pobre; mais tarde, ele desenvolveu uma carreira de toureiro que foi frustrada; e mais tarde dedicou-se de corpo e alma a impulsionar o ideal anarquista … mas com esse viés de liberdade e respeito pelos seres humanos que estou comentando. Depois da guerra, ele foi julgado e condenado à morte, mas, felizmente, e graças a 2.500 assinaturas das pessoas que foram salvas graças a ele, incluindo o general Musoz Grandes, ele foi perdoado. Depois de alguns anos na prisão, ele voltou à vida civil e dedicou o resto de seus dias, até 1972, quando morreu, a ganhar modestamente seu sustento com a nobre atividade de agente de seguros da Companhia Adriática (assim, dado o meu status como segurador, me simpatizo duplamente com ele). Por tudo isso, não tenho dúvidas de que, se ele tivesse a possibilidade de se formar e estivesse aqui hoje conosco, Melchor Rodriguez, o Anjo Vermelho, seria anarcocapitalista.

E eu termino com estes versos que ele escreveu e que dizem assim:

Anarquia significa:

Beleza, amor, poesia,

igualdade, fraternidade,

sentimento, liberdade,

cultura, arte, harmonia,

a razão, o guia supremo,

ciência, verdade exaltada,

vida, nobreza, bondade,

satisfação e alegria.

Tudo isso é anarquia

e anarquia, humanidade.

 

Muito obrigado.

 

 

 

Artigo original aqui

 

2 COMENTÁRIOS

  1. Excelente artigo!

    No geral, a crítica catolica tradicional – anterior ao CVII é extremamente virulenta com os libertários. Teologicamente eles tem razão, pois Rothbard é pro choice, o que para eles seria apoiar assassinato – e não é. In extremis Rothbard seria um herege imoral.

    E uma observação. Os problemas da Igreja com seu suposto status de religião oficial são falsos, sendo que mencionar Constantino é um argumento muito popular entre os hereges. A Igreja operou até a maldita revolução francesa como uma anarquia. E funcionava muito bem.

    • O poder papal não tem nada de anárquico e sim é um poder monárquico. E no AT da Bíblia, Deus exige holocaustos e sacrifícios, exige que se obedeça a inúmeras regras, leis e normas e inclusive mata quem não as obedece. Não tem como ser um “Deus libertário”.

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