[Extraído do livro Curso Básico de Escola Austríaca]
Antes de conhecermos a teoria ética austríaca tal como é hoje, vamos passar em revista a sua evolução, a começar pela doutrina ética de Ludwig von Mises.
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Desde Platão que se discute sobre quais princípios éticos e morais devem orientar a conduta humana. E de lá até o século XX, nenhuma resposta convincente foi dada. Se analisarmos todas as teorias éticas ou da justiça propostas desde Platão até Habermas, passando por Tomás de Aquino e Immanuel Kant, verificaremos que todas, sem exceção, cometem pelo menos um desses dois erros: ou a) se baseiam em meros juízos de valor ou b) tentam derivar normas a partir de fatos. O primeiro erro consiste em partir de um dogma que ninguém é obrigado a aceitar e, com base nele, dizer o que é certo e errado. Obviamente, se queremos que a Ética seja uma ciência, ela deve ser isenta de juízos de valor – wertfrei, no linguajar austríaco – e, portanto, partir de um princípio que ninguém possa desdizer, ainda que queira. O segundo erro consiste no problema do ser/dever-ser, ou Guilhotina de Hume, nome dado em homenagem ao filósofo escocês David Hume, quem primeiro formulou a tese. E ela diz o seguinte: que não se pode derivar uma proposição do tipo “isto deve ser” (normativa) a partir de uma proposição do tipo “isto é” (descritiva). Do fato de que algo é não se pode deduzir que algo deveria ser. E esse brilhante insight de David Hume não é mera convenção, mas regra insofismável da Lógica. Com efeito, é impossível construir um silogismo no qual duas premissas factuais engendrem uma conclusão normativa. Trata-se de uma impossibilidade formal. Para se derivar uma conclusão do tipo “isto deve ser”, uma das premissas tem de conter um verbo com esse valor semântico. Não por acaso, toda decisão judicial se baseia no modelo fato + norma = sentença. Ademais, além desses dois erros, muito houve também de propostas éticas que, embora parecessem lógicas, consistiam tão somente de fórmulas vazias, como o suum cuique tribuere (a cada um o que é seu), a Regra de Ouro (não faça com os outros aquilo que não gostaria que fizessem com você) e o imperativo categórico kantiano (aja de tal maneira que o princípio da sua ação possa ser universalizado), as quais não servem de guia prático para a ação, nem solução para o problema da ordem social.
Dado esse bimilenar fracasso em estabelecer normas objetivas para a conduta humana, é natural que pensadores lúcidos como Hans Kelsen e Ludwig von Mises tenham chegado à conclusão de que não existe tal coisa como justiça. Kelsen enfatiza a impossibilidade de se construir uma ética de maneira científico-racional e conclui que toda ideia de justiça é subjetiva[1], no que Mises o acompanha, dizendo: “Não existe uma ciência normativa, uma ciência daquilo que deveria ser”.[2]
Por pensar dessa maneira e ao mesmo tempo saber que as coisas poderiam ser melhores, Mises advoga um raciocínio bastante simples e natural: se a maioria das pessoas prefere mais bens e serviços a menos, e o capitalismo laissez-faire é o melhor meio para se obter isso, então a sociedade deve adotar o capitalismo laissez-faire. Esse é o utilitarismo misesiano. Trata-se de indicar o melhor meio para a obtenção de um fim que Mises considera, se não universal, pelo menos largamente majoritário: a melhora do padrão geral de vida através da cooperação social. “Só há uma maneira de se lidar com todos os problemas da organização social e a conduta dos membros da sociedade, a saber, o método aplicado através da praxeologia e da economia”.[3] Ou seja, a conclusão utilitarista de Mises advém da aplicação dos conhecimentos da Ciência Econômica aos fins que a sociedade almeja, consubstanciando uma proposição do tipo: “Se você quer X, deve fazer Y”. Dessa forma, diz Mises, uma vez que se entenda que existe uma ordem das coisas e que podemos usar o pensamento e o raciocínio para perceber tal ordem e examinar qualquer instituição, não existe outro padrão, ele conclui, para se avaliar um modo de ação que não seja pelos efeitos dessa ação.[4] E mais à frente ele diz: “A utilidade social é o único padrão de justiça. É o único guia da legislação”.[5]
Desse modo, o utilitarismo de Mises parece se distinguir do utilitarismo tradicional de Jeremy Bentham e John Stuart Mill, os quais pregavam a lei do maior bem para o maior número de pessoas. Segundo se depreende do artigo de Daniel Sanchez, Mises não tinha a intenção de estabelecer um imperativo ético ou moral, já que ele próprio não acreditava em valores absolutos, nem na própria possibilidade de uma ciência da ética. Ele apenas sabia como a sociedade funcionava e não via sentido em se adotarem normas que desfavorecessem esse mesmo funcionamento. “O critério definitivo da justiça é a contribuição da preservação da cooperação social”,[6] ele diz, ainda que se exija que as pessoas suportem efeitos indesejáveis no curto prazo para que não colham efeitos ainda mais indesejáveis no longo.[7]
E ele diz isso não em relação a escolhas particulares consideradas isoladamente, mas sim de acordo com as consequências sistemáticas a serem esperadas das regras gerais. Ademais, ele diz isso não com o intuito de persuadir cada indivíduo a respeito de cada escolha concreta que ele faz em sua rotina diária, mas sim para efetivar uma revolução na opinião pública a respeito da vantagem social de tais medidas, algo que por sua vez irá necessariamente causar uma revolução no código moral vigente.[8]
A abordagem de Mises seria, portanto, uma abordagem pragmática, focada em resultados, diferente do utilitarismo tradicional, que visa estabelecer uma doutrina da moral ou da ética.
A esta altura uma distinção se faz necessária: aquela entre imperativos categóricos e imperativos hipotéticos, proposta por Immanuel Kant.[9] Os primeiros dizem respeito a normas que devem ser cumpridas por si mesmas, de maneira incondicional, de que é exemplo o “Não matarás”. Os segundos encerram conteúdos normativos condicionados pelo fim que se quer obter, como a proposição “Se você está doente, deve ir ao médico”. O imperativo hipotético se subdivide ainda em duas espécies: as normas técnicas e as normas pragmáticas. Estas dizem respeito, segundo Kant, a finalidades que o homem não pode deixar de buscar, como a felicidade, por ser uma busca intrínseca à natureza humana – e logo pertencem ao campo da virtude e da sabedoria. E aquelas, as normas técnicas, dizem respeito a fins que o homem pode ou não buscar, a depender de suas próprias escolhas, e manifestam apenas uma obrigatoriedade natural, de causa e efeito. Nesse sentido, seria correto dizer que o utilitarismo de Mises é um conselho técnico. O problema é que, por mais que o conselho seja acertado e irrefutável, ele ainda não é vinculante, isto é, não gera nenhuma obrigação para o sujeito – e é exatamente isso que a ética visa alcançar. O Santo Graal da Ética é um critério de justiça que não possa ser rejeitado, como o axioma da ação humana na praxeologia. Enquanto não se descobrir uma obrigação ética absoluta, nada será objetivamente justo ou injusto e ficaremos sem critérios racionais para julgar ações e decidir qual a melhor maneira de organizar a sociedade.
Além disso, se o utilitarismo misesiano se propõe a ser mais que um mero conselho técnico (o que se pode inferir da afirmação de que o único critério de justiça é a utilidade social), então o que Mises está fazendo é ou propor uma moral – donde ele sairia dos limites do wertfreiheit[10] –, ou propor uma ética – donde ele contradiria a própria afirmação anterior de que tal coisa é impossível.
Contudo, defendendo o utilitarismo misesiano, Daniel Sanchez afirma que essa é a melhor maneira de persuadir as pessoas a adotarem um posicionamento mais pró-livre mercado.[11] De fato, teorias éticas profundas em nada contribuem para o convencimento de políticos e homens de negócios e muito menos para o da populaça, que se guiam fundamentalmente, se não pelo princípio freudiano do prazer, pelo menos por considerações materiais de utilidade. Sendo assim, o utilitarismo misesiano é de fato uma das melhores armas de que os libertários dispõem para defender a liberdade.
No entanto, seguindo essa linha de raciocínio, o empirismo também se coloca superior ao racionalismo nos processos de persuasão das massas, e logo deveríamos adotá-lo como paradigma da ciência econômica. Tanto o utilitarismo quanto o empirismo podem ser usados pela militância libertária para demonstrar, através de apelos à utilidade e à força dos números, que um sistema anarcocapitalista é melhor que um sistema estatista. Mas essas abordagens não servem para que se chegue a conclusões científicas no campo da Ética e da Economia: pois entrariam em cena, aqui, questões de natureza epistemológica.
A propósito desse assunto, a arte de convencer, diga-se de passagem, é uma área independente e não deve contaminar a nossa busca pela verdade. A mais efetiva maneira de realmente convencer as pessoas e modificar a cultura é através do labor artístico. A música, o cinema e as letras possuem infinitamente mais poder do que qualquer argumento utilitário ou empírico, pois afetam a parte emocional do cérebro, que é a principal responsável pela tomada de decisão. A pior maneira de tentar convencer alguém é pela lógica. E nem por isso adotaremos performances em lugar de argumentos na busca pela verdade. Tudo tem o seu papel e lugar adequados.
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Parece podermos concluir que o utilitarismo de Mises, enquanto imperativo hipotético, é um ótimo conselho, mas não configura uma doutrina sólida e irrefutável do dever, como a praxeologia o é da ação.
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Compreendido o teor da doutrina utilitária de Mises, vem a calhar que analisemos brevemente o utilitarismo em geral como proposta ética, por se tratar de uma tese amplamente aceita e difundida.
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O utilitarismo em si sempre parte de um dogma, o qual são modos diferentes da mesma fórmula vazia que diz: faça-se o que for melhor. Uns defendem a maior utilidade para o maior número de pessoas, outros a maior quantidade de prazer, outros a felicidade máxima, e assim por diante. Todos os tipos de utilitarismo são na verdade espécies de consequencialismo, uma doutrina ética segundo a qual uma ação é boa ou má de acordo com as consequências que produz.
O primeiro problema com essa tese é que a sua premissa fundamental é um dogma, ou seja, uma ideia sem nenhuma justificação racional, um juízo de valor que se pode aceitar ou não. Nada há que nos faça admitir tal premissa como logicamente necessária. O segundo e principal problema é que, como aponta Hoppe, uma ética, por ser uma teoria da ação, deve nos dizer como devemos agir agora.[12] Com efeito, nós só podemos agir no presente. Uma teoria ética baseada nas consequências ou efeitos da ação acabaria nos deixando sem critérios atuais. Nós teríamos de agir no presente, observar as consequências que se seguiriam e só então definir se agimos com justiça.
Porém, se aceitarmos por um momento a justeza daquele princípio, sem atinar para essa dificuldade intertemporal, e buscarmos agir de acordo com as melhores consequências possíveis, imediatamente alguém indagará: “Melhores consequências para quem?”. Certamente, não há uma maneira objetiva de determinar isso, e novamente juízos de valor seriam invocados. Além disso, se perguntarmos quais tipos de consequência devem servir de critério – se a maior utilidade para o maior número de pessoas, se o favorecimento da cooperação social, se o máximo prazer possível –, então mais uma vez a questão resta dependente de julgamentos valorativos.
Mas ainda que definamos para quem os efeitos devem ser bons e quais devem ser esses efeitos, é importante lembrar que toda ação possui efeitos imprevistos, já que vivemos em um mundo de incerteza e limitação informacional. Ademais, se a retidão de uma conduta se basear nos efeitos esperados dela (na utilidade ex ante), então nunca se terá um critério definitivo e certo do agir presente, devido ao problema da incerteza, e essa teoria ética será como a cenoura presa na cabeça do burro. Se, por outro lado, o critério for os efeitos dela obtidos (a utilidade ex post), então se precisará agir hoje para só amanhã se saber se o agir foi honesto, de modo que, novamente, não saberíamos nunca como agir no presente. A mesma dificuldade subsistiria. Também não há, nessa doutrina, critério indiscutível para determinar se as consequências definidoras da justeza da ação deveriam ser de curto, médio ou longo prazo. Com efeito, no curto prazo valeria a pena consumir toda a riqueza acumulada (renderia a máxima utilidade e o máximo prazer), enquanto que no longo prazo valeria a pena se abster do consumo para investir (mas se abster quanto?). O consequencialismo nos embaraça mais e mais à medida que lhe adentramos, afigurando-se uma doutrina ética absurda, relativista e inexequível.
Mas assumamos que se decida, por convenção, que o critério de Mises seja aceito e se adote uma ética baseada na maior utilidade social. Nesse caso, faltaria decidir se essa utilidade social seria considerada em termos de bens e serviços, como ele próprio a considerava, ou de outros valores caros à sociedade, como a igualdade social e a moral religiosa. Pode haver comunidades para as quais a liberdade individual seja execranda e que considerem de bom alvitre condenar homossexuais à pena de morte. Por certo há pessoas que preferem perder em termos de bens e serviços para ganhar em termos de “moralidade e ordem” (que para elas são um bem). Ao que parece, o critério de Mises nos conduz a um relativismo. Depois ele diz que o “critério definitivo” da justiça é a “preservação da cooperação social”. Mas existe cooperação social, em maior ou menor grau, em qualquer lugar em que se estabeleça uma comunidade. O problema de saber como deve ser essa cooperação social persiste.
Para finalizar, outra crítica que se faz contra o utilitarismo é lembrar que utilidade não é uma unidade de valor mensurável, como querem alguns economistas. Sendo assim, como seria possível empreender o cálculo da maior utilidade?
As preferências dos homens organizam-se de maneira ordinal, isto é, à maneira de um ranking: A é preferível a B, B é preferível a C, C é preferível a D, e assim por diante. Não é possível para um ser humano indicar o quanto ele prefere A a B, ou dar um valor cardinal, aritmético, que mostre objetivamente o quanto ele aprecia A. Ele só pode dizer que gosta de A e que gosta mais de A do que de B, montando destarte uma ordem de preferência, mas não poderia quantificar as utilidades de forma objetiva, como se mede um metro de pano ou se pesa um quilo de carne.
Uma definição coerente de “mensuração” implica a possibilidade de uma atribuição de números que possam ser significativamente submetidos a todas as operações da aritmética. Para que isso seja possível, é necessário definir uma unidade fixa. Para se definir tal unidade, a propriedade a ser mensurada deve possuir extensão espacial, de modo que todos possam concordar objetivamente com a unidade. Portanto, estados subjetivos, sendo intensivos ao invés de objetivamente extensivos, não podem ser mensurados e submetidos a operações aritméticas. A mensuração se torna ainda mais implausível quando percebemos que a utilidade é um conceito praxeológico, e não um conceito diretamente psicológico.[13] (grifo do autor)
Ademais, a escala de preferências que guia as ações de um homem varia dentro do próprio homem ao longo do tempo, e muitas vezes nem ele mesmo sabe o que preferiria em dada situação até que se veja inserido nela. Por isso a Escola Austríaca trabalha com o conceito de “preferência demonstrada”, que Murray Rothbard elucida do seguinte modo:
O conceito de preferência demonstrada é simplesmente isto: que a ação real revela, ou demonstra, a preferência de um homem; ou seja, que suas preferências podem ser deduzidas daquilo que ele escolheu na ação. Assim, se um homem escolhe gastar uma hora em um concerto ao invés de em um cinema, deduzimos que o primeiro era preferido, ou ocupava uma posição superior em sua escala de valores. Similarmente, se um homem gasta cinco dólares em uma camiseta deduzimos que ele preferiu comprar a camiseta do que gastar seu dinheiro com qualquer outra coisa que ele pudesse. Este conceito de preferência, originado em escolhas reais, forma a base da estrutura lógica da análise econômica, e particularmente da análise da utilidade e do bem-estar.[14] (grifo do autor)
Dessa forma, o julgamento acerca da preferência de um homem só pode ser feito com referência ao passado, onde ele efetivamente agiu e demonstrou sua real preferência naquela dada situação. Uma teoria ética da utilidade, portanto, teria de ser capaz de conhecer o futuro. Sem o conhecimento do futuro, seria impossível saber qual linha de ação engendraria a maior utilidade.
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Podemos dizer então que, até aqui, embora disponhamos de uma teoria econômica sólida, isenta de juízos de valor e baseada em verdades cogentes, e com isso saibamos como gerar a maior utilidade possível em termos de bens e serviços para a sociedade, e tenhamos ainda o bom conselho de um dos maiores economistas de todos os tempos – mesmo assim, até o presente momento, ainda não possuímos uma teoria ética igualmente sólida, isenta de juízos de valor e baseada em proposições irrefutáveis, com fundamento na qual decidir que modo de organização social se deve adotar. Mas uma tal teoria do dever é sequer possível?
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Notas
[1] Hans Kelsen, O que é justiça?
[2] Mises, Teoria e História, p. 53.
[3] Idem, p. 53.
[4] Idem, p. 47.
[5] Idem, p. 53.
[6] Mises, Teoria e História, p. 53.
[7] Idem, p. 55.
[8] Daniel Sanchez, “Em defesa do utilitarismo de Mises”. Disponível em: <https://rothbardbrasil.com/em-defesa-do-utilitarismo-de-mises/>.
[9] Norberto Bobbio, Teoria da Norma Jurídica, pp. 94-95.
[10] Isenção de juízos de valor.
[11] Sanchez, idem.
[12] Hoppe, “Ética Argumentativa: quatro objeções respondidas”. Disponível em: <https://rothbardbrasil.com/etica-argumentativa-quatro-objecoes-respondidas/>.
[13] Rothbard, “Reconstruindo a Economia de Bem-Estar e de Utilidade”. Disponível em: < https://rothbardbrasil.com/reconstruindo-a-economia-de-bem-estar-e-de-utilidade/>.
[14] Idem.
O mais interessante capítulo deste curso até agora.