As raízes da crise imobiliária

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N. do T.: o texto a seguir, conquanto seja um pouco complicado para os mais leigos, mostra os vários mecanismos – antigos e recentes – criados pelo governo americano para fazer intervenções nos mercados bancário e imobiliário, com a intenção de facilitar o acesso da população a imóveis. A conseqüência inevitável foi uma bolha no setor imobiliário e seu conseqüente estouro, levando à atual recessão.

Economistas “de esquerda” estão exultantes de alegria com o estouro da bolha imobiliária, pois ela fornece a eles aquilo que acreditam ser mais um caso de “falha de mercado”. “A maioria dos analistas vê a crise do sub-prime como uma falha de mercado”, declara jubilantemente o economista Robert Gordon na edição de 7 de abril da revista The American Prospect, editada por Robert Kuttner.

Gordon não define o que é um “analista”, e não cita qualquer pesquisa que dê respaldo à sua asserção. Suspeita-se que sua opinião seja baseada em uma pesquisa informal que ele conduziu tendo como entrevistados os seus amigos esquerdistas de idéias afins.

Gordon é um defensor do CRA (Community Reinvestment Act– Decreto de Re-investimento Comunitário), criado pelo governo federal em 1977. De acordo com esse decreto, o Fed (o Banco Central americano) e outros reguladores do sistema financeiro podem pressionar/extorquir os bancos a fazerem empréstimos a mutuários com capacidade creditícia duvidosa – mutuários esses que, de outra forma, os bancos não se arriscariam a conceder-lhes empréstimos. Como defensor de tal decreto, Gordon acredita nas seguintes máximas:

1.    a ganância descontrolada (“falha de mercado”) da parte dos concessores de empréstimos é a causa da crise do subprime;

2.    esses mesmos emprestadores gananciosos ignoram rotineiramente bilhões de dólares em lucros potenciais nas comunidades de baixa renda pois são sistematicamente racistas, estúpidos, ou ambos – por isso, a necessidade do CRA; e

3.      nenhuma agência governamental, principalmente o Fed, teve coisa alguma a ver tanto com a criação como com o estouro da bolha do mercado imobiliário e com a crise do subprime.

(Se você acha que eu estou usando um argumento-espantalho, isto é, deturpando a argumentação de Gordon com o objetivo de ridicularizá-lo para, assim, poder refutá-lo facilmente, leia o artigo de Gordon você mesmo.)

As duas primeiras máximas se contradizem completamente, enquanto a terceira é inequivocamente falsa. As políticas do Fed – que nem sequer são mencionadas por Gordon em um artigo que fala justamente sobre as causas da crise do subprime – é que provocam os ciclos econômicos de crescimento e recessão, como o ciclo que causou a bolha imobiliária e seu conseqüente estouro. Não foi uma “falha de mercado”, mas sim a política do Fed.

Gordon está exasperado pelo fato de alguns “analistas” – entre eles o Professor Stan Liebowitz, da Univerdade de Dallas, e eu – terem argumentado que o estouro da bolha imobiliária foi o resultado previsível de políticas temerárias, a saber: trinta anos de uma política governamental que pressionava os bancos a fazer dezenas de bilhões de dólares em maus empréstimos para pessoas cujas classificações de crédito eram baixas (ou inexistentes). Nem Liebowitz nem eu dissemos que todo empréstimo ruim que foi feito nesses anos é um empréstimo CRA, mas Gordon infere que fizemos isso, em uma tentativa bastante medíocre de se construir um argumento-espantalho.

Gordon cita Janet Yellen, uma burocrata do Fed, como sendo a fonte de uma “estatística matadora” que absolve o governo de qualquer culpa: “Empresas hipotecárias independentes” que não pertencem à CRA fizeram muito mais “empréstimos caros” a mutuários com histórico de crédito ruim do que fizeram os bancos regulados pelo CRA, diz ela. Bem, e daí? Mesmo que Yellen esteja correta, isso não significa que empréstimos regulados pelo CRA não tenham causado dezenas de bilhões de dólares em inadimplências.

Ademais, Yellen e Gordon parecem não entender o que é uma “empresa hipotecária independente”. Muitas dessas empresas são como uma na qual trabalha meu vizinho: elas são apenas intermediários que organizam empréstimos hipotecários para mutuários – inclusive mutuários “subprime” – através de bancos, inclusive bancos regulados pelo CRA. Isso é que é estatística matadora.

Ao ignorar o papel do Fed na criação de toda a bagunça no mercado imobiliário, as afirmações de Gordon de que tudo é resultado de uma “falha de mercado” são totalmente risíveis. Ele também nega peremptoriamente que os empréstimos CRA tenham tido alguma coisa a ver com o motivo de tantos mutuários sem capacidade creditícia terem dado calote, agora que a bolha imobiliária gerada pelo Fed estourou. Essa, também, é uma posição insustentável.

Quando o decreto CRA foi criado durante o governo Carter, esse mesmo governo também financiou com dinheiro de impostos vários “grupos comunitários” que ajudaram o Fed, a Controladoria da Moeda e outras agências reguladoras federais a executar o decreto. De acordo com as regras do CRA, se um banco quiser fazer qualquer mudança em suas operações comerciais – fusão, abertura de uma filial, entrada em uma nova linha de negócios -, ele deve primeiro provar aos reguladores que ele, o banco, já fez uma quantidade “suficiente” de empréstimos aos mutuários favoritos do governo. “Grupos comunitários” (parcialmente) financiados com dinheiro de impostos, como a ACORN (Association of Community Organizations for Reform Now – Associação de Organizações Comunitárias para Reforma Já) podem fazer petições para que os reguladores obriguem os bancos a parar atividades que lhes sejam concorrentes, algumas vezes chegando até mesmo a cancelá-las. Os bancos rotineiramente têm de subornar a ACORN e outros “grupos comunitários” dando-lhes milhões de dólares, bem como prometendo fazer ainda mais empréstimos dúbios.

Com o intuito de tentar diversificar os riscos desses empréstimos, a Federal Home Loan Mortgage Company (“Freddie Mac”)[1] foi a precursora da “securitização” desses empréstimos de alto risco de maneira que eles pudessem ser vendidos em mercados secundários. Essas “securitizações” explodiram durante os anos 90 como resultado dessa regulamentação governamental. Como o presidente do Fed, Ben Bernanke, declarou em um discurso em 30 de março de 2007, intitulado “The Community Reinvestment Act: Its Evolution and New Challenges” (publicado online pelo Fed),

“A securitização de empréstimos baratos para a compra de imóveis se expandiu, bem como o mercado secundário para esses empréstimos, em parte como reflexo de uma lei de 1992 que requeria que empresas apadrinhadas pelo governo, como a Fannie Mae[2] e a Freddie Mac, dedicassem uma grande porcentagem de suas atividades para fazer justamente com que empréstimos para a compra de imóveis se tornassem mais acessíveis. (p.3)”

Em 1994, o decreto Riegle-Neal Interstate Banking and Branching Efficiency afrouxou as barreiras regulatórias para a fusão de bancos. Consequentemente, disse Bernanke, “O escrutínio público sobre fusões e aquisições bancárias se intensificou, e grupos de proteção [como a ACORN] usaram crescentemente o debate público para protestar contra aplicações bancárias baseando-se em dispositivos do CRA”. Em outras palavras, houve uma erupção de mais extorsões legalizadas perpetradas pelo Fed e por suas estimadas “organizações ativistas”, começando em meados da década de 1990. Como resultado, diz Bernanke, “os bancos começaram a dedicar mais recursos aos seus programas CRA”. Uma declaração bem suavizada, pois Bernanke certamente não diria que houve uma legalização da extorsão sobre os bancos.

Também em 1995, o Departamento de Tesouro americano criou o fundo multibilionário “Community Development Financial Institutions – (Instituições Financeiras para o Desenvolvimento Comunitário)” para “fornecer aos bancos acesso [ou seja, dinheiro do contribuinte] a novas oportunidades de financiar o desenvolvimento econômico comunitário” da maneira “estimulada” pelo CRA, disse o presidente do Fed.

O governo também “aperfeiçoou” os requerimentos regulatórios para os empréstimos CRA em 1995, permitindo – e de fato pressionando – que os bancos fizessem tais empréstimos sem que pudessem verificar muitos critérios tradicionais de histórico de crédito, tais como a magnitude do pagamento hipotecário em relação à renda do mutuário, o histórico da poupança e até mesmo verificação de renda! E na realidade, o Fed disse aos bancos que a participação do mutuário em programas de aconselhamento de crédito, muitos dos quais são financiados com fundos federais, poderia ser usada como “prova” da capacidade desse mutuário de baixa renda honrar seus pagamentos hipotecários. Em outras palavras, os reguladores bancários federais exigiram que os bancos fizessem empréstimos ruins baseando-se em padrões de crédito não existentes.

Em seu artigo no New York Post sobre o CRA, em 26 de abril, intitulado “O Verdadeiro Escândalo”, o Professor Liebowitz explica como a Fannie Mae, sob ordens governamentais, selecionou um banco em particular como modelo para todos os outros bancos dos EUA em termos de seu comprometimento aos empréstimos CRA: o Countrywide, o maior do país em termos de empréstimos hipotecários, tinha comprometido $600 bilhões em empréstimos “subprime”, ou empréstimos a pessoas de baixa renda, já em 2003. Hoje, o Countrywide está essencialmente falido e foi absorvido pelo Bank of America.

O mito de que o CRA não seria danoso para os lucros da indústria bancária ficou escondido por anos por causa da bolha imobiliária criada pelo Fed, que permitiu que houvesse fácil refinanciamento de todas as dívidas ruins. “O CRA aumentou os empréstimos e as aquisições imobiliárias nas comunidades mais pobres sem debilitar a lucratividade dos bancos”, proclama orgulhosamente Robert Gordon. Mas agora que a bolha estourou, todos aqueles mutuários inadequados – a quem o governo chama de “subprime”, apesar da classificação de crédito desse grupo ser apenas um pouquinho pior em relação aos mutuários “prime” que têm as melhores classificações de crédito – estão dando calote em suas hipotecas como uma manada descontrolada.

A lucratividade dos bancos foi extremamente “debilitada”, para falar mais suavemente. O estouro da bolha imobiliária gerada pelo Fed é a razão pela qual a fraude que é o CRA não havia sido exposta até hoje, apesar de estar em funcionamento há quase trinta anos.

Dito tudo isso, é possível crer que foi um mercado livre e desregulamentado que provocou a crise imobiliária?

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Notas

[1] Empresa patrocinada pelo governo, mas com capital aberto, tem a função de fazer empréstimos e dar garantias a empréstimos. Ela foi criada em 1970 para expandir o mercado secundário de hipotecas. A Freddie Mac, junto com outras empresas também patrocinadas pelo governo, compra hipotecas no mercado secundário e as vende como títulos lastreados em hipotecas para investidores no mercado aberto. Esse mercado secundário de hipotecas ajuda a repor a oferta de dinheiro a ser emprestado para hipotecas e, desta forma, garante que haja dinheiro para novas compras de casas. [N. do T.]

[2] Federal National Mortgage Association (FNMA): atualmente tem a mesma função de Freddie Mac, só que esta é mais antiga. Foi fundada em 1938, durante o New Deal, para fornecer liquidez ao mercado hipotecário. Durante os 30 anos seguintes, ela teve o monopólio do mercado hipotecário secundário nos EUA. Tornou-se uma corporação privada em 1968, para conter o déficit orçamentário do governo. Apesar de ser nominalmente privada, ela recebe benefícios e privilégios implícitos e explícitos do governo federal. [N. do T.]

Para mais sobre o assunto, gentileza recorrer aos seguintes artigos:

A crise imobiliária e a política monetária do Federal Reserve

Não culpem os emprestadores Subprime!

Expansão do crédito e investimentos improdutivos

Os novos truques do Fed estão criando um desastre

O banco central não pode planejar

A pior recessão dos últimos 25 anos?

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