Aula I – Os precursores da Escola Austríaca e o surgimento da ciência econômica moderna

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Muito embora a Escola Austríaca tenha começado oficialmente em 1871, com a publicação do livro Princípios de Economia Política, de Carl Menger[1], ela encontra suas raízes profundas na Espanha do século XVI, mais precisamente na chamada Escola de Salamanca, fundada pelo jurista erudito Francisco de Vitoria.[2]

O século XVI é conhecido como o Século de Ouro Espanhol, em razão da intensa produção artística e intelectual que se deu na Espanha nesse período. Não por acaso, nessa época a Espanha dominava na conquista e exploração do Novo Mundo recém-descoberto, enriquecendo-se com o ouro e a prata que de lá extraíam. Esse contexto de poderio militar e econômico teria contribuído para a formação do que ficou conhecido como o auge da cultura espanhola.[3] Desse modo, ao contrário do que normalmente se acredita, os princípios teóricos da economia de mercado não nasceram com os calvinistas e protestantes escoceses, mas sim com os dominicanos e jesuítas da Escola de Salamanca.[4]

Vamos conhecer agora alguns dos teóricos da Escola de Salamanca e suas respectivas teses, mostrando como elas representam antecipações dos fundamentos doutrinários da Escola Austríaca moderna.

Diego Covarrubias y Leyva foi bispo e, durante vários anos, ministro do rei Filipe II. Uma de suas contribuições foi a ideia de que o valor das coisas é subjetivo, ou seja, depende de uma avaliação pessoal. Ele observou, por exemplo, que o preço do trigo era maior nas Índias do que na Espanha, e isso porque lá o povo valorizava mais esse bem, muito embora a natureza do trigo fosse a mesma nas duas localidades. Então ele concluiu naturalmente que “o valor de uma coisa não depende da sua natureza objetiva mas antes da estimação subjetiva dos homens, mesmo que tal estimação seja insensata”.[5]

Com base na tese subjetivista do valor proposta por Covarrubias, Luis Saravia de La Calle, outro escolástico da época, forneceu a correta relação que existe entre preços e custos. Dizia ele que os preços não decorriam dos custos, mas sim o contrário: os custos é que se formavam a partir dos preços. Ele comenta: “os que medem o preço justo de uma coisa segundo o trabalho, custos e riscos em que incorre quem produz a mercadoria cometem um grave erro; porque o preço justo nasce da abundância ou falta de mercadorias, de empresários e de moeda, e não dos custos, trabalhos e risco”.[6] A ideia de que o valor de um bem deriva da quantidade de trabalho a ele incorporada foi depois proposta por Adam Smith e David Ricardo e serviu como base para a teoria da exploração marxista, que é sua conclusão lógica e natural.[7] Porque, se todo valor advém do trabalho, então aqueles que trabalham é que criam valor, e aqueles que os contratam apenas se aproveitam disso, pagando-lhes apenas uma parte do valor por eles criado. A outra parte ficaria com o empregador e trata-se do que Karl Marx denominou mais-valia.

Outra contribuição dos escolásticos espanhóis para a moderna teoria econômica foi a ideia de “preferência temporal”, redescoberta pelo jesuíta Martín de Azpilcueta, a partir de um dos discípulos de São Tomás de Aquino, Giles de Lessines, do século XIII.[8] A ideia de preferência temporal traduz a realidade de que, dadas as mesmas condições, um bem presente vale mais do que o mesmo bem no futuro. Mais adiante aprofundaremos este conceito.

Ainda nesse período, Juan de Lugo e Juan de Salas já sabiam que o mercado possuía natureza dinâmica e que, portanto, modelos de equilíbrio não poderiam corresponder à realidade.[9] Juan de Mariana já conhecia os efeitos deletérios da inflação na economia – embora o termo inflação ainda não fosse utilizado na época. Luis de La Calle e Martín de Azpilcueta já criticavam o sistema bancário baseado em reservas fracionárias, para os quais se tratava de um sistema ilegítimo e até pecaminoso.[10] Também Juan de Mariana já tinha ciência da impossibilidade de se organizar a sociedade através da força, por conta do problema da falta de informação, uma vez que os governantes, segundo ele, “não conhecem as pessoas, nem os fatos, pelo menos, com todas as circunstâncias que os envolvem, de que depende uma decisão acertada. É forçoso que se caia em muitos e graves erros, e que isso cause descontentamento às pessoas e as leve a menosprezar um governo tão cego”.[11] Em outras palavras, Juan de Mariana sabia que nem uma única mente, nem nenhum grupo de homens jamais poderiam ter o acúmulo de conhecimento e informação necessários para saber coordenar as ações dos indivíduos dentro de uma sociedade mutante e complexa. Por fim, os salmantinos (salamanquenses) também já consideravam que intervenções do governo na economia representavam violações do Direito Natural.[12]

Essas lições, contudo, apesar de brilhantes, logo deixaram de exercer influência no pensamento econômico, segundo Jesús Huerta de Soto, por causa, de um lado, do sucesso da reforma protestante e da lenda negra contra a Espanha[13] e, de outro, por causa da influência que as ideias de Adam Smith e seus seguidores tiveram na história do pensamento econômico. Coube a Carl Menger, então, redescobrir e impulsionar aqueles princípios descobertos pelos escolásticos espanhóis.[14]

Embora os escolásticos falassem de temas econômicos e estudassem o mercado, naquele período ainda não havia tomado forma o que hoje chamamos de Ciência Econômica. Isto é, a Ciência Econômica não havia ainda se estabelecido como um ramo autônomo do saber. E, apesar de todos atribuírem a Adam Smith o nascimento dessa ciência, após a publicação de A Riqueza das Nações, no século XVIII, o banqueiro e comerciante fraco-irlandês Richard Cantillon já havia publicado o primeiro tratado de economia mais de quatro décadas antes.[15]

Segundo Stanley Jevons, o Essai de Cantillon (Essai Sur La Nature Du Commerce En Général) foi o primeiro tratado de economia, e Charles Gide, historiador da economia, afirma que essa obra foi a primeira a dar um tratamento sistemático à economia política.[16] É Cantillon quem faz jus, portanto, à alcunha de Pai da Economia Moderna.[17]

Antes dele, a economia era tratada dentro de um contexto de estudos morais e políticos, não como ciência particular e autônoma. Foi ele o primeiro a separá-la das outras áreas de conhecimento a que normalmente se subordinava e dar-lhe sua dignidade de que hoje goza, tendo oferecido, em sua obra, uma análise bastante abrangente da economia de mercado e seus elementos.

 

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Notas

[1] Jesús Huerta de Soto, A Escola Austríaca: Mercado e criatividade empresarial, p. 49.

[2] Benigno Núñez Novo, “Conhecendo a Escola de Salamanca e o seu legado”. Disponível em: < https://www.jusbrasil.com.br/artigos/conhecendo-a-escola-de-salamanca-e-o-seu-legado/1238103662>.

[3] Fernanda Paixão Pissurno, “Século de ouro espanhol”. Disponível em: < https://www.infoescola.com/historia/seculo-de-ouro-espanhol/>.

[4] Huerta de Soto, idem, p. 50.

[5] Idem, p. 51.

[6] Idem, p. 51.

[7] Idem, p. 57.

[8] Idem, p. 53.

[9] Idem, pp. 52-53.

[10] Idem, p. 54.

[11] Idem, p. 55.

[12] Idem, p. 55.

[13] Uma lenda negra, segundo Alfredo Alvar, é: “A cuidadosa distorção da história de uma nação, perpetrada por seus inimigos, a fim de melhor combatê-la. E uma distorção tão monstruosa quanto possível, com o objetivo de alcançar um objetivo específico: a desqualificação moral da nação, cuja supremacia deve ser combatida de todas as maneiras possíveis”.

[14] Idem, p. 56.

[15] Idem, p. 57.

[16] Murray N. Rothbard, História do Pensamento Econômico: Uma Perspectiva Austríaca – Antes de Adam Smith, p. 468.

[17] Idem, p. 465.

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