Aula VI – O Dualismo e o Individualismo Metodológicos

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Na filosofia, existe uma antiga e famosa discussão sobre a natureza da realidade que nos oferece a seguinte pergunta: será que a realidade é formada por uma só coisa ou por mais de uma coisa? Isto é, será que a realidade possui uma só substância que tudo compõe ou será que existe mais de uma substância?

Descartes propôs que existiam duas substâncias: uma responsável por formar a matéria física e outra responsável por formar a mente. Ele chegou a essa conclusão porque não conseguia enxergar um vínculo que ligasse essas duas coisas. Não se pode, realmente, reduzir a mente a fenômenos físicos, explicando-se como que de meros átomos formam-se ideias, nem os fenômenos físicos à mente. Ambos parecem coisas de naturezas essencialmente distintas. O universo seria então composto de duas substâncias: a matéria e o espírito. Essa posição é chamada de dualismo ontológico. A ontologia é o estudo do Ser, isto é, da realidade enquanto tal. Ela se opõe à gnosiologia, que é o estudo das condições subjetivas do conhecimento, ou seja, do sujeito enquanto observador da realidade.[1]

A posição dualista, no entanto, não sobrevive a uma análise mais profunda. Se houvesse duas substâncias a formar o universo, irredutíveis uma à outra, como elas iriam interagir entre si? Sabemos por experiência direta que a mente afeta o corpo e vice-versa. Se quiser, faça o teste: pense em uma cena erótica e observe o que acontece no seu corpo. Ele deve sofrer algumas alterações. Agora faça-o no sentido inverso: estando com a mente calma, faça movimentos corporais de ira e observe se os pensamentos também não mudam. Desse modo, para haver essa comunicação entre essas duas substâncias, teria de haver uma ponte entre elas. Essa ponte, evidentemente, não poderia ser igual à primeira substância nem igual à segunda, pois assim o mesmo problema da incomunicabilidade persistiria. Se, porém, for suposto que a ponte é de outra natureza ainda, ao invés de resolver o problema nós o aumentaríamos, criando uma terceira substância. A única forma de solucionar essa questão de vez é considerando que só existe uma única substância primordial, o que nos leva ao monismo ontológico.

Mas essa compreensão não resolve todos os nossos problemas, pois a mente e a matéria continuam sendo, para nós, irredutíveis uma à outra. Nós não conseguimos estudar a matéria usando conceitos mentais, nem muito menos os fenômenos da mente utilizando os termos da Física e da Química. Para o entendimento humano, os fenômenos físicos são de natureza essencialmente distinta da dos fenômenos mentais. Você não consegue explicar o processo de criação de uma lei, por exemplo, em termos físico-naturais. O próprio conceito de lei não é algo que se pode observar no mundo externo. Você pode observar homens numa sala emitindo sons vocais e fazendo gestos, mas isso por si só não nos revelaria que eles estão na verdade votando uma lei. Do mesmo modo, você não poderia explicar satisfatoriamente o processo de formação de uma chuva, por exemplo, usando as categorias da ação. Isso seria tão absurdo quanto dizer que a chuva cai porque decidiu fazê-lo. Esse tipo de explicação de fenômenos naturais é chamado de animismo e é o estágio mais primitivo do conhecimento humano.

É interessante observar que o ser humano começou suas tentativas de explicar os fenômenos naturais através de uma projeção do que ele próprio fazia. Uma vez que o conceito de causalidade ainda não estava claro para o homem, ele considerou que os fenômenos físicos agiam tal como ele agia, isto é, com vontade e propósito. Tudo que o ser humano não conseguia explicar causalmente ele atribuía a uma vontade oculta ou a uma causa mística. À medida que o intelecto humano foi evoluindo, ele começou a perceber que os fenômenos possuíam explicações causais e determinísticas, que nada tinham a ver com uma vontade oculta. Pouco a pouco o âmbito da teleologia foi perdendo espaço para o princípio da causalidade. Porém, no século XIX, o jogo virou totalmente e a teleologia foi excluída do âmbito das ciências. A partir desse ponto, nada mais possuía uma explicação teleológica; tudo era deterministicamente causado, até mesmo as ações humanas.

Essa conclusão radical, entretanto, também não se sustenta, uma vez que é impossível explicar os fenômenos sociais com base somente em considerações naturalísticas. É preciso levar em conta a vontade humana e outros conceitos mentais, como significado, verdade, falsidade, intenção etc. para que esses fenômenos façam algum sentido.

Embora seja possível afirmar, como Mises[2], que todas as ações humanas são mesmo submetidas ao princípio da causalidade, sendo determinadas, ainda assim, como o próprio Mises sustenta[3], nosso conhecimento ainda não chegou ao ponto em que consegue explicar tudo em termos físico-naturais, de modo que precisa recorrer às categorias mentais para explicar os fenômenos da sociedade e do indivíduo. Mises era, ele próprio, um determinista, mas assumia a necessidade de um método específico para o estudo do homem, método esse que seria essencialmente distinto dos métodos aplicados às ciências naturais. Por esse motivo, ele defendia o chamado dualismo metodológico.[4]

Mas, uma vez que não sabemos como fatos exteriores – físicos ou fisiológicos – produzem na mente humana pensamentos e vontades definidas que resultam em atos concretos, temos de enfrentar um insuperável dualismo metodológico.[5] (grifo do autor)

O dualismo metodológico não rejeita nem contradiz o monismo ontológico. Trata-se de uma posição pragmática e ao mesmo tempo racional, uma vez que a mente humana não consegue enxergar a realidade a não ser por intermédio dessas duas categorias diferentes, a saber: a causalidade e a teleologia. O indivíduo humano experiencia tanto uma realidade interna quanto uma externa e não pode evitá-lo. Embora saibamos, pela Razão, que só uma substância existe, nossa mente não consegue enxergar senão duas coisas que são uma irredutível à outra. Daí a nossa ciência, para ser completa, ter de adotar dois métodos distintos: um para as ciências naturais e um para as ciências sociais, sem prejuízo das possíveis interseções entre essas duas áreas.

Kant explicaria essa dicotomia de outra maneira. Para Kant, a realidade externa, pautada no princípio da causalidade, faz parte do que ele chama de fenômeno, o mundo enquanto observado por nossa consciência; e a realidade interna, a qual não estaria submetida à causalidade, mas à liberdade, faz parte do que ele chama de númeno. O númeno para Kant é aquele aspecto da realidade que não está submetido às nossas categorias mentais, ele não é condicionado por elas. Assim, o ser humano seria ao mesmo tempo fenômeno e númeno, isto é, estaria ao mesmo tempo submetido à causalidade e livre dela, a depender do ponto de vista.

Independentemente dessas considerações metafísicas, a verdade é que, como já foi explicado, nós não conseguimos explicar fenômenos sociais em termos de fenômenos físicos, o que nos conduz à necessidade de adotar o dualismo metodológico.

 

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A Escola Austríaca também adota o chamado individualismo metodológico. Ora, se ações se originam a partir da mente, isso significa que apenas indivíduos agem, pois apenas indivíduos possuem mentes. Tal reconhecimento, por sua vez, nos leva a eliminar dos nossos estudos econômicos a referência a metáforas coletivas usadas como se fossem entidades reais. Por exemplo, ao explicarmos o fenômeno da recessão econômica, não podemos simplesmente dizer que foi “o capitalismo” que lhe deu causa, uma vez que o capitalismo não é um ser agente, é apenas uma abstração, e abstrações não agem. O que aconteceu foi que indivíduos determinados realizaram ações determinadas as quais tiveram como resultado a recessão. Não foram, a rigor, “os italianos” que escreveram A Divina Comédia, e sim Dante Alighieri, um indivíduo determinado. Não foi “a Espanha” que descobriu a América, e sim Cristóvão Colombo, juntamente com seus colaboradores, também indivíduos especificamente nomináveis. Não é “a sociedade”, rigorosamente falando, que elege um presidente, e sim alguns dos indivíduos que a compõem, cada um agindo conforme o próprio interesse.

Considerar que um coletivo é um ser agente real é transformar uma abstração em uma realidade concreta, quando a única realidade concreta observável é o indivíduo. O que você vê por aí não são coletivos, mas indivíduos coletivamente organizados. Quando indivíduos compartilham de um mesmo propósito, eles tendem a se reunir para atingi-lo com mais facilidade. Isso não significa que quem está agindo é o grupo. Dizer que o grupo age é apenas uma metáfora simplificativa. É mais fácil dizer que o grupo age do que dizer que os indivíduos A, B, C, D, E etc., organizados de tal e tal modo, agem. Quando o governo cria uma lei, não foi a entidade abstrata “governo” que criou a lei, e sim um conjunto de indivíduos minimamente organizados, dos quais alguns muitas vezes nem queriam que a lei fosse criada e até lutaram contra ela. Desse modo, quando hipostasiamos entidades coletivas, considerando-as objetos reais, estamos simplificando demasiadamente a realidade e às vezes até cometendo injustiças contra indivíduos que agiram contra o resultado que o seu próprio grupo produziu.

Além disso, para deixar claro que grupos não são coisas reais, basta lembrar que um mesmo indivíduo pode ser considerado membro de diversos grupos distintos e até antagônicos. Um brasileiro pode torcer contra a Seleção Brasileira de Futebol, um autor best-seller pode querer o fim das leis de direitos autorais e um operário da indústria pode lutar contra a existência da Justiça do Trabalho, cada qual com seus motivos particulares.

Não existe o interesse comum; só existem interesses individuais. Pessoas diferentes se reúnem em um mesmo grupo por motivos diferentes e muitas vezes até com propósitos diferentes. Cada pessoa possui motivações e ambições específicas, ainda que se ajuntem provisoriamente em um grupo para atingir determinado fim.

Portanto, fica evidente que a forma mais realista de estudar os fenômenos sociais em geral e a economia de mercado em particular é considerando que todos os acontecimentos da história humana são redutíveis a ações individuais. É por essa razão que a Escola Austríaca adota o individualismo metodológico como um dos seus fundamentos.

 

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Notas

[1] Miguel Reale, Filosofia do Direito, 20. ed., Saraiva, pp. 29-31.

[2] Mises, Teoria e História: Uma Interpretação da Evolução Social e Econômica, pp. 67-68.

[3] Mises, Ação Humana, p. 42.

[4] Idem, p. 42.

[5] Idem, p. 42.

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