Capitalismo bolchevique

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     Lenin discursa para trabalhadores da fábrica Putilov, em São Petersburgo, 1917. Pintura de Isaak Brodsky

[Mencken publicou este artigo em 1935, época em que a maior parte da imprensa exaltava a experiência socialista na Rússia]

Os impostores e charlatões que se servem atualmente dos cochos públicos de Washington parecem ter concordado numa coisa, e numa coisa só: na ideia de que o sistema capitalista está nas últimas e que, em pouco tempo, dará o lugar a algo mais nobre e científico. Não há, naturalmente, um pingo de verdade nisto. Ela colide, ponto por ponto, com os fatos conhecidos. Não há a menor razão para se acreditar que o capitalismo esteja em colapso ou que qualquer alternativa a ser proposta pelos mágicos em voga seja melhor. O máximo que se pode dizer é que o sistema capitalista está sofrendo transformações, algumas das quais penosas. Mas estas mudanças servirão para reforçá-lo, embora pareçam enfraquecê-lo.

Devemos a ele quase tudo que atende hoje pelo nome de civilização. O extraordinário progresso do mundo desde a Idade Média não se deveu ao mero dispêndio de energia humana, nem mesmo aos voos do gênio humano, porque os homens vêm dano duro desde os tempos mais remotos e alguns deles tinham intelectos insuperáveis. Não, o progresso se deveu à acumulação de capital. Esta acumulação permitiu que o trabalho se organizasse economicamente e em larga escala, o que aumentou enormemente a sua produtividade. Forneceu o maquinário que gradualmente diminuiu o trabalho escravo e libertou o espírito do trabalhador, o qual, até então, mal se distinguia do de uma mula. Mais que tudo, tornou possível uma preparação melhor e mais longa pra o trabalho, de forma a que as artes e ofícios alargassem o seu raio de ação e alcance, criando com isto milhões de novas e complexas habilidades.

Devemos ao capital o fato de que a profissão médica, por exemplo, está agora realmente a serviço da humanidade, quando, até há pouco, só era útil para curandeiros que a praticavam. Foi preciso capital acumulado para permitir o longo treinamento que a medicina começou a exigir, sair da sordidez em que chafurdava e transformar-se numa digna ciência e arte – dinheiro para manter o jovem apenas estudando e o professor para ensiná-lo, e mais dinheiro ainda para pagar pelas instalações e instrumentos de que necessitavam. Quase todo este dinheiro saiu dos bolsos capitalistas. Mas, mesmo que tenha vindo do tesouro público, não deixou de ser o capital – ou seja, sempre foi parte do lucro acumulado. Nunca poderia ter surgido dos ganhos de uma sociedade não capitalista com uma mão na frente e outra atrás.

Quando os bolcheviques, uma chusma de besta quase comparável aos homens que pensam por nós, tomaram o controle dos negócios na Rússia, tiveram que jogar no lixo imediatamente uma das regras cardeais do seu credo ostensivo. Segundo esta regra, todos os males do mundo se deviam ao fato de que, sob o capitalismo, os trabalhadores tinham perdido a propriedade dos seus meios de produção. Todas as autoridades clássicas do socialismo, de Marx e Engels para baixo, enfatizaram esta perda e, na Utopia que eles vislumbravam, o trabalhador receberia estes meios de volta, iria se tornar um produtor independente, trabalhar apenas para si e não dar nada de sua produção para um capitalista cretino. Mas, no momentos em que tomaram o poder, os bolcheviques devolveram tudo isto para a prateleira e, desde então, não se tocou mais no assunto, exceto por uns simplórios americanos. Ansiosa por administrar a Rússia com seu quintal particular, aquela equipe esperta de chicanistas viu instantaneamente que sua principal função seria a de acumular capital, para que metade de suas vítimas não morresse de fome. O velho capital tinha sido devorado pela guerra. Uma maneira fácil de consegui-lo seria tomar emprestado de outros países, mas, como ninguém abria a mão, os bolcheviques tiverem de acumular o seu próprio capital fresco.

O que conseguiram pondo os trabalhadores russos para suar de uma maneira jamais vista antes na terra ou, pelo menos, nos tempos modernos. Os trabalhadores resistiram, especialmente os camponeses, e, quando em consequência aconteceram as duas grandes fomes, o chapéu teve de ser passado entre os países capitalistas para alimentar os famintos. Depois, chacinando os camponeses rebeldes à coletivização e organizando os desempregados num gigantesco exército, os bolcheviques conseguiram dominar todos os trabalhadores russos. Desde então, esses pobres diabos têm trabalhado como prisioneiros forçados, com mais ou menos os mesmos salários. Todo o produto do seu trabalho, pouco acima do nível de subsistência necessário aos ratos, vai para os cofres dos bolcheviques. Com isso, estes acumularam uma bela soma de capital novo, que usam não apenas para construir fábricas cada vez maiores – infestadas de operários que nada possuem, exceto suas mãos –, como também para construir luxuosas mansões para si próprios, inclusive uma embaixada em Washington, tão extravagante que faz inveja a todos os banqueiros da cidade.

Assim, um dos princípios fundamentais do marxismo foi reduzido ao absurdo na casa dos seus supostos discípulos. Podem não passar de uns patifes, e sem dúvida o são, mas têm também uma considerável esperteza para perceber que nada que se possa chamar de uma civilização moderna pode prescindir do capital. E, por capital, quero dizer precisamente o mesmo que eles quando o atacam para consumo externo – ou seja, o lucro acumulado, não nos bolsos dos trabalhadores, mas nos das pessoas que lhes fornecem os meios de trabalho; não sob o controle daqueles que o produzem, mas sob o controle daqueles que o dominam. Os políticos desprezíveis, os pedagogos pueris e os advogados desocupados que não param de cacarejar em Washington desde 1933 (começo do New Deal (N. T.)) fariam a mesma coisa se pudessem. Alguns deles talvez sejam realmente estúpidos para acreditar que o mundo poderia continuar sem o capitalismo, mas outros devem enxergar o suficiente para ver o que se passou na Rússia. Mas, sejam eles simples idiotas ou esperto trapaceiros, todos se julgam com autoridade para falar sobre a decadência do capitalismo, e mesmo aqueles que alegam estar tentando salvá-lo referem-se a ele como se estivesse nas últimas. Para silenciar o seu oco blábláblá, basta dar-lhes um emprego no governo.

Não há sentido na coisa. O mundo moderno pode dispensar o capital acumulado quanto pode dispensar a polícia ou as ruas pavimentadas. A maior transformação imaginável foi a que aconteceu na Rússia – a transferência do capital, que passou dos proprietários particulares para os políticos profissionais. Se você pensa que isto faria algum bem ao indivíduo, basta perguntar a qualquer carteiro americano. Ele trabalha para um supercapitalista chamado Tio Sam – e terá prazer em contar-lhe o que tem de suar e dar duro para cada mísero níquel que ganha.

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