CAPÍTULO 1- O PODER LOCAL E OS DESAFIOS DA SUA IMPLEMENTAÇÃO NO CONTEXTO ANGOLANO

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O processo de construção ou organização social é um mecanismo de aprimoramento contínuo, durante o qual os homens procuram ajustar-se aos desafios do seu meio e /ou contexto. No longo processo de aprimoramento da organização social, o homem descobriu que, para a melhoria contínua da sua condição e auto-realização, precisa de construir relacionamentos baseados na troca recíproca ou contratual. Foi desta forma que ele construiu a sua civilização. Dependendo dos factores naturais ou geográficos e, na medida em que os homens, espalhados por todo o globo, interpretam e valorizam esse tipo de relacionamentos, construirão suas próprias civilizações diferenciadas. Portanto, baseando-se em relacionamentos contratuais ou económicos e na medida em que esses relacionamentos forem alargados, o homem não só melhora a sua condição humana, como constrói a sua civilização ideal, independentemente dos condicionalismos ligados aos recursos naturais.

Entretanto, esse processo de construção de civilizações soberanas exige a condição de uma liberdade plena do homem, para que, na busca ou procura pela sua auto-realização, não belisque ou coarte as realizações de seus semelhantes. Aqui, a liberdade individual plena e o respeito à propriedade privada dos seus vizinhos são o fundamento de toda a ordem social pacífica e próspera. E, na busca do desiderato da paz, o homem foi mais uma vez obrigado a reinventar-se e construir um sistema social de regras para garantir a plena liberdade e o respeito ao próximo, enquanto fundamentos de toda e qualquer ordem social justa, pacífica e próspera. Surgem, então, as leis e o direito, que, juntando-se à plena liberdade individual, à extensão das trocas interpessoais e ao respeito à propriedade privada, formam todo arcabouço de uma civilização soberana. Como dizia Mises “o direito e a lei são o conjunto de regras que determinam a órbita na qual os indivíduos têm liberdade de ação.”

Infelizmente, ao longo da história, a par do relacionamento contratual, um outro tipo de relacionamento tem sido observado com maior abrangência e frequência. Referimo-nos aqui ao tipo de relacionamento hegemónico ou político, baseado em trocas, cujas regras são unilateralmente determinadas, e, por isso, marcadas por ganhos não só desiguais ou assimétricos, como contrários à vontade ou interesse de uma das partes, beneficiando unicamente o lado hegemónico ou mais poderoso, que procura viver às custas dos outros homens, estes compondo o lado dominado ou governado. Esse tipo de relacionamento é bastante comum na nossa era e constitui a base de todo o movimento político vigente. Retomando os argumentos de Mises:

O que diferencia o vínculo hegemônico do vínculo contratual é o alcance das escolhas individuais na determinação do curso dos acontecimentos. Quando um homem decide submeter-se a um sistema hegemônico, torna-se, no âmbito das atividades deste sistema e pelo tempo de sua submissão, um peão manipulado pelas ações daquele que o dirige. Num corpo social hegemônico, e na medida em que dirige a conduta dos seus subordinados, só o director age. Os tutelados só agem ao escolher a subordinação. Uma vez escolhida a subordinação, já não agem por si mesmos: são comandados… Ao escolher a submissão num corpo hegemônico, um homem não dá nem recebe nada que seja definido. Integra-se num sistema em que tem de prestar serviços indeterminados e receberá aquilo que o diretor considerar como sendo o seu quinhão. Está à mercê do director. Apenas o diretor tem liberdade para escolher.”[1]

Sob o ambiente político hegemónico comum nos dias de hoje, para além de se coartar a liberdade individual, necessária ao progresso humano – já que só um director ou um grupo age em nome de  todos homens, diminuindo-se assim as fronteiras de produção – também se desenvolve um modo de vida parasitário, por meio do qual a classe política ou governante se apropria, unilateralmente e de forma violenta, de todas as propriedades dos seus governados e daquilo que é por eles produzido.  Neste sentido, longe de ser um instrumento ao serviço de uma ordem social justa e pacífica, a política moderna funciona como elemento essencial do empobrecimento e dos conflitos sociais. Quer isto dizer que, para além de estruturar a sociedade moderna entre classe exploradora e explorada, perpetuando conflitos permanentes, os sistemas políticos modernos, sustentados na expropriação de terras e monopólios de recursos naturais, da tributação e da inflação, promovem o empobrecimento gradual das sociedades, que, juntando-se outros factores, provocam o caos e degeneração social.

Acontece que, por algum acontecimento histórico, o mundo moderno é governado hoje por esse único sistema político degradante, com origem no Ocidente, o que coloca enormes desafios aos países e nações. Como consequência disso, as relações contratuais pacíficas que formaram a base da civilização moderna têm cedido, há vários anos e de forma intensiva, a relacionamentos políticos hegemónicos, o que coloca desafios enormes às sociedades modernas no sentido de retorno à velha organização política baseada na justiça e na paz. E, de facto, têm surgido vários movimentos, sobretudo académicos, que, no mundo inteiro, se têm batido para o retorno à velha política e à promoção de uma sociedade mais justa. Por isso mesmo, tem surgido, também no espaço público angolano, cada vez mais um questionamento sobre o modelo político vigente, sendo que, por influência da constituição, o debate tem sido enviesado para um sistema político baseado no poder local, este confundido com o sistema político-administrativo das autarquias locais.

Conferências e retiros académicos, até mesmo livros, têm sido organizados e escritos, abordando a temática do poder local. A razão fundamental da aparição pública desse tema tem a ver com o imperativo constitucional de implementação das autarquias locais, confundindo-as com o poder local. Geralmente, incorre-se em duas confusões na abordagem do poder local. Essa confusão reside na conceitualização do que é o poder local, por um lado, e, por outro, do fundamento ou necessidade de um verdadeiro poder local.

Bem, para compreendermos melhor sobre o universo do poder local e o seu fundamento, nada melhor que recorrer à história enquanto um instrumento ilustrativo das várias civilizações actuais e antigas e como elas se formaram até ao estado actual.

 

  1. 1 – SOCIEDADES PRÉ-COLONIAIS

 

Através do legado histórico (escrito e oral), é possível saber-se que o território hoje chamado Angola era habitado por vários povos, devidamente organizados e com instituições políticas, jurídicas e sociais adequadas ao seu tempo e meio. Essas instituições, construídas de forma livre e espontânea, espelham, de certa forma, o sentido e o alcance da sua civilização. A ideia colonial de ter sido encontrada uma Angola com povos sem civilização, vagando isoladamente ou lutando uns contra os outros, é desmentida pela própria narração histórica à altura da chegada dos portugueses. Como nos diz Mises, “A praxeologia ao estudar o indivíduo isolado… não assegura que tais seres humanos solitários e autárquicos tenham algum dia existido, nem que o estágio social da história do homem tenha sido precedido por uma era de indivíduos independentes, vagando como animais em busca de comida…O homem apareceu no cenário dos eventos terrestres como um ser social. O homem isolado, insocial, é uma construção fictícia.”

Portanto, pode aferir-se do excerto acima que, onde quer que tenha existido algum agrupamento humano, houve sim alguma dose de senso de formação da sociedade. A sociedade implica a acção dos homens em cooperação, na medida em que tais homens percebam a vantagem dessa cooperação. A cooperação é traço característico de todos os homens, sendo as diferenças civilizacionais uma mera adaptação de cada sociedade ao seu meio e tempo, como foi dito acima.

Olhando para a nossa história, a suas literaturas, oral e escrita comprovam esses factos. A nossa história revela a existência de um sistema político-administrativo com regiões ou fronteiras devidamente delimitadas, criadas de forma espontânea ao longo da história. Essas regiões administrativas eram ou são chamadas de Ombalas, e tinham como autoridade máxima o Soma, em língua Umbundo, tendo-se aportuguesado para Soba. Na verdade, a Ombala era historicamente um território habitado por famílias extensivas, sendo o Soba uma extensão do poder paternal. Esses territórios dissolviam-se ou se separavam à medida que a densidade populacional aumentava e se perdiam os laços familiares. As sociedades antigas eram estruturadas por um conjunto de aldeias ou quimbos, todas elas subordinadas a uma única autoridade do “Soma”. Por exemplo, à altura da entrada do colonialismo, o grupo étnico Nhaneca-Humbi, que habita a parte sul de Angola, decompunha-se em Nhanecas e Humbis. Os Nhanecas subdividiam-se em Mwilas e Ngambues, enquanto os Humbis se subdividiam em: Donguenas, Hingas, Cuâncuas, Handas, Quilengues-Humbis e Quilengues-Musós. O grupo Mwila que, nos dias de hoje, habita os municípios do Lubango, Humpata, Chibia e Gambos, era composto por quatro Ombalas, nomeadamente: da Huíla, Jaú, Quihita e Gambos. Já a etnia dos Humbes que, nos dias de hoje, dentro da província da Huíla, compreende os municípios de Quilengues, Cacula, Quipungo, Matala, partes de Chicomba e Caluquembe, estava subdividida também em quatro Ombalas, nomeadamente: a de Mutano ou Humbe, Camba, Quiteve e Mulondo. O município de Quilengues era também composto por duas Ombalas.[2]

Como se pode aferir, essa região que compreende a parte sul e sudoeste da Província da Huíla era formada por um conjunto de governos soberanos, embora pertencessem ao mesmo grupo étnico. Mesmo nas regiões onde havia a distinção entre Ombala grande e pequenas, a Ombala grande era regida por um régulo principal, considerado como chefe de toda a tribo. A função do régulo principal era limitada à função honorífica e não jurisdicional. Era o caso, por exemplo, de algumas Ombalas das regiões de Quipungo e Quilengues.

De salientar que nessas comunidades tradicionais, a função do Soma ou Soba era a de autoridade espiritual e governativa. O poder espiritual resultava da crença de que repousa no Soma as almas dos ancestrais tribais e, por isso, aquele servia como um poder orientador e tutelar de toda a tribo. Em certas ocasiões de fome, guerras ou falta de chuvas, os sobas eram chamados – e até hoje é assim que se procede – para, por meio de ritos, fazer-se a intercessão junto dos ancestrais para a resolução dos fenómenos que afectavam a Ombala. Ainda em 2020, durante o período da seca que afectou o Sul de Angola, um grupo de sobas, alguns provenientes do município do Quipungo, realizaram durante alguns dias na Ombala de Katonga, localizada hoje no município de Chicomba, uma série de ritos, intercedendo junto dos ancestrais para que houvesse chuva. À luz da crença dos povos que habitam essa região, acredita-se que é nessa Ombala onde reside o poder de chuva.

Já no campo do poder governativo, o Soba possuía dois poderes: o executivo e o judicial. No que tange ao poder executivo, o Soba era rodeado de um conjunto de autoridades que o ajudavam nas várias tarefas, devendo essas autoridades estar permanentemente ao dispor do Soba. Essas autoridades tinham diversas funções, como as relacionadas com a condução da guerra, da comunicação ou o pombo-correio e outras de extrema-relevância. No campo jurídico, para além de uma autoridade específica, o Soba era auxiliado também por um grupo de anciãos ou seculos, que serviam como conselheiros da corte e tinham também a função de manter a ordem, o cumprimento das leis, orientações emanadas pelo Soba e dirimir pleitos e conflitos de pequena importância. Por essa função dos seculos e Somas, as partes eram obrigadas a uma leve contribuição. Os julgamentos eram feitos na base dos costumes existentes na aldeia ou Ombala, realizados por seculos (ministros) ou Somas da aldeia. Os principais litígios estavam relacionados com heranças e homicídios, estes últimos eram pagos com a escravidão, a própria vida, ou o pagamento de bois. O adultério, o estupro, a calúnia e o furto eram pagos pela restituição na exacta medida da coisa roubada, ou em bois ou cabritos. Não havia, dentro das Ombalas, o monopólio da jurisdição, sendo que as partes tinham a total liberdade de levar para qualquer outro ancião a resolução de qualquer conflito. Aliás, em cada uma dessas regiões, em caso de morte, o processo sucessório era resolvido por anciãos da família, que eram designados no momento.

Relativamente à actual província do Cunene, o Padre Carl Esterman narra sobre o agregado étnico ambós ou ovambo, que compreende ao todo doze tribos: Donga, Cuâmbi-Gandjela, Cualuthi, Balântu, Calucatsi, Eunda, Dombondola, Cuamátantes, Cuamátui, Cuanhama, Evale e Cafima. Numericamente, as mais importantes são: Cuanhama, Donga e Cuâmbi. Entre estas tribos existia uma terra de ninguém, de alguns quilómetros, que simbolizava a fronteira entre essas tribos, e onde era proibida a construção de habitações. Com a ocupação, ficaram para Angola somente os grupos étnicos: Dombondola, Cuamátui, Cuanhama, Evale e Cafima. As regiões correspondentes a esses grupos eram compostas por várias Ombalas, com governos de vários sobas soberanos que, de modo geral, era a forma de organização política de todo território angolano.

Ainda assim, como em qualquer sociedade em permanente processo de aprendizagem e aprimoramento, nem tudo era um pântano de rosas. Havia lutas que as tribos e hordas primitivas travavam entre si pelos pontos de água limpa, pelos locais de caça e pesca, pelo gado e pastagens. Havia, também, em pequena escala, a escravatura natural ou social de alguns criminosos, praticada pelas suas vítimas e também o tráfico de escravos antissocial, geralmente praticado de tio para sobrinhos. De uma forma geral, a estrutura social era marcada por muita descentralização, com um governo natural ou consentido a governar cada Ombala independente, baseando-se nas regras do costume e, em alguns casos, no direito de propriedade privada. E mesmo entre comunidades do mesmo grupo etnolinguístico, existiam algumas diferenças culturais ou até mesmo linguísticas. Entre os Nhanekas-Humbe, por exemplo, havia os Nhanekas e os Humbes, e, dentro desses, também havia algumas variantes.

Entre o grupo étnico ovimbundo, o processo é o mesmo. Pela extensão geográfica desse grupo étnico, existe entre as várias tribos desse grupo também diferenças culturais e linguísticas. Essa constatação faz com que não seja possível forjar uma única nação entre o mesmo grupo étnico. Então, a Ombala é a unidade administrativa mais perfeita para se determinar uma nação. Por ser natural e espontânea, um mecanismo aberto que corresponde à evolução geográfica e linguística de cada grupo étnico, a Ombala responde a todos os desafios políticos de um governo local baseado na cooperação “contratual” e associação e, assim, contribui para a pacificação social. É, portanto, uma unidade político-administrativa perfeita que, com algumas variações, forma o modelo político que vigorou em todas nações que formam hoje o território que chamamos de Angola. No geral, essas formas de governo, para além de promoverem a paz social, também garantem a liberdade individual e são, por excelência, o exemplo acabado de um governo local.

Infelizmente, esse processo de cooperação contratual viria, ao longo da história, a ser substituído por um outro, diametralmente oposto e baseado nas relações hegemónicas ou políticas, com consequências socialmente degenerativas e corrosivas.

 

  1. 2 – PERÍODO COLONIAL

 

Historicamente, a colonização do vasto território hoje chamado Angola, bem como a perversão de todo o sistema político pré-colonial a que se fez referência, começou nos finais do século XV, com a chegada de Diogo Cão, nas margens do rio Zaire, uma região pertencente ao então Reino do Congo. No período da chegada portuguesa em Angola, Portugal passava por um processo de unificação política, por meio da Dinastia de Avis (1385-1582), que estimulou a estrutura política-administrativa centralizada e a intensificação do sistema de arrecadação de impostos, juntando o facto da existência de uma cultura escravista secular que remonta aos tempos pré-românicos. Uma vez aportados no Reino do Congo, os portugueses trouxeram consigo essa experiência política centralizadora, tributária e escravista.

Daí, a ocupação e domínio foi-se alastrando até à formação das fronteiras que constituem a actual República de Angola. Para além dessa cultura política, os portugueses também traziam experiências de relações com vários povos africanos com os quais interagiram no processo da Exploração Atlântica. Segundo Mário João Lázaro Vicente, foi essa experiência da exploração da costa africana, que permitiu aos portugueses encontrarem diferentes soluções administrativas para cada um dos espaços por eles conquistados. E sobre as formas de administração dos territórios conquistados, o autor cita os diferentes mecanismos que deram forma ao domínio imperial sobre os territórios conquistados, que consistiam em modelos mais tradicionais e formais, como os municípios e as capitanias-donatárias e os modelos menos institucionalizados, como são as fortalezas/feitorias, os contratos, os protectorados, os tratados de paz, vassalagem e os vínculos políticos informais.

É importante lembrar que, no Reino do Congo, as relações entre mercadores e nativos eram inicialmente comerciais, voltadas essencialmente no comércio de escravos. Entretanto, pouco a pouco, foi surgindo uma forma de dominação que consistia na conversão das elites locais ao cristianismo. A partir daí, as relações com esse reino africano, inicialmente amistosas, começam a degradar-se, não só por causa da intensificação do comércio de escravizados, mas também porque algumas elites dentro desse reino recusaram-se à conversão ao cristianismo. Outro factor que contribuiu também para a corrosão das relações, foram as frequentes guerras entre as elites para a assumpção do trono do sobado. Mbemba Nzinga, o D. Afonso I, era o primogénito do seu pai, no entanto, não era um muxicongo. Pelos costumes do Congo, ele não seria o herdeiro do trono. Mas, após a morte do seu pai, ele saiu da “Província” que administrava com o apoio dos portugueses, em direcção a M’banza Congo, a capital do Congo. Lá, ele assassinou o seu irmão que era herdeiro do trono e assumiu o trono do reino”.[3]

Aos poucos, os portugueses foram avassalando os reinos locais com ajuda militar em troca de tráfico de escravizados, até que efectivamente as relações de domínio se consolidaram. Assim, partindo de simples vínculos políticos informais, o Reino do Congo foi dominado pelos portugueses.

Movidos ainda pelo desejo do cada vez mais crescente comércio de escravos, os portugueses dirigiram-se ao Reino do N’dongo, um reino vizinho do Congo. Diferente do Congo, com experiências acumuladas de outros pontos por onde passaram, lá eles estabeleceram um outro modelo político-administrativo, que consistia em capitanias-donatárias.

“As donatárias, inspiradas no senhorialismo, doadas primeiro ao Infante D. Henrique, confirmadas aos seus sucessores e, mais tarde, a outros membros da nobreza próximos da casa real, garantem a manutenção do controlo político destes territórios nas mãos de pessoas próximas do rei. Estes donatários exercem o seu poder na vez do rei, com excepção das prerrogativas nunca por si abdicadas. O exercício do poder do donatário revestiu-se de duas formas: por si próprio (capitão-donatário) ou exercido por um capitão por si nomeado (capitão o donatário).[4]

A estratégia adoptada pelos portugueses para aumentar o tráfico de escravos e converterem ao cristianismo mais “gentios” africanos foi a de conquistar o reino do N’dongo através do controlo da bacia do Rio Kwanza. Assim, em carta de doação de 1571, a coroa portuguesa orienta Paulo Dias de Novais a conquistar o reino do Ndongo, enquanto instituía a apropriação de terras dos reinos conquistados, inaugurando uma nova política colonial de posse territorial. Como relata Mário João Lázaro Vicente, a carta de doação previa a concessão hereditária a Paulo Dias de Novais de 35 léguas de latitude na costa (cerca de 175 quilómetros de terras a sul do rio kwanza) e as terras situadas entre os rios Dande e Kwanza seriam entregues a Novais para administrá-las, mas a serem entregues à Coroa após a sua morte. O documento previa também a regulação do tráfico de escravizados, atribuindo a Dias de Novais o direito de exportar para Portugal, sem qualquer encargo, 48 escravos por ano e, ainda, exportar a quantidade que quisesse, pagando metade dos tributos à Coroa portuguesa.

No esforço da colonização, Paulo Dias de Novais empreendeu um conjunto de acções militares tendentes a conquista de mais territórios, sendo que os partícipes portugueses dessas guerras eram recompensados com terras. Esse processo envolvia, não só a doação de territórios, como também os habitantes dos territórios conquistados. Essas doações eram um incentivo às guerras de conquistas e da escravatura, muitas vezes movidas por motivos pessoais, o que, ao longo do tempo, gerou descontentamento dos sobas, porque defendiam eles um sistema de escravatura mais justo. Esse descontentamento desencadeou o incumprimento no pagamento de tributos dos sobas, o encerramento das feiras dos escravos e a fuga das populações do N’dongo.

Todo esse cenário político constituía preocupação da Coroa Portuguesa, tendo forçado a uma mudança da actuação política do colonialismo português para evitar o colapso do comércio de escravos. Assim, a partir de 1607, dá-se primazia a uma política de avassalamento dos sobas, que consistia no controlo e fiscalização directa dos sobas por parte da Coroa Portuguesa, em que os escravos passam a ser adquiridos por via da imposição de tributos aos chefes locais.[5]

A partir desta data, assistiremos a mudanças políticas no que diz respeito à governação de Angola, tanto no controlo dos sobas, como em matéria do comércio de escravos, que será alvo de uma maior fiscalização por parte da Coroa. Assim, além do comércio e das guerras, os escravos passam a ser adquiridos por via da imposição de tributos aos chefes locais. Com a abolição das donatárias por parte da Coroa Portuguesa, dá-se a centralização do domínio político dos sobas, passando estes a responder directamente à Coroa por meio dos acordos de vassalagem e passam igualmente a ser directamente tributados a partir da Fazenda Real.  O avassalamento dos sobas marcou desde então o processo de colonização do Reino do N’dongo, culminando na escolha dos monarcas pelos portugueses em 1671.

Conclui-se assim que, para o Reino do N’dongo, as donatárias foram o primeiro sistema político-administrativo de colonização e os acordos de vassalagem foram a estratégia usada para se estabelecer relações com os sobas e consolidar o processo da colonização.

A partir da penetração nos reinos do Congo e N’dongo, os portugueses encontraram o caminho para se estabelecerem no todo vasto território de Angola. Na costa, os portugueses conquistaram Benguela, Moçâmedes e, posteriormente, se instalaram no interior, conquistando outros reinos. Foi um processo longo que se consolidou ao longo dos 500 anos.

Assim, o período colonial marcou a decadência, perversão e a subordinação dos poderes locais, dando lugar a um novo sistema político baseado no avassalamento e centralização política. Esse período foi igualmente marcado pela degradação moral, aculturação forçada e empobrecimento gradual, causados por uma cultura política e económica totalmente adversa à civilização local.

 

  1. 3 – PERÍODO DA INDEPENDÊNCIA E POLITIZAÇÃO DO TERRITÓRIO ANGOLANO

 

Como dissemos anteriormente, no geral, o período colonial foi marcado por acontecimentos de muita turbulência social, de guerras intermináveis, desestruturação do tecido familiar, perda de identidade cultural, etc. No geral, os povos que habitam o actual território de Angola sempre se opuseram ao tenebroso processo colonial, tendo as suas lutas desembocado na Independência Nacional, a 11 de Novembro de 1975.

Dissemos, no começo deste texto, que, quando os portugueses aportaram as nossas fronteiras, trouxeram consigo uma cultura política de escravidão e centralização política que viria transformar de forma trágica o modo de vida do povo nativo. Alcançada a “independência”, a expectativa era a de que chegara o momento de expurgarmos a herança colonial tão lúgubre da nossa história e retomarmos aquela velha política pré-colonial; que, então, voltaríamos ao conjunto de governos soberanos com os Sobas à cabeça de cada reino, representando a extensão do poder paternal; que não mais haveria o sistema político de avassalamento e dependência, que voltaríamos a julgamentos baseados no costume, às nossas tradições e assim encontraríamos a nossa própria forma de ser e estar no mundo; que voltaríamos às formas tradicionais de organização político-económica das aldeias, compostas por um conjunto de propriedades individuais, respeito à propriedade privada e laços fortes de solidariedade familiar e de contiguidade. Só que não.

Na verdade, o sistema colonial de centralização política e avassalamento continuaria. Dois momentos essenciais formaram o contexto da luta pela libertação nacional: o período da Segunda Guerra Mundial e o da Guerra Fria.

Assim, o contexto da libertação nacional foi marcado com a emergência das duas super potências antagónicas (EUA e URSS), cada uma delas procurando posicionar-se para uma maior hegemonia a nível global. Foi de facto esse antagonismo contextual entre as superpotências que, na busca de seus próprios interesses ideológicos, impulsionaram a descolonização dos países africanos.  Essas potências perceberam que, para um maior protagonismo mundial, precisavam de ampliar as suas zonas de influência e para tal teriam de parar com o colonialismo europeu, substituindo os europeus na relação com novos Estados. A procura da consolidação hegemónica forjou a posição anticolonialista das superpotências. Assim, no campo ideológico, a URSS lutava para a implementação do socialismo em África, enquanto um sistema político e económico que “combate” às desigualdades e a classe burguesa, promotora da exploração dos trabalhadores, e, no campo económico: a procura de matérias-primas para suas pequenas indústrias. Já o anticolonialismo dos EUA tinha como propósito expandir a democracia em todo mundo e, fruto dessa conquista ideológica, garantir o acesso aos mercados fornecedores de matérias-primas necessárias para as indústrias nos países ocidentais. Foram esses interesses hegemónicos a mola impulsionadora da aliança entre as novas superpotências e os movimentos anticoloniais africanos. Portanto, as motivações anticoloniais de ambas as superpotências visavam expandir a sua área de influência no “terceiro mundo” para alcançar objectivos geopolíticos mais vastos a nível global. Para o alcance dos objectivos preconizados, as superpotências aliaram-se aos Movimentos Anticoloniais Africanos, prestando apoio militar, financeiro e logístico. E, como consequência, as práticas destes Movimentos foram permeadas por ideologias que reflectiam os interesses dos actores hegemónicos no contexto da Guerra Fria e da Segunda Guerra Mundial.[6]

Como relata Maria Teresa Pereira Esteves,

No caso angolano, o MPLA (Movimento Popular de Libertação de Angola) esteve sempre vinculado à ideologia marxista-leninista “inspirada no modelo dos países do Leste europeu, a doutrina da União Soviética” e foi apoiado pelos países do bloco do Leste e pelo Partido Comunista Português (PCP); a FNLA (Frente Nacional para Libertação de Angola) adoptou uma linha ideológica mais tradicionalista associada à ideologia de direita, orientada para a afirmação dos valores da africanidade, da negritude e das instituições tradicionais; contou com o apoio do bloco ocidental (EUA) e, numa fase posterior, China e Zaire; a UNITA (União Nacional para  Independência Total de Angola) esteve tradicionalmente associada às forças de esquerda, embora a sua prática política tenha sido híbrida, por adoptar simultaneamente uma linha ideológica tradicionalista, da esquerda maoísta e da direita conservadora, consoante a sua situação política no palco geoestratégico que ditava a necessidade de estabelecer alianças ideológicas distintas, tanto no contexto da guerra externa contra o Estado português, como a nível da guerra interna fratricida na luta pela conquista do poder do Estado. A UNITA foi apoiada pelos países do bloco de Leste, pelos países ocidentais e pela China.

Em suma, a luta anticolonial dos Movimentos foi apoiada por actores externos que pretendiam substituir o estado colonizador. Dessa parceria resultaram dois benefícios, cada um dos quais favorecendo uma das partes. Por um lado, as superpotências instrumentalizaram os Movimentos, transformando-os em actores-satélites com o intuito de alcançar os seus próprios objectivos geopolíticos no continente e, por outro lado, os Movimentos capitalizaram o apoio internacional para alcançar o poder do estado, formando um conluio para a exploração das populações nativas.

Chegados a 1975, o poder político e o comando do País foi entregue ao movimento que melhor soube posicionar-se entre as potências, e não houve qualquer processo de auscultação popular para se entender as verdadeiras aspirações de vários povos de Angola. Forjou-se uma Angola a gosto das aspirações políticas e económicas das superpotências e do poder hegemónico do Movimento nacional vencedor. Os anos seguintes à Independência serviram para a consolidação do novo regime político, baseado igualmente na subjugação dos povos. Entramos no sistema político comunista chancelado pela URSS, e, como era de esperar, surgiram as guerras fratricidas, com uma destruição completa do tecido social. Nesse período, acentua-se ainda mais a aculturação, dá-se a expropriação completa da propriedade privada, o controlo político e a divisão do território entre as facções beligerantes.

Em 1992, fruto de alguns acordos entre os movimentos, realizam-se as primeiras eleições e dá-se uma guinada para o sistema político democrático, que vigora até os dias de hoje.  Com a consolidação democrática em curso, dá-se ainda a consolidação da centralização política e da legitimação dos movimentos enquanto grupos de conquista do poder. Consequentemente, as relações sociais passam a ser cada vez mais de âmbito hegemónico ou político. O controlo político e o avassalamento dos sobas trazido do tempo colonial, feitos por meio de guerras de conquistas, passam a ser feitos pelo movimento no poder contra as populações, com o apoio da legislação e órgãos de defesa e segurança. Na prática, assistimos a um sistema político igual ao colonial, com o mesmo centralismo político, expropriação de terras, ausência de liberdade individual, aculturação e doutrinação. Mudamos de uma colonização europeia e branca para uma colonização fratricida, muito mais difícil de ser percebida. A diversidade cultural e étnica faz com que, nas democracias, seja visível a hegemonia étnica. Os grupos étnicos governantes tendem a usar o poder do estado para beneficiar seus grupos étnicos e suas regiões. Isso cria revolta entre os grupos subjugados, o que tem causado conflitos políticos-étnicos intermináveis.

No geral, esse é o dilema da África. O desafio consiste em encontrar o modelo político mais adequado à realidade específica do País, de modos que se atendam os interesses e especificidades dos vários grupos étnicos que compõem o nosso mosaico cultural.

 

  1. 4 – DESAFIOS PARA O RETORNO E A PRESERVAÇÃO DAS VIRTUDES SOCIAIS TRADICIONAIS

 

Como podemos observar, a nossa história fornece-nos exemplos bem claros de como a colonização e o imperialismo não são coisas do passado, mas realidades bem presentes nos dias de hoje. Esses sistemas entraram pela porta da colonização, por meio das capitanias e avassalagem dos sobas e, nos dias de hoje, pelo comunismo e pela democracia, em conluio com a URSS, EUA, Portugal, auxiliados pelos movimentos de libertação nacional. Esse processo viria a estabelecer profundas mudanças no tecido social em Angola, com consequências políticas, culturais, jurídicas e económicas nefastas que perduram até aos nossos dias. Portugal viria a exportar para Angola uma cultura de centralização política e de escravidão, diametralmente oposta àquilo que era o sentido praxeológico ou cultural dos nossos povos. Portugal viria então a estabelecer em Angola, pela primeira vez, todo um sistema de relações políticas baseadas no poder, não interessando quaisquer considerações éticas.

O estabelecimento das relações políticas imperiais, tuteladas posteriormente pelos movimentos de libertação nacional, não respeitou as especificidades culturais políticas dos vários povos que compõem o vasto território angolano. No contexto em que se deu a independência nacional, os três Movimentos de libertação (MPLA, FNLA e UNITA), que representavam interesses ideológicos distintos, (marxismo-leninismo, democracia e a ideologia maoísta da China), não conseguiram interpretar os anseios e a vontade soberana das diferentes comunidades locais, porque estavam eles mesmos amarrados aos interesses antagónicos das potências imperiais, interessadas unicamente na manutenção do poder de explorar e neocolonizar os povos já oprimidos. Assim, esses movimentos negociaram eles próprios, e no interesse próprio, a descolonização, deixando de fora a soberania popular.

Chegados aqui, impõe-se um desafio hercúleo de não apenas se livrar do imperialismo, colonização e feudalismo modernos, como também procurar implementar o poder local de acordo com as especificidades culturais e políticas das várias comunidades locais que formam hoje o vasto território angolano. E, para se alcançar esse desiderato, o único caminho trilhável será o da reconstituição histórica. Precisamos de retornar às jurisdições políticas pré-coloniais descentralizadas, espontâneas e naturais, para preservar as virtudes sociais tradicionais de que falamos no início desse texto.

Recapitulando: antes de cair sob o domínio dos portugueses e ser ocupada e colonizada, Angola era habitada por vários povos, com cultura específica e governos muito próprios. A unidade administrativa por excelência chamava-se Ombala, com fronteiras bem identificáveis, estando à cabeça um soba, que governava auxiliado por um grupo de anciães e de um grupo directivo. Geralmente, cada Ombala era independente da outra e o Soba, para além de autoridade governamental, era também autoridade espiritual.

No campo governamental, (que é o de maior interesse para o nosso estudo), a função essencial do soba consistia em arbitrar conflitos para estabelecer a ordem social, aliás, fundamento clássico da filosofia política. A tarefa da arbitragem judicial do Soba era essencialmente baseada no direito costumeiro no geral, alicerçado muitas vezes nas regras da propriedade privada. A punição, para além de retaliatória e restitutiva, era também baseada na exclusão social ou discriminação da comunidade. Os criminosos eram em regra expulsos da comunidade ou então fortemente discriminados nos negócios ou até mesmo na formação de futuras famílias. Os julgamentos eram feitos no interesse das partes, cabendo ao Soba, enquanto juiz, o estabelecimento da devida proporcionalidade. E sobre isso, em 2020, face a roubos constantes de milho na sua lavra, numa bela noite, um aldeão da Ombala de Katonga decidiu esconder-se para surpreender o ladrão que frequentemente roubava a sua lavra. Às 20 horas, ouviu um barulho de alguém a tirar as espigas de milho e surpreendeu-lhe empunhando uma catana. Descobriu-se que era uma senhora que provinha de uma outra aldeia próxima para roubar. O aldeão levou-a ao Soba e quis, como sentença, a prestação de trabalho durante um mês como forma de compensar os prejuízos sofridos; ao que o Soba anuiu. A senhora cumpriu a sentença e depois retornou à sua vida normal. Esse exemplo ilustra bem a liberdade de punição que cabe à vítima no sistema jurídico das Ombalas.

Cabia também ao Soba, para além de árbitro e intercessor de problemas judiciais e espirituais, todos os outros problemas que afligiam as comunidades sob seu governo, como a construção de pontes, a abertura de pequenos atalhos que beneficiam a aldeia ou Ombala. Todas essas actividades eram geralmente exercidas de forma gratuita, com julgamentos a serem pagos geralmente com valores módicos dada a sua função ser atribuição da comunidade. Ao contrário do que sugere alguma bibliografia, os tributos eram geralmente inexistentes, sendo que a preocupação ou cuidado para com os idosos e inválidos era da exclusiva responsabilidade da família ou solidariedade dos vizinhos.

Portanto, só retornando, valorizando e respeitando as virtudes dos poderes locais fortemente descentralizados e soberanos, teremos finalmente uma ordem social próspera e pacífica.

Para uma sociedade como a nossa, constituída por vários grupos etno-linguísticos, geralmente marcados pelos factores tribais e de regionalismos de qualquer governo constituído, a formação de um poder local natural e espontâneo se torna imperioso. Sob um sistema político democrático, fortemente centralizado e importado dos EUA, URSS e Portugal, Angola estará sempre no ambiente de conflito permanente, podendo desembocar numa onda aberta de conflitos tribais ou regionais intermináveis. A democracia no nosso contexto representa um ambiente de conflitos e guerras intermináveis. Por isso, é premente o retorno às virtudes dos governos locais tradicionais, sendo os desafios dessa empreitada enormes. Primeiro, porque a sociedade actual foi toda ela instruída a respeitar ou adular o sistema político vigente. O estado actual, apesar de escudar o neocolonialismo e o neo-imperialismo, soube formar uma opinião favorável à sua actuação, o que torna difícil uma ideia de uma ordem social sem estado. Segundo, porque cada vez mais a autoridade do poder tradicional tem sofrido constantes golpes de alienação, primeiro, durante a colonização, com a sua avassalagem e escolha dessas autoridades pelos portugueses, segundo, pelos estados modernos, que cada vez mais subalternam as suas funções e também os escolhem por sua conveniência.

Mas, a par desses desafios, temos também a nosso favor a existência, até os nossos dias, dessas autoridades, nalguns casos com fronteiras bem delineadas, e a cada vez mais crescente crença nessas autoridades para resolver ou arbitrar conflitos entre membros de uma comunidade, essencialmente nas zonas rurais. O nosso sucesso, para a construção de uma sociedade pacífica e próspera, dependerá do grau em que formos capazes de entender a necessidade do retorno às virtudes do poder local tradicional. Enquanto preservarmos o sistema político actual, baseado nas relações de poder que visam explorar e colonizar outros homens, estaremos sempre na senda de degeneração moral e do empobrecimento gradual, rumo ao caos social.

Essa minha tese (penso ser pioneira em Angola) de restaurar a ordem social justa por intermédio de um governo tradicional de sobas ou governo natural consentido e como sendo essa organização social a única forma possível de restaurar fronteiras naturais e como único fundamento de qualquer divisão político-administrativa e geográfica de qualquer governo, tem sido contestada com duas antíteses, quanto a mim, carregadas de certa ignorância de memória ou conhecimento histórico e desconhecimento de como se constrói o conhecimento em ciências sociais. A primeira dessas antíteses sugere que o meu pensamento é retrógrado e que visa, no fundo, um regresso a sociedades primitivas, muito desajustadas ao nosso contexto. Parece-me claro que esse argumento ignora o facto incontestável de que, pelo menos em ciências sociais, a maior parte do conhecimento já foi descoberto e compreendido no passado, e a função de cada geração é descobrir e compreender novamente esse conhecimento, evitando-se, assim, cometer os velhos erros. Como Hoppe disse a esse respeito, “isso não significa que a nova geração de intelectuais não possa contribuir com algo novo ou melhor, para o estoque de conhecimento herdado do passado, mas sim que ela não irá, ou irá apenas de forma incompleta, reaprender o conhecimento já existente e ao invés disso irá incorrer em velhos erros.” Isso significa que o progresso da sociedade faz-se com o conhecimento já existente no passado, raramente novo, cabendo a cada geração um estudo pormenorizado da história, exaurindo dela as instituições sociais importantes para o progresso, e descartando aquelas que proporcionam retrocesso social. E o  governo tradicional é, para mim, pelas razões apresentadas acima, uma dessas instituições que viabilizariam a nossa sociedade e o seu progresso. Por outro lado, fruto da aculturação europeia a que fomos submetidos, os angolanos em particular negam-se a estudar ou conhecer instituições políticas e económicas construídas pelos seus ancestrais, importantes para a formação da nossa própria identidade cultural. Para já, todas instituições importantes para a manutenção de uma ordem social, já existiam mesmo antes da chegada dos colonizadores. A propriedade privada, o governo, a família, o casamento, a moeda, a língua, solidariedade privada, agricultura, como instituições que fundamentam a sociedade, já existiam em todas as partes do esbulho Angola. O juiz de uma Ombala é juridicamente muito mais dotado de conhecimentos do que os juízes estatais artificiais modernos. A forma como a propriedade privada da terra está estabelecida nas ombalas é como se todos os cidadãos desses reinos tivessem lido John Locke, com o seu conceito de “homesteaded”. Uma outra objecção à minha tese defende uma possível coabitação entre o governo estatal e o governo natural ou de sobas. Essa objecção parece desconhecer o fundamento de um governo e a importância económica e moral dessa instituição natural. O governo natural ou governo consentido é uma instituição que nasceu do tronco da família, tendo como fundamento a preservação da vida e da propriedade privada. Diferente, o governo estatal, com a sua legislação, resulta da ideia de um homem ou um grupo de homens do direito de sujeitar todos os outros homens às suas vontades e de fazê-los ficarem ao seu serviço. É, portanto, um governo antissocial, cuja função é a da destruição da família, da propriedade privada, da moeda, da língua, instituições fundamentais para a manutenção da ordem social. Ademais, como fundamentar a existência de um governo duplo, sendo um consentido e outro imposto por meio da coação? Sendo que o governo de sobas é mais antigo e aceite por todos, como legitimar a sobreposição do governo estatal sobre o primeiro? Qual seria a vantagem esperada em possuir dois governos com modus operandi claramente opostos? Parece-me claro que essas questões são impossíveis de ser respondidas, tornando essas objecções em simples ideias ocas e desprovidas de qualquer fundamento filosófico e histórico. Por isso, essas objecções só podem ser compreendidas no âmbito da depravação moral a que fomos expostos pelo sistema de educação estatal.

 

  1. 5 – CAMINHOS PARA A RECONSTITUIÇÃO HISTÓRICA EFECTIVA

 

De uma forma geral, foi possível traçar o percurso histórico que nos trouxe ao estado actual, os perigos do status quo dessa ordem e a necessidade de restaurar a civilização antiga, baseada nas relações contratuais. De forma mais concreta, foi possível, em suma, traçar o percurso histórico do surgimento do estado angolano, sua evolução e consolidação e a necessidade de anular essa instituição para restaurar a civilização no território angolano.

E sobre o Estado, há muito que se diga e, desde logo, permitam-me algumas breves considerações.

O estado, um ente tão comum e tão desconhecido, que está presente em todos os momentos da nossa vida. É ele que nos regista, cadastra, controla, “cuida”, julga, “educa” e “cura”. Um ente do “bem”, omnisciente e omnipotente.  É a ele que recorremos para a “solução” de todos nossos problemas. Mas, ao mesmo tempo, bastante desconhecido entre os homens. Poucos são os homens que cogitam sobre a sua natureza, origem e que significado realmente tem nas nossas vidas. Que papel social tem o estado? É ele uma instituição social criada de forma espontânea pelos homens para fins de cooperação? É uma entidade sancionada pelas leis da natureza? Existe alternativa de uma vida sem estado? Como seria tal sociedade?

São essas e outras questões que deveriam ser levantadas por qualquer pessoa que sentisse o mínimo toque do estado na sua pele. A ignorância por parte das pessoas sobre o estado é justificada muitas vezes pelo facto de que toda a informação, opinião e julgamentos sociais são feitos pelo próprio estado. Outros justificam esse facto por conta da própria natureza humana que raramente se questiona sobre os fenómenos à sua volta. Como refere Ludwig Von Mises “o homem comum não especula sobre os grandes problemas. Ampara-se na autoridade de outras pessoas, comporta-se como um sujeito decente deve comportar-se, como um cordeiro num rebanho.  E é exactamente essa inércia intelectual que caracteriza um homem como o homem comum.”

A literatura existente permite-nos estudar o estado quanto à sua origem ou génese de forma metafórica e sociológica.

A origem do estado na forma de metáfora é a que é apresentada pelos filósofos contratualistas como Thomas Hobbes, John Locke e Jean-Jacques Rousseau. Estes filósofos defendiam a ideia de que o homem e o Estado fizeram uma espécie de um acordo ou contrato, a fim de garantir a preservação da vida. Nesse acordo, ficou definido que, dada a natureza humana besta, egoísta e corrompida, seria necessária a criação de uma entidade, instituição super-humana ou leviatã para a preservação do próprio homem. Foi esse instrumento criado em forma de metáfora, chamado contrato que explica o surgimento do estado e da sociedade. Esta figura de linguagem foi utilizada especialmente por Thomas Hobbes, John Locke e Jean-Jacques Rousseau.

Dentre os filósofos contratualistas, Rousseau foi o que viria a ser o maior influenciador da Revolução Francesa e, consequentemente, da crença universal que se tem hoje sobre a origem do estado. Apesar da tese contratualista ser apenas uma ideia hipotética, uma metáfora, é dela que a maioria dos intelectuais busca a explicação e a legitimidade do estado. Para a maioria dos intelectuais de hoje, a sociedade é obra do estado, pois, só existe por meio de um contrato social regido, protegido, supervisionado e comandado pelo estado.  Apesar da sua estranheza, poucos são aqueles que o questionam. Um contrato como tal exige a aceitação das partes, podendo ser dissolvido sempre que cada uma das partes assim o desejar. Os contratos envolvem, em regra, a transmissão de propriedades, com ganhos recíprocos subjectivos esperados. Um contrato que nunca alguém viu a ser assinado, que vincula até gerações vindouras, um contrato, do qual todos são forçados a fazer parte, isto é, todos estão obrigados a cumpri-lo, mesmo que não concordem com ele, é, por demais, irreal. Transportando-o para a realidade do nosso País, parece ainda mais absurdo. Em Angola, os centros de poderes são, como já dissemos acima, chamados de Ombala, que são independentes entre si. Cada Ombala representa uma tribo ou etnia. Cada grupo etnolinguístico tem uma Ombala específica e as vezes um mesmo grupo etnolinguístico tem muitas Ombalas independentes. Como seria um contrato desses? Como Ombalas independentes formariam um contrato que vinculassem todas as Ombalas do vasto território angolano? Em que língua nacional esse contrato seria celebrado? Há um angolano que tem conhecimento da existência desse acordo dos vários reinos que compõem o nosso território?

O autor Robert Higgs, a propósito do contrato social, apresenta-nos um protótipo ou modelo para análise crítica. Eis o modelo desse contrato:

Apenas considere como tudo iria funcionar. Um pretenso governante se aproxima de você oferecendo um contrato, esperando a sua aprovação.  Eis o acordo:

Eu, a pessoa da primeira parte (“o governante”), prometo:

(1). Estipular quanto do seu dinheiro você deve me entregar, bem como quando, de que maneira e para onde a transferência será feita.  Você não terá nenhuma voz ativa na questão, exceto implorar por minha clemência; e caso não cumpra meus ditames, meus agentes irão puni-lo com multas, aprisionamento, confisco de bens e, na eventualidade de uma obstinada resistência, até mesmo com a morte.

(2) Criar milhares e milhares de regras, às quais você deve obedecer sem questionar, novamente sob pena de sofrer as punições supracitadas, que serão instantaneamente ministradas por meus agentes.  Você não terá nenhuma voz ativa na determinação do conteúdo destas regras, as quais serão tão numerosas, complexas e, em vários casos, além de qualquer possibilidade de compreensão, que nenhum ser humano seria capaz de saber pouco mais do que um punhado delas, menos ainda seu caráter específico.  Ainda assim, caso você não cumpra todas elas, sentir-me-ei livre para puni-lo de acordo com as leis criadas por mim e por meus aliados.

(3) Ofertar para você, de acordo com os termos estipulados por mim e por meus aliados, os chamados bens e serviços públicos.  Embora você realmente possa dar algum valor a alguns destes bens e serviços, a maioria terá pouco ou nenhum valor para você, e há alguns que você considerará totalmente abomináveis.  Porém, sempre relembrando, você, como indivíduo, em nenhuma circunstância terá qualquer voz activa sobre os bens e serviços que eu venha a fornecer, seja sobre a qualidade deles, seja sobre o custo total que sai do seu bolso para bancá-los.

(4) Na eventualidade de uma contenda judicial entre nós, os juízes — todos eles gratos a mim por seus empregos e magnânimos salários — é que decidirão como solucionar o litígio.  É claro que eu recomendo que você nem sequer se dê ao trabalho de fazer tudo isso, pois é de se esperar que você irá perder essa batalha; aliás, terá muita sorte caso consiga efetivar sua queixa em algum tribunal.

Em troca destes “benefícios” governamentais supracitados, você, a pessoa da segunda parte (“o governado”), promete:

(5) Ficar calado, não protestar, não questionar, obedecer a todas as ordens expedidas pelo governante e seus agentes, e prostrar-se em servidão diante deles como se fossem pessoas importantes e honrosas.  Quando ordenarem “Pule!”, limite-se apenas a perguntar “Até que altura?[7]

Na verdade, nenhuma pessoa em sã consciência aceitaria um absurdo desses. Ninguém aceitaria vender a sua alma para uma autoridade dirigida por homens igualmente egoístas, bestas e corrompidas. Mas, apesar dessa abstracção, é com a tese do contrato social que muitos intelectuais nos impingem aceitar a autoridade do estado como legítima.

Legitimada a origem do estado por meio de um suposto contrato social, os homens passaram a ser criaturas irracionais de outros homens para servirem o propósito do leviatã. Pierre-Joseph Proudhon, citado por Robert Higgs, descreve bem o que é estar sob alçada de um governo que tem origem do alegado contrato social. Como escreveu:

Ser GOVERNADO significa ser observado, inspecionado, espionado, dirigido, legislado, regulamentado, cercado, doutrinado, admoestado, controlado, avaliado, censurado, comandado; e por criaturas que para isso não têm o direito, nem a sabedoria, nem a virtude para fazê-lo.

Ser GOVERNADO significa que todo movimento, operação ou transação que realizamos é anotada, registrada, catalogado em censos, taxada, selada, avaliada monetariamente, patenteada, licenciada, autorizada, recomendada ou desaconselhada, frustrada, reformada, endireitada, corrigida.

Submeter-se ao governo significa consentir em ser tributado, adestrado, redimido, explorado, monopolizado, extorquido, pressionado, mistificado, roubado; tudo isso em nome da utilidade pública e do bem comum.  Então, ao primeiro sinal de resistência, à primeira palavra de protesto, somos reprimidos, multados, desprezados, humilhados, perseguidos, empurrados, espancados, garroteados, aprisionados, fuzilados, metralhados, julgados, sentenciados, deportados, sacrificados, vendidos, traídos e, para completar, ridicularizados, escarnecidos, ultrajados e desonrados. Isso é o governo, essa é a sua justiça e sua moralidade![8]

Como vemos, apesar de ser a tese preferida dos intelectuais, ela não possui uma base histórica real. Nenhum historiador foi capaz de explicá-la com factos. Foi apenas uma metáfora. No entanto, a sociedade é, sim, um contrato social, mas um contrato social concreto e individual em que as partes gozam de total liberdade para a sua celebração e sem a necessidade de um leviatã.

Inviável que é a tese da metáfora, resta-nos explorar a tese sociológica do surgimento do estado. Existem duas formas que buscam explicar a génese do estado dentro da tese sociológica, nomeadamente a teoria endógena e a exógena. A teoria endógena foi desenvolvida especialmente por Bertrand de Jouvenel e defende que o estado é fruto das acções das classes naturais. Segundo essa teoria, em cada sociedade existem indivíduos que se destacam pelos seus talentos, que pode ser na forma de produção de riquezas, integridade, robustez física, bravura, e é a eles que a sociedade recorre para a busca de solução dos seus problemas ou buscam protecção. Com o tempo, esses indivíduos talentosos foram adquirindo estatura de classe natural que foi sendo passada de geração em geração. Foi por meio das classes naturais que os homens conheceram autoridade, que se foi consolidando até se chegar à autoridade estatal que conhecemos nos dias de hoje. Como Hoppe nos reforça a respeito, “essa transição ocorreu quando um único membro da voluntariamente reconhecida elite natural foi capaz de conseguir, não obstante a oposição dos outros membros da elite, que todos os conflitos dentro de um território especificado fossem trazidos para ele. Portanto, a primeira forma de estado historicamente conhecida pelos homens foi a monarquia.”

Como se pode depreender dessa teoria, foi a partir da monopolização das actividades das classes naturais que se deu origem ao estado.

No entanto, a teoria endógena é, quanto a nós, também insatisfatória. Como fomos capazes de provar acima, as classes naturais não evoluíram a ponto de criarem o estado. Existem reinos, em vários territórios, que perduram até aos nossos dias, que nunca chegaram a formar o estado, pelo menos, como o conhecemos hoje. A teoria endógena, ao sugerir que o estado nasce das classes naturais, tende a convencer-nos de que o estado seja uma instituição social criada de forma espontânea por todos os agrupamentos humanos. Essa teoria, ao socializar o estado, confunde toda autoridade como sendo estatal.

Abandonada essa teoria, resta-nos a tese sociológica exógena do surgimento do estado, defendida essencialmente por Ludwig Gumplowicz, Franz Oppenheimer, Albert Jay Nock e Murray Rothbard.

No livro O estado, Franz Oppenheimer relata, passo a passo e de estágio a estágio, a evolução e as fases da formação de um estado. Segundo conta, o estado surgiu da conquista e mantém-se através da exploração. Por isso, não há nenhum estado que surgiu antes que tenham sido criadas as condições materiais ou económicas para sustentá-lo. Alguns povos, mais do que outros, rapidamente descobriram o aproveitamento da terra, plantando árvores e ou cultivando cereais, tubérculos, formando a classe de camponeses, progenitora da acumulação primitiva de capital. Não existe no lavrador algum interesse bélico para domínio de outros povos. Cada camponês ou família, precisa de um pequeno espaço para a sua prática económica. A desigualdade entre eles é quase inexistente. Um cultivo a mais de cereais pode ser desperdício por causa da corrosão do tempo. Os camponeses são desse jeito compostos por tribos pacíficas, pois, a guerra não melhora a sua condição de vida.

Do outro lado, estavam os caçadores nómadas, cuja principal actividade económica é a preservação do gado acumulado por meio de guerras. A preservação do gado pode ser afectado quer pelas pestes, assim como por meio da usurpação pelas outras hordas também nómadas. A solução encontrada foi distribuir o gado às famílias pobres para cuidado e também o uso de homens capturados nas guerras ou foragidos de outras tribos para a protecção. Nascia aí a primeira exploração económica do homem pelo homem e consequentemente o surgimento da entidade estatal. Inicialmente, esses caçadores nómadas e conquistadores geralmente saqueavam e assassinavam suas vítimas e depois procuravam outras. Mas, com o passar dos tempos, as tribos conquistadoras decidiram estabelecer-se entre as suas vítimas e, em vez de matá-las, eles passaram a escravizá-las e, posteriormente, regularizaram e tornaram o saque permanente, estabelecendo-se para governar suas vítimas a longo prazo.” Assim, Franz Oppenheimer conclui o seu estudo definindo o estado, no tocante à sua origem, como “uma instituição imposta sobre um grupo vencido por um grupo conquistador, com o único fim de sistematizar a dominação dos conquistados e se salvaguardar contra insurreição de dentro e ataques de fora”.[9]

Portanto, o estado, tal como nos aparece hoje, é a evolução de um estágio de conquista, para o derradeiro estágio de exploração, passando por fases mais ou menos graduais de pilhagem, trégua, tributo, ocupação e monopólio.

Não restam dúvidas de que a teoria exógena do estado seja a mais real teoria elaborada. A nossa própria história é prova disso. O nosso próprio estado não é mais do que resultado da conquista portuguesa de territórios de camponeses e pastores pacíficos. Vimos que, com o surgimento do estado em Angola, uma série de eventos nebulosos seguiram-se. As antigas relações pacíficas baseadas nas trocas e divisão de trabalho deram origem a relações hegemónicas de poder e, consequentemente, o surgimento de guerras internas e entre nações, perversão cultural, aculturação compulsiva, deturpação do direito e da justiça, estatização do pensamento económico, empobrecimento social, deturpação do ensino, etc.

Vimos, ainda, que o estado e as suas relações hegemónicas surgiram em Angola em 1482, no então Reino do Congo. A partir desse território, foi-se alargando e consolidando até aos nossos dias. Podemos traçar o percurso histórico do Estado Angolano com estágios como:

  • A chegada dos portugueses;
  • Guerras entre portugueses e nações africanas;
  • Ocupação e colonização efectivas;
  • Formação imperial dos Movimentos de Libertação Nacional;
  • Acordo de Alvor;
  • Guerra imperial;
  • Era democrática ou consolidação e legitimação do estado.

Como se pode ver, desde a chegada portuguesa até a era democrática actual, o estado operou profundas mudanças sociais e psicológicas no tecido social angolano. As relações hegemónicas foram estabelecidas como principais formas de relacionamentos, de tal forma que um conjunto de gerações foi treinada e educada dentro desse paradigma. Com a guerra imperial, toda uma geração foi educada para guerrear ou para manter às instituições da guerra. Essa realidade fez com que a maioria da força activa estivesse ocupada nas tarefas do estado, desenvolvendo uma cultura de parasitismo sistémico. Essa cultura de parasitismo sistémico, que se vai consolidando até aos nossos dias, torna-se nos maiores empecilhos da restauração da ordem social pré-colonial. Actualmente, o modelo educacional vigente foi concebido para formar servidores estatais, de tal forma que toda mão-de-obra qualificada geralmente é absorvida pelo estado, tornando-se assim o maior empregador comparado com o sector privado. Então, seria uma catástrofe social qualquer tentativa de restaurar ou implementar o verdadeiro poder local, rompendo com as instituições do Estado de forma abrupta. É preciso uma solução local que atenda às especificidades locais. É preciso uma estratégia gradual para acabar com o estado e sua centralização política e restaurar a ordem social perdida.

Em nossa opinião, a estratégia passaria por um período de mais ou menos 5 anos e seguiria os seguintes passos:

– Parar com qualquer aumento do aparato do Estado e suas despesas e ou conquista de mais espaços territoriais por parte do estado, para exploração de mais recursos naturais e proibir ainda qualquer endividamento do Estado. Essa estratégia serviria para evitar qualquer crescimento do estado e assim manter estáticas as despesas públicas;

– Os recursos naturais seriam a fonte única do financiamento do estado, que estaria confinado essencialmente ao pagamento dos salários;

– Assegurar o respeito absoluto da propriedade privada, de tal modo que a terra seja propriedade privada, podendo os donos dessas terras explorarem até os recursos naturais como; diamantes, ouro, petróleo, etc. para benefício próprio;

– Implementar o mercado livre, anulando toda a legislação tributária, com a excepção de um imposto mensal de não mais de 2%, que incidirá sobre as vendas que servirão para auxiliar as receitas patrimoniais, caso elas não cheguem para manter o aparato estatal existente actualmente;

– Confinar o Governo a sua função clássica ou a sua essência, que é arbitrar conflitos;

– Instituir uma descentralização radical, na verdade, reconstituir as fronteiras naturais pré-coloniais, de tal modo que cada Ombala tenha governo próprio, podendo novas Ombalas se formarem das já existentes;

– Privatizar todas as empresas públicas e estradas, extinguir paulatinamente e consequentemente privatizar os Ministérios. Nesse âmbito, com vista a manter as condições sociais existentes, o processo de extinção seria feito de forma gradual, garantindo para cada funcionário no activo um salário correspondente a 12 anos, que lhe permitirá refazer a sua vida. Aos segurados controlados pelo sistema de segurança social, uma quantia correspondente a 6 anos. Essa extinção e consequente privatização seriam feitas periodicamente por cada ministério. Esse período pode variar entre bimensal ou trimestral, correspondendo o tempo de extinção de cada ministério, até a extinção completa do aparato estatal que deverá ocorrer em mais ou menos 5 anos, segundo os nossos cálculos.  A Assembleia Nacional, a Educação, Saúde, a polícia e o exército, estariam na lista de prioridade de extinção e posterior privatização. De recordar que, nos casos da Educação e Saúde, os próprios funcionários seriam os beneficiários directos dessa privatização, podendo formar cooperativas para a gestão privada dessas instituições;

– Todas essas medidas de extinções ministeriais e privatizações de empresas e infraestruturas estatais devem ser antecedidas pela extinção do BNA, mantendo o mercado financeiro privatizado e assim extinguir qualquer possiblidade de inflacionar o mercado;

– Manter uma fronteira nacional formal sem um governo central, cabendo o direito de cada Ombala enquanto modelo de organização política, à secessão, sendo a cooperação interna ou inter-étnica baseada exclusivamente nas trocas e na divisão social do trabalho.

Com essas estratégias seria então possível a implementação efectiva do poder local e retornar a ordem social perdida.

Como já dissemos, a reconstituição histórica tem dois fundamentos essenciais: em primeiro lugar, porque promove a prosperidade social, por intermédio de um mercado livre, atraindo capital e incentivando maior produção e poupanças, e em segundo, porque só com um verdadeiro poder local se constrói uma sociedade de paz, estabelecendo regras justas que promovam uma cooperação baseada no respeito à propriedade privada.

 

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Notas

[1] Ludwig von Mises, Ação Humana – Um Tratado de Economia , Instituto Rothbard, São Paulo, 2010.

[2] Carl Estermann, Etnografia do Sudoeste de Angola, 2.ª Edição.

[3] Mário João Lázaro Vicente, Os sobas e a construção de Angola nos séculos XVI e XVII, Janeiro 2021.

[4] Ibid.

[5] Ibid.

[6] Maria Teresa Pereira Esteves, O papel de Portugal no processo de transição para a independência de Angola (1974-1976), Coimbra 2016.

[7] Robert Higgs, “O contrato social e o consentimento do governado”, Instituto Rothbard, 2016.

[8] Ibid.

[9] Franz Oppenheimer, O Estado: Sua História e Desenvolvimento Vistos Sociologicamente, Editora Konkin, 1ª Edição.

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