§1
A natureza do socialismo
A essência do socialismo é esta: todos os meios de produção estão sob o controle exclusivo da comunidade organizada. Isso, e isso somente, é socialismo. Todas as outras definições são enganosas.
É possível acreditar que o socialismo só pode ser realizado sob condições políticas e culturais bem definidas. Tal crença, entretanto, não é justificativa para limitar o termo a uma forma particular de socialismo e ocultá-lo de todas as outras maneiras concebíveis de realizar o ideal socialista. Os socialistas marxistas têm sido muito zelosos em recomendar seu próprio tipo particular de socialismo como o único socialismo verdadeiro e em insistir que todos os outros ideais e métodos socialistas de realizar o socialismo não têm nada a ver com o socialismo genuíno. Politicamente, essa atitude dos socialistas foi extremamente astuta. Teria aumentado muito as dificuldades de sua campanha se estivessem preparados para admitir que seu ideal tinha algo em comum com os ideais defendidos pelos líderes de outros partidos. Eles nunca teriam reunido milhões de alemães descontentes sob suas bandeiras se tivessem admitido abertamente que seus objetivos não eram fundamentalmente diferentes daqueles das classes governantes do estado prussiano. Se um marxista tivesse sido questionado antes de outubro de 1917 em que forma o seu socialismo diferia do socialismo de outros movimentos, especialmente do dos conservadores, ele teria respondido que sob o socialismo marxista, a democracia e o socialismo estavam indissoluvelmente unidos e, além disso, o socialismo marxista era um socialismo apátrida porque pretendia abolir o Estado.
Já vimos qual a validade esses argumentos e, de fato, desde a vitória dos bolcheviques, eles rapidamente desapareceram da lista dos lugares-comuns marxianos. De qualquer forma, as concepções de democracia e apátrida que os marxianos sustentam hoje são bastante diferentes daquelas que sustentavam anteriormente.
Mas os marxistas poderiam ter respondido à pergunta de outra maneira. Eles poderiam ter dito que seu socialismo era revolucionário, em oposição ao socialismo reacionário e conservador de outros. Tal resposta leva muito mais cedo ao reconhecimento da diferença entre a social-democracia marxiana e outros movimentos socialistas. Pois, para um marxiano, revolução não significa apenas uma alteração forçada do estado de coisas existente, mas, como convém a seu fatalismo peculiar, um processo que aproxima a humanidade do cumprimento de seu destino. Para ele, a revolução social iminente que trará sobre o socialismo é o último passo para a salvação eterna. Revolucionários são aqueles que a história escolheu como instrumentos para a realização de seu plano. O espírito revolucionário é o fogo sagrado que desceu sobre eles e os capacita a realizar esta grande obra. Nesse sentido, o socialista marxiano considera a característica mais notável de seu partido o fato de ser um partido revolucionário. Nesse sentido, ele considera todas as outras partes como uma massa única, uniforme e reacionária, porque se opõem aos seus métodos de alcançar a felicidade final.
É óbvio que tudo isso não tem nada a ver com o conceito sociológico de comunidade socialista. É certamente algo notável que um grupo de pessoas afirme ser o único eleito para nos levar à salvação; mas quando essas pessoas não conhecem nenhum outro caminho para a salvação senão aquele em que muitos outros acreditaram, a afirmação de que eles foram exclusivamente ordenados para a tarefa não é suficiente para diferenciar seu objetivo fundamentalmente do de outros.
§2
Socialismo de Estado
Para compreender o conceito de socialismo de Estado, não basta explicar o termo etimologicamente. A história da palavra reflete apenas o fato de que o socialismo de Estado era o socialismo professado pelas autoridades da Prússia e de outros Estados alemães. Por se identificarem com o Estado e com a forma assumida pelo Estado e com a ideia de Estado em geral, sugeriu chamar o socialismo ao que adotaram o socialismo de Estado. Quanto mais o ensino marxiano sobre o caráter de classe do Estado e a decadência do Estado obscurecen a ideia fundamental do Estado, mais fácil se tornava o uso do termo.
O socialismo marxiano estava vitalmente preocupado em fazer uma distinção entre nacionalização e socialização dos meios de produção. Os slogans do partido social-democrata nunca teriam se tornado populares se eles representassem a nacionalização dos meios de produção como o objetivo último da mudança socialista. Pois o Estado conhecido pelas pessoas entre as quais o marxismo encontrou sua mais ampla aceitação não era o de inspirar muita esperança em suas incursões na atividade econômica. Os discípulos alemães, austríacos e russos do marxismo viviam em rixa aberta com os poderes que, para eles, representavam o Estado. Além disso, eles tiveram a oportunidade de avaliar os resultados da nacionalização e municipalização; e, com a melhor boa vontade do mundo, não puderam ignorar as grandes carências do empreendimento estadual e municipal. Era quase impossível despertar entusiasmo para um programa de nacionalização. Um partido de oposição estava obrigado, acima de tudo, a atacar o odiado Estado autoritário; só assim poderia conquistar os descontentes. Dessa necessidade de agitação política surgiu a doutrina marxista do esgotamento do Estado. Os liberais exigiram a limitação da autoridade do Estado e a transferência do governo aos representantes do povo; eles exigiram o Estado livre. Marx e Engels tentaram superá-los aderindo sem escrúpulos à doutrina anarquista da abolição de toda autoridade estatal, independente do fato de o socialismo não significar a abolição, mas sim a expansão irrestrita do poder do Estado.
Tão insustentável e absurda quanto a doutrina do desaparecimento do estado sob o socialismo é a distinção acadêmica entre nacionalização e socialização, que está intimamente ligada a ela. Os próprios marxistas estão tão cônscios da fragilidade de sua linha argumentativa que costumam evitar discutir este ponto e se limitam a falar da socialização dos meios de produção, sem qualquer elaboração posterior da ideia, de modo a criar a impressão de que a socialização é algo diferente da nacionalização que todos conhecem.
Quando não podem se abster de discutir este ponto delicado, são obrigados a admitir que a nacionalização de empresas é uma “etapa preliminar na aquisição de todos os poderes produtivos pela própria sociedade”[1] ou “o ponto de partida natural no processo que conduz à comunidade socialista”.[2]
Assim, Engels finalmente se contenta em fazer uma advertência contra a aceitação, sem mais delongas, de “toda” forma de nacionalização como socialista. Em primeiro lugar, ele não descreveria como “passos em direção ao socialismo”, a nacionalização realizada para fins de finanças do Estado, como poderia ser adotada ‘principalmente para fornecer novas fontes de renda independentes de sanções parlamentares”. No entanto, por essas razões, a nacionalização significaria também, na linguagem marxiana, que em um ramo da produção a apropriação da mais-valia pelo capitalista foi abolida. O mesmo se aplica à nacionalização realizada por motivos políticos ou militares que Engels também se recusou a aceitar como socialistas. Ele considera o critério da nacionalização socialista que os meios de produção e comércio adquiridos “deveriam ter realmente superado a direção das sociedades por ações, de modo que a nacionalização se tornou economicamente inevitável”. Essa necessidade surge primeiro no caso das “comunicações em grande escala: correios, telégrafos e ferrovias”.[3] Mas são precisamente as maiores ferrovias do mundo — a norte-americana — e as linhas telegráficas mais importantes — os cabos do mar profundo — que não foram nacionalizados, enquanto pequenas linhas sem importância nos países socialistas-estatistas foram nacionalizadas há muito tempo. Além disso, a nacionalização dos correios se deu principalmente por motivos políticos e os ferroviários, por motivos militares. Pode-se dizer que essas nacionalizações eram “economicamente inevitáveis?” E o que diabos significa “economicamente inevitável”?
Kautsky também se contenta em rejeitar a visão “de que toda nacionalização de uma função econômica ou de uma empresa econômica é um passo em direção ao socialismo e que isso pode ser conseguido por uma nacionalização geral de toda a máquina econômica sem a necessidade de uma mudança na natureza do Estado”.[4] Mas ninguém jamais contestou que a natureza fundamental do Estado mudaria muito se ele se transformasse em uma comunidade socialista por meio da nacionalização de todo o aparato econômico. Assim, Kautsky não pode dizer nada mais do que “enquanto as classes possuidoras forem as classes governantes”, a nacionalização completa é impossível.
Isso será alcançado quando “os trabalhadores se tornarem as classes governantes do Estado”. Somente quando o proletariado tiver tomado o poder político, ele “transformará o Estado em uma grande sociedade econômica fundamentalmente autossuficiente”.[5] A questão principal — a única questão que precisa de uma resposta — se a nacionalização completa realizada por outro partido que não o socialista também constituiria o socialismo, Kautsky evita cuidadosamente.
Há, é claro, uma distinção fundamental da mais alta importância entre a nacionalização ou municipalização de empresas individuais que são públicas ou comunitariamente administradas em uma sociedade que mantém o princípio da propriedade privada dos meios de produção, e a socialização completa que não tolera propriedade privada por indivíduos dos meios de produção ao lado da comunidade socialista. Enquanto poucas empresas forem geridas pelo Estado, os preços dos meios de produção serão fixados no mercado, e sendo assim, ainda é possível as empresas estatais fazerem cálculos. Em que medida a conduta dos empreendimentos se basearia nos resultados desses cálculos é outra questão; mas o próprio fato de que, em certa medida, os resultados das operações podem ser quantificados, fornece à administração de tais empresas uma medida que não estaria disponível para a administração de uma comunidade puramente socialista. A forma como as empresas estatais são geridas pode justificadamente ser considerada um mau negócio, mas continua a ser um negócio. Em uma comunidade socialista, como vimos, a economia no sentido estrito da palavra não pode existir.[6]
A nacionalização de todos os meios de produção envolve o socialismo completo. A nacionalização de alguns meios de produção é um passo em direção ao socialismo completo. Se devemos permanecer satisfeitos com o primeiro passo ou se desejamos prosseguir, não altera seu caráter fundamental. Da mesma forma, se quisermos transferir todos os empreendimentos para a propriedade da comunidade organizada, não podemos deixar de nacionalizar todos os empreendimentos, simultânea ou sucessivamente.
A obscuridade lançada pelo marxismo sobre a ideia de socialização foi notavelmente ilustrada na Alemanha e na Áustria, quando os social-democratas chegaram ao poder em novembro de 1918. Um novo e até então quase desconhecido slogan popularizou-se da noite para o dia: a socialização (Sozialisierung) foi a solução. Isso foi meramente a paráfrase da palavra alemã Vergesellschaftung em uma palavra estrangeira que soa bem. A ideia de que Sozialisierung nada mais era do que nacionalização ou municipalização não poderia ocorrer a ninguém; qualquer um que sustentasse isso era simplesmente visto como quem não sabe nada sobre isso, uma vez que se pensava que entre as duas coisas havia uma lacuna abismal. As Comissões de Socialização criadas logo após a conquista do poder pelos sociais-democratas colocaram o problema de definir a Sozialisierung de tal forma que, pelo menos aparentemente, ela pudesse ser distinguida da nacionalização e municipalização do regime anterior.
O primeiro relatório emitido pela comissão alemã tratou da socialização da indústria do carvão e, ao rejeitar a ideia de alcançá-la pela nacionalização das minas de carvão e do comércio do carvão, enfatizou de maneira notável as deficiências de uma indústria nacional do carvão. Mas nada foi dito sobre como a socialização realmente difere da nacionalização. O relatório professava a opinião de que “uma nacionalização isolada da indústria do carvão não pode ser considerada como socialização enquanto uma empresa capitalista continua em outros ramos de produção: significaria apenas a substituição de um empregador por outro”. Mas deixou em aberto a questão de saber se uma “socialização” isolada como pretendia e propunha poderia significar qualquer outra coisa nas mesmas condições.[7] Teria sido compreensível se a comissão tivesse prosseguido dizendo que, a fim de cumprir os felizes resultados de uma ordem socialista da sociedade não era suficiente para nacionalizar um ramo da produção, e houvesse recomendado que o Estado deveria assumir todas as empresas de um só golpe, como os bolcheviques na Rússia e na Hungria tinham feito e como os espartaquistas na Alemanha queriam fazer. Mas não foi o que aconteceu. Ao contrário, elaborou propostas de socialização que preconizavam a nacionalização isolada de vários ramos da produção, a começar pela produção e distribuição do carvão. O fato de a comissão ter evitado usar o termo nacionalização não faz diferença.
Foi mera imprecisão jurídica quando a comissão propôs que os proprietários da indústria de carvão socializada alemã não fossem o Estado alemão, mas um “fundo de carvão público alemão” e quando passou a afirmar que essa propriedade deveria ser concebida “apenas em um sentido jurídico formal”, mas que “a posição material do empregador privado e, portanto, a possibilidade de explorar trabalhadores e consumidores” é negada a essa confiança pública,[8] a comissão estava usando o mais vazio dos slogans de sarjeta. Na verdade, todo o relatório nada mais é do que uma coleção de todas as falácias populares sobre os males do sistema capitalista. A única forma da indústria carbonífera, socializada segundo as propostas da maioria, se diferenciar das outras empresas públicas é a composição da sua direção. À frente das minas de carvão não deveria haver um único oficial, mas um comitê constituído de uma certa maneira. Parturiunt montes, nascetur ridiculus mus!
O socialismo de Estado, portanto, não se distingue pelo fato de que o Estado é o pivô da organização comunal, já que o socialismo é totalmente inconcebível de outra forma. Se quisermos entender sua natureza, não devemos olhar para o termo em si. Isso não nos levaria mais longe do que uma tentativa de apreender o conceito de metafísica a partir de um exame do significado das partes que constituem a palavra. Devemos nos perguntar que ideias têm sido associadas à expressão por aqueles que geralmente são considerados seguidores dos movimentos socialistas de Estado, ou seja, os socialistas-estatistas completos.
O socialismo-estatista se distingue de outros sistemas socialistas de duas maneiras. Em contraste com muitos outros movimentos socialistas que contemplam a maior medida possível de igualdade na distribuição da renda social entre os indivíduos, o socialismo estatista faz da base da distribuição o mérito e a classificação do indivíduo. É obviamente supérfluo apontar que o julgamento de mérito é puramente subjetivo e não pode de forma alguma ser testado de uma visão científica das relações humanas. O socialismo-estatista tem visões bastante definidas sobre o valor ético das classes individuais na comunidade. É imbuído de grande estima pela monarquia, a nobreza, os grandes proprietários de terras, o clero, os soldados profissionais, especialmente a classe oficial, e os funcionários. Com certas reservas, também atribui uma posição privilegiada a sábios e artistas. Os camponeses e pequenos comerciantes estão em uma classe especial e abaixo deles vêm os trabalhadores manuais.
No fundo, estão os elementos não confiáveis que estão descontentes com a esfera de ação e com a receita que o plano socialista-estatista lhes atribui e se esforçam para melhorar sua posição material. O socialista-estatista mentalmente organiza uma hierarquia dos membros que compõem seu estado futuro. Os mais nobres terão mais poder, mais honras e mais renda do que os menos nobres. O que é nobre e o que é ignóbil será decidido sobretudo pela tradição. Para o socialista-estatista, a pior característica do sistema capitalista é que ele não atribui renda de acordo com sua avaliação do mérito. Que um comerciante de leite ou um fabricante de botões para calças obtivesse uma renda maior do que o ramo de uma família nobre, do que um conselheiro particular ou um tenente, parece-lhe intolerável. Para remediar este estado de coisas, o sistema capitalista deve ser substituído pelo socialismo-estatista.
Esta tentativa por parte dos socialistas-estatistas de manter a tradicional ordem social de hierarquia e a valorização ética das diferentes classes, de forma alguma contempla a transferência de toda a propriedade dos meios de produção para a posse formal do Estado. Isso, de fato, na visão socialista-estatista, seria uma subversão completa de todos os direitos históricos. Só os grandes empreendimentos seriam nacionalizados e, mesmo assim, seria aberta uma exceção em favor da agricultura em larga escala, especialmente a propriedade familiar herdada. Na agricultura e nas indústrias de pequeno e médio porte, a propriedade privada deve continuar pelo menos no nome. Da mesma forma, as profissões livres terão alcance permitido, com certas limitações. Mas todas as empresas devem se tornar essencialmente empresas estatais. O agricultor manterá o nome e o título de proprietário, mas será proibido “de buscar egoisticamente apenas lucro mercantil”; tem o “dever de cumprir as finalidades do Estado”.[9] Pois a agricultura, segundo o socialista-estatista, é um cargo público. “O agricultor é um funcionário do Estado e deve cultivar para as necessidades do Estado de acordo com seu melhor conhecimento e consciência, ou segundo as ordens do Estado. Se conseguir o seu interesse e o suficiente para se manter, tem tudo o que tem direito a exigir.”[10] O mesmo se aplica ao artesão e ao comerciante. Para o empresário independente com controle livre sobre os meios de produção, há tão pouco espaço no socialismo de Estado quanto em qualquer outro socialismo.
As autoridades controlam os preços e decidem o que e quanto deve ser produzido e de que forma. Não haverá especulação de lucro “excessivo”. Os funcionários farão com que ninguém obtenha mais do que a “renda justa” adequada, ou seja, uma renda que lhe garanta um padrão de vida adequado à sua posição. Qualquer excesso será “tributado”.
Os escritores marxistas também são da opinião de que, para realizar o socialismo, as pequenas empresas não precisam necessariamente ser transferidas diretamente para a propriedade pública. Na verdade, eles consideraram isso totalmente impossível; a única maneira de realizar a socialização para essas pequenas empresas é deixá-las na posse formal de seus proprietários e simplesmente submetê-las à supervisão abrangente do Estado. O próprio Kautsky diz que “nenhum socialista digno de consideração séria jamais exigiu que os camponeses fossem expropriados, muito menos suas propriedades confiscadas”.[11] Nem Kautsky propõe socializar os pequenos produtores expropriando suas propriedades.[12] O camponês e o artesão serão adequados na máquina da comunidade socialista de tal forma que sua produção e a valorização de seus produtos sejam reguladas pela administração econômica, enquanto nominalmente a propriedade permanecerá sua. A abolição do livre mercado irá transformá-los de proprietários e empresários independentes em funcionários da comunidade socialista, distintos dos outros cidadãos apenas pela forma de remuneração.[13] Não pode, portanto, ser considerada uma peculiaridade do esquema socialista-estatista que desta forma remanescente de propriedade privada nos meios de produção persistem formalmente. A única peculiaridade característica é a extensão em que este método de organizar as condições sociais de produção é aplicado. Já foi dito que o socialismo-estatista em geral propõe, da mesma forma, deixar os grandes proprietários de terras — com exceção talvez dos latifundiários — na posse formal de sua propriedade. O que é ainda mais importante é que parte do pressuposto de que a maior parte da população encontrará trabalho na agricultura e em pequenas empresas, e que, comparativamente, poucos entrarão ao serviço direto do Estado como empregados em grandes empresas.
Não só o socialismo-estatista se opõe aos marxistas ortodoxos, representados por Kautsky, por meio de sua teoria de que a agricultura de pequena escala não é menos produtiva do que a agricultura de grande escala, mas também é da opinião de que também na indústria os empreendimentos de pequena escala têm grande margem para operação ao lado das grandes empresas. Esta é a segunda peculiaridade que distingue o socialismo de Estado de outros sistemas socialistas, especialmente a social-democracia.
Talvez seja desnecessário elaborar mais o quadro do Estado ideal desenhado pelos socialistas de Estado. Em grande parte da Europa, foi durante décadas o ideal tácito de milhões, e todos o sabem, mesmo que ninguém o tenha definido claramente. É o socialismo do servidor pacífico e leal, do proprietário da terra, do camponês, do pequeno produtor e de incontáveis trabalhadores e empregados. É o socialismo dos professores, os famosos “socialistas da cátedra” — o Katheder Sozialismus — é o socialismo dos artistas, poetas, escritores em uma época da história da arte que ostenta claramente todos os sinais de decadência. É o socialismo apoiado pelas igrejas de todas as denominações. É o socialismo do cesarismo e do imperialismo, o ideal da chamada ‘monarquia social’. É isso que a política da maioria dos Estados europeus, especialmente os estados alemães, concebia como sendo o objetivo distante dos esforços do homem. Foi o ideal social da época que preparou a Primeira Guerra Mundial e com ela pereceu.
Um socialismo que distribui as participações dos indivíduos no dividendo social de acordo com o mérito e a posição pode ser concebido apenas na forma de socialismo de Estado. A hierarquia na qual baseia sua distribuição é a única suficientemente popular para não despertar oposição avassaladora. Embora seja menos capaz de resistir à crítica racionalista do que muitas outras que podem ser sugeridas, ainda assim tem a sanção da idade. Na medida em que o socialismo de Estado tenta perpetuar essa hierarquia e evitar qualquer mudança na escala das relações sociais, a descrição de “socialismo conservador”, às vezes aplicada a ele, é justificada.[14] Na verdade, está mais imbuído do que qualquer outra forma de socialismo com ideias que atribuem a possibilidade de cristalização completa e imutabilidade das condições econômicas: seus seguidores consideram toda inovação econômica supérflua e até prejudicial. E correspondendo a essa atitude está o método pelo qual o socialismo-estatista deseja atingir seus fins.
Se o socialismo marxista é o ideal social daqueles que nada esperam exceto através de uma subversão radical da ordem existente por meio de revoluções sangrentas, o socialismo de Estado é o ideal daqueles que chamam a polícia ao menor sinal de problema. O marxismo se baseia no julgamento infalível de um proletariado repleto de espírito revolucionário, o socialismo-estatista na infalibilidade da autoridade reinante. Ambos concordam na crença em um absolutismo político que não admite a possibilidade de erro.
Em contraste com o socialismo de Estado, o socialismo municipal não apresenta nenhuma forma especial de ideal socialista. A municipalização das empresas não é considerada um princípio geral sobre o qual se possa basear uma nova organização da vida econômica. Afetaria apenas empresas com um mercado limitado no espaço. Num sistema rigoroso de socialismo de Estado, os empreendimentos municipais estariam subordinados à principal administração econômica e não seriam mais livres para se desenvolver do que os empreendimentos agrícolas e industriais nominalmente permanecendo em mãos privadas.
§3
Militarismo socialista
Socialismo militar é o socialismo de um Estado em que todas as instituições são projetadas para o prosseguimento da guerra. É um socialismo de Estado em que a escala de valores para determinar o status social e a renda dos cidadãos é baseada exclusiva ou preferencialmente na posição ocupada nas forças de combate. Quanto mais alta a classificação militar, maior o valor social e a reivindicação do dividendo nacional.
O Estado militar, ou seja, o Estado do guerreiro em que tudo está subordinado ao propósito de guerra, não pode admitir a propriedade privada dos meios de produção. A prontidão permanente para a guerra é impossível se outros objetivos além da guerra influenciam a vida dos indivíduos. Todas as castas de guerreiros cujos membros foram sustentados pela atribuição de direitos senhoriais ou de concessões de terras, ou mesmo por indústrias baseadas na oferta de trabalho não-livre, com o tempo perderam sua natureza guerreira. O senhor feudal foi absorvido pela atividade econômica e adquiriu outros interesses além de fazer guerra e colher honras militares. Em todo o mundo, o sistema feudal desmilitarizou o guerreiro. Os cavaleiros foram sucedidos pelos junkers. A propriedade transforma o lutador em homem econômico. Somente a exclusão da propriedade privada pode manter o caráter militar do Estado.
Somente o guerreiro que não tem outra ocupação além da guerra além da preparação para a guerra, está sempre pronto para a guerra. Homens ocupados em negócios podem travar guerras de defesa, mas não guerras longas de conquista.
O Estado militar é um estado de bandidos. Ele prefere viver de espólio e tributo. Comparado com essa fonte de renda, o produto da atividade econômica desempenha apenas um papel subordinado; frequentemente está completamente ausente. E se o espólio e o tributo vêm do exterior, é claro que eles não podem ir diretamente para os indivíduos, mas apenas para o tesouro comum, que pode distribuí-los apenas de acordo com a patente militar. O exército, que é o único a garantir a continuidade dessa fonte de renda, não toleraria nenhum outro método de distribuição. E isso sugere que o mesmo princípio de distribuição deve ser aplicado aos produtos da produção doméstica, que também são atribuídos aos cidadãos como tributo e rendimento da servidão.
Desta forma, o comunismo dos piratas helênicos de Lipara e de todos os outros Estados ladrões pode ser explicado.[15] É o “comunismo de ladrões e piratas”,[16] surgindo da aplicação de ideias militares a todas as relações sociais. César relata sobre os suevos, a quem ele chama de gens longe hellicosissima Germanorum omnium, que eles enviavam guerreiros pelas fronteiras todos os anos para saque. Os que ficaram para trás continuaram a atividade econômica para os que estavam na batalha; no ano seguinte, os papéis foram trocados. Não existiam terras de propriedade exclusiva dos indivíduos.[17] Somente compartilhando o produto da atividade militar e econômica exercida com um propósito comum e sujeita a um perigo comum, pode o Estado guerreiro fazer de cada cidadão um soldado e de cada soldado um cidadão. Uma vez que permite que alguns permaneçam soldados e outros cidadãos trabalhando com suas próprias propriedades, os dois chamados logo se destacarão em contraste. Ou os guerreiros devem subjugar os cidadãos e, nesse caso, seria duvidoso que eles pudessem partir em expedições de saque deixando uma população oprimida em casa ou os cidadãos conseguiriam obter a vantagem. No último caso, os guerreiros serão reduzidos a mercenários e proibidos de sair em busca de pilhagem porque, como um perigo permanente, eles não podem ficar muito poderosos.
Em qualquer dos casos, o Estado deve perder seu caráter puramente militar. Portanto, qualquer enfraquecimento das instituições “comunistas” envolve um enfraquecimento da natureza militar do Estado, e a sociedade guerreira é lentamente transformada em industrial.[18]
As forças que conduzem um Estado militar ao socialismo podem ser claramente observadas na Grande Guerra. Quanto mais a guerra durou e quanto mais os estados da Europa foram transformados em campos armados, mais politicamente insustentável parecia a distinção entre o homem que lutou, que teve que suportar as adversidades e os perigos da guerra, e o homem que permaneceu em casa para lucrar com o boom da guerra. O fardo foi distribuído de maneira muito desigual. Se a distinção tivesse persistido e a guerra tivesse continuado por mais tempo, os países teriam infalivelmente se dividido em duas facções e os exércitos finalmente voltariam suas armas contra seus próprios parentes. O socialismo dos exércitos conscritos exige como complemento o Socialismo do trabalho conscrito em casa.
O fato de não poderem preservar seu caráter militar sem uma organização comunista não fortalece os Estados guerreiros na guerra. O comunismo é para eles um mal que devem aceitar; ele produz uma fraqueza pela qual eles eventualmente perecem. A Alemanha, nos primeiros anos da guerra, trilhou o caminho do socialismo porque o espírito socialista-estatista militar, responsável pela política que conduziu à guerra, a conduziu ao socialismo de Estado. Perto do fim da guerra, a socialização foi levada a cabo com cada vez mais energia porque, pelas razões que acabamos de expor, era necessário criar condições em casa semelhantes às da frente. O socialismo de Estado não aliviou a situação na Alemanha, mas a piorou; não estimulou a produção, mas a restringiu; não melhorou o abastecimento do exército e dos que estavam em casa, mas o tornou pior.[19] E nem é preciso dizer que foi culpa do espírito socialista-estatista que, nas tremendas convulsões da guerra e da revolução subsequente, nenhum indivíduo forte surgiu do povo alemão.
A menor produtividade dos métodos comunistas de atividade econômica é uma desvantagem para o Estado guerreiro comunista quando entra em conflito com os membros mais ricos e, portanto, mais bem armados e abastecidos de nações que reconhecem o princípio da propriedade privada. A destruição da iniciativa do indivíduo, é inevitável sob o socialismo, priva-o na hora decisiva da batalha de líderes que podem mostrar o caminho para a vitória, e subordinados que podem cumprir as suas instruções. O grande Estado comunista dos Incas[20] foi facilmente derrubado por um punhado de espanhóis. Se o inimigo contra o qual o estado guerreiro tem de lutar é encontrado em casa, então podemos falar de um comunismo de senhores dominantes. “Comunismo de cassino” foi o nome dado por Max Weber aos arranjos sociais dos Dorians em Esparta devido aos seus hábitos de comer juntos.[21] Se a casta dominante, em vez de adotar instituições comunistas, atribuir terras juntamente com os seus habitantes a propriedade, desta forma, o Estado perde o caráter baseado no desencadear de uma guerra. Este desenvolvimento teve lugar nos reinos dos Langovardos, dos Godos Ocidentais e dos Francos e em todas as regiões onde normandos apareceram como conquistadores.
§4
Cristianismo socialista
Uma organização teocrática do Estado exige uma economia familiar autossuficiente ou a organização socialista da indústria. É incompatível com uma ordem econômica que permite ao indivíduo agir livremente para desenvolver suas capacidades. A fé simples e o racionalismo econômico não podem viver juntos. É impensável que sacerdotes governem empresários.
O socialismo cristão, como se enraizou nas últimas décadas entre incontáveis seguidores de todas as igrejas cristãs, é apenas uma variedade do socialismo de Estado. O socialismo de Estado e o socialismo cristão estão tão emaranhados que é difícil traçar uma linha clara entre eles, ou dizer que os socialistas individuais pertencem a um ou a outro. Mais ainda do que o estatismo, o socialismo cristão é tomado pela ideia de que o sistema econômico seria perfeitamente estacionário se o desejo de lucro e ganho pessoal dos homens que direcionam seus esforços exclusivamente para a satisfação dos interesses materiais não perturbasse seu curso suave. A vantagem de melhorias progressivas nos métodos de produção é admitida, mesmo que apenas com limitações; mas o socialista cristão não entende claramente que são apenas essas inovações que perturbam o curso pacífico do sistema econômico. Na medida em que isso seja reconhecido, a situação existente é preferível a qualquer progresso posterior. A agricultura e o artesanato, talvez com pequenos negócios, são as únicas ocupações admissíveis. O comércio e a especulação são supérfluos, prejudiciais e perversos. As fábricas e as indústrias de grande escala são uma invenção perversa do “espírito judaico”; eles produzem apenas mercadorias ruins que são impostas aos compradores pelas grandes lojas e por outras monstruosidades do comércio moderno em detrimento dos compradores. É dever da legislação suprimir esses excessos do espírito empresarial e devolver ao artesanato o lugar de produção do qual foi deslocado pelas maquinações do grande capital.[22] As grandes empresas de transporte que não podem ser abolidas devem ser nacionalizadas.
A ideia básica do socialismo cristão que permeia todos os ensinamentos de seus representantes é puramente estacionária em questão de perspectiva. No sistema econômico que eles têm em mente, não há empresário, nem especulação, nem lucro “excessivo”. Os preços e salários exigidos e fornecidos são “justos”. Todos estão satisfeitos com sua sorte porque a insatisfação significaria rebelião contra as leis divinas e humanas. Para os incapazes de trabalhar, a caridade cristã providenciará. Este ideal afirmado foi alcançado na época medieval. Somente a descrença poderia ter expulsado a humanidade deste paraíso. Para ser reconquistada, a humanidade deve primeiro encontrar o caminho de volta à Igreja. O iluminismo e o pensamento liberal criaram todo o mal que aflige o mundo atual.
Os protagonistas da reforma social cristã, via de regra, não consideram sua sociedade cristã ideal como socialista. Mas isso é simplesmente autoengano. O socialismo cristão parece ser conservador porque deseja manter a ordem de propriedade existente, ou mais apropriadamente parece reacionário porque deseja restaurar e então manter uma ordem de propriedade que prevaleceu no passado. Também é verdade que combate com grande energia os planos dos socialistas de outras tendências para uma abolição radical da propriedade privada e, em oposição a eles, afirma que não é o socialismo, mas uma reforma social. Mas o conservadorismo só pode ser alcançado pelo socialismo. Onde a propriedade privada dos meios de produção existe não apenas no nome, mas de fato, a renda não pode ser distribuída de acordo com uma ordem historicamente determinada ou de qualquer outra forma permanentemente estabelecida. Onde existe propriedade privada, apenas os preços de mercado podem determinar a formação da renda. Na medida em que isso é realizado, o reformador social cristão é levado passo a passo ao socialismo, que para ele só pode ser socialismo de Estado. É necessário que ele veja que, de outra forma, não pode haver aquela adesão completa ao estado de coisas tradicional que seu ideal exige. Ele vê que os preços e salários fixos não podem ser mantidos, a menos que desvios deles sejam ameaçados por ameaças de punição de uma autoridade suprema. Ele também deve perceber que salários e preços não podem ser determinados arbitrariamente de acordo com as ideias de um salvador mundial, uma vez que todo desvio dos preços de mercado destrói o equilíbrio da vida econômica. Ele deve, portanto, passar progressivamente de uma demanda por regulação de preços para uma demanda por um controle supremo sobre a produção e distribuição. É o mesmo caminho que o estatismo prático tem seguido. No final, em ambos os casos, há um socialismo rígido que deixa a propriedade privada apenas no nome e, de fato, transfere todo o controle sobre os meios de produção para o Estado.
Apenas uma parte do movimento socialista cristão subscreveu abertamente este programa radical. Os outros evitaram uma declaração aberta. Eles têm evitado ansiosamente tirar as conclusões lógicas de suas premissas. Eles dão a entender que estão combatendo apenas as excrescências e os abusos da ordem capitalista; eles protestam que não têm o menor desejo de abolir a propriedade privada; e enfatizam constantemente sua oposição ao socialismo marxista. Mas eles percebem caracteristicamente que essa oposição consiste principalmente em diferenças de opinião quanto à forma como o melhor estado social pode ser alcançado. Eles não são revolucionários e esperam tudo de uma compreensão crescente de que a reforma é necessária. De resto, proclamam constantemente que não desejam atacar a propriedade privada. Mas o que eles retiveram é apenas o nome da propriedade privada. Se o controle da propriedade privada for transferido para o Estado, o proprietário é apenas um funcionário, um governante da administração econômica.
Pode-se ver imediatamente como o socialismo cristão de hoje corresponde ao ideal econômico dos escolásticos medievais. O ponto de partida, a demanda por salários e preços “justos”, isto é, por uma distribuição de renda definida historicamente alcançada, é comum a ambos. Somente a compreensão de que isso é impossível se o sistema econômico retém a propriedade privada dos meios de produção força o movimento da reforma cristã moderna ao socialismo. Para atender às suas demandas, devem adotar medidas que, ainda que retendo formalmente a propriedade privada, conduzam à plena socialização da sociedade.
Será mostrado mais tarde que esse socialismo cristão moderno nada tem a ver com o suposto comunismo dos primeiros cristãos. A ideia socialista é nova para a Igreja. Isso não é alterado pelo fato de que o desenvolvimento mais recente da teoria social cristã levou a Igreja[23] a reconhecer a legitimidade fundamental da propriedade privada dos meios de produção, enquanto o ensino da Igreja primitiva, em vista do mandamento dos evangelhos condenando toda atividade econômica, evitou aceitar incondicionalmente até mesmo o nome de propriedade privada. Pois devemos entender o que a Igreja fez ao reconhecer a legitimidade da propriedade privada, apenas como oposição aos esforços dos socialistas para derrubar à força a ordem existente. Na realidade, a Igreja não deseja nada além do socialismo de Estado de uma forma particular.
A natureza dos métodos socialistas de produção é independente dos métodos concretos envolvidos na tentativa de realizá-lo. Toda tentativa de socialismo, por mais que seja realizada, deve naufragar na impraticabilidade de estabelecer uma economia puramente socialista. Por essa razão, e não por causa de deficiências no caráter moral da humanidade, o socialismo deve falhar.
Pode-se admitir que as qualidades morais exigidas dos membros de uma comunidade socialista poderiam ser mais bem promovidas pela Igreja. O espírito que deve prevalecer em uma comunidade socialista é mais semelhante ao de uma comunidade religiosa. Mas para superar as dificuldades na forma de estabelecer uma comunidade socialista seria necessária uma mudança na natureza humana ou nas leis da natureza que nos rodeia, e nem mesmo a fé pode fazer isso acontecer.
§5
A economia planejada
A então chamada economia planejada (Planwirtschaft) é uma variação recente do socialismo.
Todas as tentativas de realizar o socialismo esbarram rapidamente em dificuldades intransponíveis. Isso é o que aconteceu ao socialismo de Estado Prussiano. O fracasso da nacionalização foi tão impressionante que não pôde ser esquecido. As condições nos empreendimentos governamentais não eram de molde a encorajar passos adicionais ao longo do caminho para o controle estadual e municipal. A culpa foi lançada aos funcionários. Foi um erro excluir o “homem de negócios”. De uma forma ou de outra, as habilidades do empresário devem ser colocadas a serviço do socialismo. Dessa noção surgiu o arranjo de empresa “mista”. Em vez da nacionalização ou municipalização total, temos o empreendimento privado do interesse do estado ou município. Desse modo, por um lado, atende-se à demanda de quem pensa não ser correto que o Estado e os municípios não participem da rentabilidade dos empreendimentos levados a cabo sob seu respectivo domínio. (Claro que o Estado pode obter e obtém a sua parte de forma mais eficaz por meio de impostos, sem expor as finanças públicas à possibilidade de perda.) Por outro lado, considera-se que este sistema traz todos os poderes ativos do empresário a serviço da empresa comum — um erro grosseiro. Pois, assim que os representantes do governo participam da administração, entram em jogo todos os obstáculos que paralisam a iniciativa dos funcionários públicos. A forma “mista” de empresa permite isentar empregados e trabalhadores da regulamentação aplicável aos funcionários públicos e, desse modo, atenuar ligeiramente os efeitos nocivos que o espírito oficial exerce sobre a rentabilidade das empresas. Certamente, as empresas mistas se saíram melhor em geral do que as empresas puramente governamentais. Entretanto, isto não mostra mais que o socialismo é aplicável do que os bons resultados ocasionalmente mostrados pelos empreendimentos públicos individuais. O fato de ser possível, em certas circunstâncias favoráveis, conduzir uma empresa pública com algum sucesso no seio de uma sociedade econômica, baseada de outra forma na propriedade privada dos meios de produção, não prova que uma socialização completa da sociedade seja praticável.
Durante a Grande Guerra, as autoridades da Alemanha e da Áustria tentaram, sob o socialismo de guerra, deixar aos empresários a direção das empresas nacionalizadas. A pressa com que as medidas socialistas foram adotadas em condições de guerra muito difíceis e o fato de que, no início, ninguém tinha uma ideia clara das implicações fundamentais da nova política, nem de até que ponto ela deveria ser levada, não deixou outro significado aberto. A direção de ramos individuais de produção foi transferida para associações obrigatórias de empregadores, que foram colocadas sob a supervisão do governo. A regulamentação dos preços, por um lado, e a tributação drástica dos lucros, por outro, deveriam garantir que o empregador não fosse mais do que um empregado compartilhando o rendimento.[24] O sistema funcionou muito mal. No entanto, era necessário aderir a ele, a menos que todas as tentativas de socialismo fossem abandonadas, porque ninguém conhecia nada melhor para colocar em seu lugar. O memorando do Ministério da Economia da Alemanha (7 de maio de 1919), redigido por Wissell e Moellendorff, afirma em palavras simples, que não havia nada que um governo socialista pudesse fazer senão manter o sistema conhecido durante a guerra como “economia de guerra”. “Um governo socialista”, diz, “não pode ignorar o fato de que, por causa de alguns abusos, a opinião pública está sendo envenenada por críticas mau intencionadas contra uma economia sistematicamente planejada; é possível melhorar o sistema planejado; é possível reorganizar a velha burocracia; é possível até mesmo uma forma de autogoverno assumir a responsabilidade para com as pessoas envolvidas no negócio; mas deve proclamar-se adepto da economia planejada compulsória: isto é, adepto dos conceitos mais impopulares de dever e coerção.”[25]
A economia planejada é um esquema socialista que tenta resolver de uma maneira particular o problema insolúvel da responsabilidade do órgão atuante. Não apenas a ideia na qual essa tentativa se baseia é deficiente, mas a solução em si é apenas uma farsa, e que os criadores e defensores desse esquema devam negligenciar isso, é particularmente característico da atitude mental do funcionalismo. A autogestão concedida a áreas individuais e a ramos individuais de produção é importante apenas em questões menores, pois o centro de gravidade da atividade econômica está no ajuste entre áreas individuais e ramos individuais de produção. Esse ajuste só pode ocorrer de maneira uniforme; se isso não fosse previsto, todo o plano teria que ser considerado sindicalista. Na verdade, Wissel e Moellendorff vislumbram um Conselho Econômico de Estado que tem o “controle supremo do sistema econômico alemão em cooperação com os mais altos órgãos competentes do Estado”. Portanto, em essência, toda a proposta nada mais é do que a responsabilidade pela administração econômica seja compartilhada entre os ministros e uma segunda autoridade.
O socialismo de economia planificada distingue-se do socialismo de Estado do Estado Prussiano sob os Hohenzollerns principalmente pelo fato de que a posição privilegiada no controle de negócios e na distribuição de renda, que este último distribuiu aos Junkers e aos burocratas, está aqui atribuído ao empresário ci-devant. Esta é uma inovação ditada pela mudança da situação política resultante da catástrofe que assolou a Coroa, a nobreza, a burocracia e a classe de oficiais; além disso, não tem significado para o problema do socialismo.
Nos últimos anos, uma nova palavra foi encontrada para o que era abrangido pela expressão “economia planificada”: Capitalismo de Estado. Sem dúvida, no futuro, muitas outras propostas para a salvação do socialismo serão apresentadas. Conheceremos muitos novos nomes para a mesma coisa. Mas a coisa, não seus nomes, é o que importa, e todos os esquemas desse tipo não alterarão a natureza do socialismo.
§6
Socialismo de Guilda
Nos primeiros anos após a Guerra Mundial, as pessoas na Inglaterra e no continente consideravam o socialismo de guilda uma panaceia. Há muito foi esquecido. No entanto, não devemos deixá-lo em silêncio ao discutir projetos socialistas; pois representa a única contribuição para os planos socialistas modernos feitos pelos anglo-saxões, em questões econômicas dos povos mais avançados. O socialismo de guilda é outra tentativa de superar o problema insolúvel de uma direção socialista da indústria. Não foi necessário o fracasso das atividades socialistas de Estado para abrir os olhos do povo inglês, preservado pelo longo reinado das ideias liberais daquela supervalorização do Estado que prevaleceu na Alemanha moderna. O socialismo na Inglaterra nunca foi capaz de superar a desconfiança na capacidade do governo de regular todos os assuntos humanos. Os ingleses sempre reconheceram o grande problema que outros europeus antes de 1914 mal haviam compreendido.
No socialismo de guilda, três coisas diferentes devem ser distinguidas. Estabelece-se a necessidade de substituir o sistema capitalista por um socialista; essa teoria totalmente eclética não precisa nos preocupar mais. Ele também fornece uma maneira pela qual o socialismo pode ser realizado; isso só é importante para nós na medida em que pode muito facilmente levar ao sindicalismo em vez do socialismo. Finalmente, ele traça o programa de uma futura ordem socialista da sociedade. É com isso que estamos preocupados. O objetivo do socialismo de guilda é a socialização dos meios de produção. Portanto, temos justificativa para chamá-lo de socialismo. A sua característica única é a estrutura particular que confere à organização administrativa do futuro Estado socialista. A produção deve ser controlada pelos trabalhadores em ramos individuais de produção. Eles elegem capatazes, gerentes e outros líderes empresariais, e regulam direta e indiretamente as condições de trabalho e ordenam os métodos e objetivos da produção.[26] As guildas, como organizações dos produtores nos ramos individuais da indústria, encaram o Estado como a organização dos consumidores. O Estado tem o direito de tributar as guildas e, portanto, pode regular sua política[27] de preços — e salários.
O socialismo de guilda se engana muito ao acreditar que dessa forma poderia criar uma ordem socialista da sociedade que não colocaria em risco a liberdade do indivíduo e evitaria todos aqueles males do socialismo centralizado, tal qual o prussiano[28], que os ingleses detestam. Mesmo em uma sociedade socialista de guilda, todo o controle da produção pertence ao Estado. Só o Estado define o objetivo da produção e determina o que deve ser feito para atingir esse objetivo. Direta ou indiretamente, por meio de sua política tributária, determina as condições de trabalho, movimenta capital e trabalho de um ramo da indústria para outro, faz ajustes e atua como intermediário entre as próprias corporações e entre produtores e consumidores. Essas tarefas que cabem ao Estado são as únicas importantes e constituem a essência do controle econômico.[29] O que resta às corporações individuais e, dentro delas, aos sindicatos locais e aos interesses individuais é a execução das tarefas que lhes são atribuídas pelo Estado. Todo o sistema é uma tentativa de traduzir a constituição política do Estado inglês para a esfera da produção; seu modelo é a relação que os governos locais têm com o governo central. O socialismo de guilda se descreve como Federalismo econômico. Mas na constituição política de um estado liberal não é difícil conceder uma certa independência ao governo local. A necessária coordenação das partes no todo é suficientemente assegurada pela obrigação imposta a cada unidade territorial de administrar seus negócios de acordo com as leis. Mas, no caso da produção, isso está longe de ser suficiente. A sociedade não pode deixar que os próprios trabalhadores em ramos individuais de produção determinem a quantidade e a qualidade do trabalho que realizam e como os meios materiais de produção envolvidos devem ser aplicados.[30] Se os trabalhadores de uma guilda trabalham com menos zelo ou usam os meios de produção com desperdício, este é um assunto que diz respeito não apenas a eles, mas a toda a sociedade. O Estado encarregado da direção da produção não pode, portanto, abster-se de se ocupar dos assuntos internos da corporação. Se não for permitido exercer controle direto pela nomeação de gerentes e diretores de fábrica, então de alguma outra forma — talvez pelos meios que estão disponíveis no direito tributário, ou a influência que tem sobre a distribuição de bens de consumo — deve esforçar-se para reduzir a independência das guildas a uma fachada sem sentido. São os capatazes que estão em contato diário e de hora em hora com o trabalhador individual para dirigir e supervisionar seu trabalho que são mais odiados pelo trabalhador. Os reformadores sociais, que assumem ingenuamente os sentimentos dos trabalhadores, podem acreditar ser possível substituir esses órgãos de controle por homens de confiança escolhidos pelos próprios trabalhadores. Isso não é tão absurdo quanto a crença dos anarquistas de que todos estariam preparados sem coerção para observar as regras indispensáveis para a vida comunal; mas não é muito melhor. A produção social é uma unidade em que cada parte deve desempenhar exatamente sua função na estrutura do todo. Não pode ser deixado ao critério da parte determinar como ela se ajustará ao esquema geral. Se o capataz livremente escolhido não demonstrar em seu trabalho de supervisão o mesmo zelo e energia que aquele não escolhido pelos trabalhadores, a produtividade do trabalho cairá.
O socialismo de guilda, portanto, não elimina nenhuma das dificuldades no modo de estabelecer uma ordem socialista da sociedade. Torna o socialismo mais aceitável para o espírito inglês ao substituir a palavra nacionalização, que soa desagradável aos ouvidos ingleses, pela palavra-chave ‘Autogestão na Indústria’. Mas, em essência, não oferece nada diferente do que os socialistas continentais recomendam hoje, a saber, a proposta de deixar a direção da produção para os comitês de trabalhadores e empregados engajados na produção, e de consumidores. Já vimos que isso não nos deixa mais perto de resolver o problema do socialismo.
O socialismo de guilda deve muito de sua popularidade aos elementos sindicalistas que muitos de seus adeptos acreditam poderem ser encontrados nele. O socialismo de guilda, como o concebe seus representantes literários, sem dúvida não é sindicalista. Mas a maneira como se propõe a atingir seu fim pode muito facilmente levar ao sindicalismo. Se, para começar, guildas nacionais fossem estabelecidas em certos ramos de produção importantes que teriam de funcionar em um sistema capitalista de outra forma, isso significaria a sindicalização de ramos individuais da indústria. Como em todos os lugares, também aqui o que parece ser o caminho para o socialismo pode, na verdade, ser facilmente o caminho para o sindicalismo.
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Notas
[1] Engels, Herrn Eugen Dührings Umwälzung der Wissenschaft, p. 299. Nota do tradutor para o inglês: p. 385 na edição em inglês.
[2] Kautsky, Das Erfurter Programm, 12th Edition, Stuttgart 1914, p. 129.
[3] Engels, Herrn Eugen Dührings Umwälzung der Wissenschaft, p. 298 et seq. Nota do tradutor para o inglês: p. 385 na edição em inglês.
[4] Kautsky, Das Erfurter Programm, p. 129.
[5] Kautsky, Das Erfurter Programm, p. 130.
[6] Veja acima p. 119 et seq.
[7] Bericht, der Sozialisierungskommission über die Frage der Sozialisierung des Kohlenbergbaues vom 31 Juli 1920, com apêndice: Vorläufiger Bericht vom 15 Februar 1919 2nd edition, Berlim 1920, p. 32 et seq.
[8] Bericht der Sozialisierungskommission über die Frage der Sozialisierung des Kohlenbergbaues vom 31 Juli, 1920, com apêndice: Vorläufiger Bericht vom 15 Februar 1919, 2nd edition, Berlim 1920, p. 37.
[9] Philipp v. Arnim, Ideen zu einer vollständigen landwirtschaftlichen Buchhaltung, 1805, p. vi (citado por Waltz, Vom Reinertrag in der Landwirtschaft, p. 20).
[10] Philipp v. Arnim, Ideen zu einer vollständigen landwirtschaftlichen Buchhaltung, 1805, p. 2 (citado em Waltz, op. Cit., P. 21). Veja também Lenz, Agrarlehre und Agrarpolitik der deutschen Romantik, Berlim, 1912, p. 84. Veja comentários semelhantes do Príncipe Alois Liechtenstein, um líder dos Socialistas Cristãos Austríacos, citados em Nitti, Le Socialisme Catholique (Paris, 1894), p. 370 et seq.
[11] Kautsky, Die Soziale Revolution, II, p. 33.
[12] Ibid., p. 35.
[13] Bourguin, Die sozialistischen Systeme, p. 62 et seq.
[14] Andler, Les Origines du Socialisme d’Etat en Allemagne, 2nd edition, Paris 1911, p. 2, enfatiza especialmente esse caráter do Socialismo de Estado.
[15] Sobre Lipara, ver Poehlmann, Geschichte der sozialen Frage und des Sozialismus in der antiken welt, Vol. I, p. 44 et seq.
[16] Max Weber, “Der Streit um den Charakter der altgermanischen Sozialverfassung in der deutschen Literatur des letzten Jahrzehnts”, (Jahrbücher für Nationalökonomie und Statistik, Vol. XXVIII, 1904, p. 445).
[17] Caesar, De bello Gallico, IV, 1.
[18] Herbert Spencer, Die Prinzipien der Soziologie, traduzido por Vetter, Vol. II, Stuttgart 1899, p. 720 et seq. Nota do Editor: Em inglês, The Principles of Sociology, Nova York: Appleton 1897, Vol. II, Parte V, p. 610 et seq.
[19] Veja minha obra Nation, Staat und Wirtschaft, p. 115 et seq.; 143 et seq.
[20] Wiener (Essai sur les institutions politiques, religieuses, economiques et sociales de l’Empire des Incas, Paris 1874, pp. 64, 90 e seguintes) atribui a fácil conquista do Peru por Pizarro ao fato de o comunismo ter enervado o povo
[21] Max Weber, Der Streit um der Charakter der altgermanischen Sozialverfassung in der deutschen Literatur des letzten Jahrzehnts (Jahrbücher für Nationalökonomie und Statistik, Vol. XXVIII, 1904), p. 445.
[22] Ver as críticas à política econômica do Partido Austríaco Cristão-Socialista em Sigmund Mayer, Die Aufhebung des Befähigungmachweises in Osterreich, Leipzig l894, especialmente p. 124 et seq.
[23] No texto acima, sempre falamos apenas da Igreja em geral, sem considerar as diferenças entre as várias denominações. Isso é perfeitamente admissível. A evolução para o Socialismo é comum a todas as denominações. No catolicismo, a encíclica de Leão XIII, “Rerum Novarum”, de 1891, reconheceu a origem da propriedade privada no Direito Natural; mas, simultaneamente, a Igreja estabeleceu uma série de princípios éticos fundamentais para a distribuição de renda, que só poderiam ser colocados em prática sob o Socialismo de Estado. Nessa base está também a encíclica de Pio XI, “Quadragesimo anno” de 1931. No protestantismo alemão, a ideia socialista cristã está tão ligada ao Socialismo de Estado que dificilmente se pode distinguir os dois.
[24] Sobre a guerra-socialismo e suas consequências, ver meu Nation, Staat und Wirtschaft, p. 140 et seq.
[25] Denkschrift des Reichswirtschaftsministeriums, reimpresso em Wissell, p. 106.
[26] “Os homens de guilda se opunham à propriedade privada da indústria, e são fortemente a favor de propriedade pública. Claro que isto não significa que eles desejem ver a indústria burocraticamente administrado por departamentos de Estado. Eles estão sob o controle de indústria pelas Guildas Nacionais, incluindo todo o pessoal da indústria. Mas eles não desejam a propriedade de qualquer indústria por parte dos trabalhadores que nela trabalham. A meta deles é estabelecer a democracia industrial, colocando a administração nas mãos de os trabalhadores, mas, ao mesmo tempo, para eliminar o lucro, colocando a propriedade no mãos do público. Assim, os trabalhadores de uma guilda não estarão trabalhando com fins lucrativos: os preços das suas mercadorias e, pelo menos indiretamente, o nível da sua remuneração estar sujeito a uma medida de controlo público. O sistema do Grêmio é uma das parcerias industriais entre os trabalhadores e o público, e é, portanto, muito distinguido das propostas apresentadas como ‘sindicalista’ […] A ideia do governo das Guildas Nacionais é a de autogoverno industrial e democracia. Os homens de guilda sustentam que os princípios democráticos são plenamente aplicáveis tanto à indústria como à política”. (Cole, Chaos and Order in Industry, Londres 1920, p. 58 et seq.)
[27] Cole, Self-Government in lndustry, 5th Edition, Londres 1920, p. 235 et seq.; também Schuster, Zum englischen Gildemsozialismus (Jahrbücher für Nationalökonomie und Statistics, Vol. CXV) p. 487 et seq.
[28] Cole, Self-Government in lndustry, p. 255.
[29] Denkschrift des Reichswirtschaftsministeriums, reimpresso em Wisaell, p. 116.
[30] Tawney (The Acquisitive Society, Londres 1921, p. 122) considera que a vantagem do Sistema de Grêmios para o trabalhador é que põe fim ao “sistema odioso e degradante sob o qual ele é atirado para o lado como material não utilizado sempre que os serviços bis não são necessários”. Mas apenas isto revela o mais grave defeito do sistema recomendado. Se não for necessário construir mais, porque existem construções relativamente suficientes, mas é preciso construir de modo a ocupar os trabalhadores da construção civil que não estão dispostos a mudar para outros ramos de produção que sofrem de uma escassez comparativa de trabalho, a posição é pouco econômica e esbanjadora. O próprio fato de o capitalismo obrigar os homens a mudar as suas ocupações é a sua vantagem do ponto de vista do General Best, ainda que possa prejudicar diretamente os interesses especiais dos pequenos grupos.