Capítulo III —  Comércio exterior sob o socialismo

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§1
Autarquia e socialismo

Uma comunidade socialista, que não incluísse toda a humanidade, não teria motivos para permanecer isolada do resto do mundo. É verdade que pode ser inquietante para os governantes de tal Estado que ideias estrangeiras ultrapassem as fronteiras com produtos estrangeiros. Eles poderiam temer pela permanência de seu sistema, se seus súditos pudessem comparar sua posição com a de estrangeiros que não eram cidadãos de uma comunidade socialista. Mas essas são considerações políticas e não se aplicam se os países estrangeiros também forem socialistas. Além disso, um estatista que está convencido da conveniência do socialismo deve esperar que as relações com os estrangeiros os tornem também socialistas: ele não teme que isso possa prejudicar o socialismo de seus próprios compatriotas.

Quais as desvantagens que surgiriam do fechamento das fronteiras contra a importação de bens estrangeiros para o abastecimento dos camaradas socialistas  é dito pela teoria do livre comércio. O capital e o trabalho teriam de ser aplicados em condições produtivas relativamente desfavoráveis, gerando um rendimento menor do que o obtido de outra forma. Um exemplo extremo deixará isso claro. Às custas de um enorme gasto de capital e trabalho, uma Alemanha socialista poderia cultivar café em estufas. Mas obviamente seria mais vantajoso adquiri-lo do Brasil em troca de produtos cujas condições de produção na Alemanha fossem mais favoráveis.[1]

§2
Comércio exterior sob o socialismo

Tais considerações indicam os princípios nos quais uma comunidade socialista teria de basear sua política comercial. Na medida em que aspirava a permitir que suas ações fossem guiadas puramente por considerações econômicas, ela precisaria ter por objetivo assegurar exatamente o que em plena liberdade de comércio seria assegurado pelo curso irrestrito das forças econômicas. A comunidade socialista limitaria suas atividades à produção das mercadorias que poderia produzir em condições comparativamente mais favoráveis do que as existentes no exterior, e exploraria cada linha de produção apenas na medida em que essa vantagem relativa se justificasse. Ela obteria todas as outras mercadorias do exterior por meio de troca.

Esse princípio fundamental é válido quer o comércio com o exterior seja ou não realizado pelo recurso a um meio geral de troca — pelo recurso ao dinheiro — ou não. No comércio exterior, assim como no comércio interno — não há diferença entre eles — nenhuma produção racional poderia se dar sem o cálculo da moeda e a formação dos preços dos meios de produção. Sobre este ponto, não temos nada a acrescentar ao que já dissemos. Mas aqui desejamos considerar uma comunidade socialista, existindo em um mundo que, de outra forma, não seria socialista. Essa comunidade poderia estimar e calcular em dinheiro exatamente da mesma forma que uma ferrovia estadual ou uma rede municipal de água, existindo em uma sociedade baseada na propriedade privada dos meios de produção.

§3
Investimento Estrangeiro

Ninguém é indiferente perante como as coisas estão para seu vizinho. Uma vez que a produtividade do trabalho aumenta através da divisão do trabalho, é de interesse de todos que isso seja realizado na medida do possível. Eu também ficaria prejudicado se ainda houvesse pessoas que mantivessem uma autarquia de suas economias domésticas: pois, se elas afrouxassem seu isolamento, a divisão do trabalho poderia se tornar ainda mais abrangente. Se os meios de produção estão nas mãos de agentes relativamente ineficientes, o dano é universal.

Sob o capitalismo, a busca de lucro dos empresários individuais harmoniza os interesses do indivíduo com os da comunidade. Por um lado, o empresário está sempre em busca de novos mercados e vendendo abaixo com mercadorias mais baratas e melhores os produtos mais caros e inferiores de uma produção menos racionalmente organizada.

Por outro lado, ele está sempre buscando fontes de matéria-prima mais baratas e produtivas e abrindo locais mais favoráveis para a produção. Essa é a verdadeira natureza daquela tendência expansiva do capitalismo, que a propaganda neomarxista deturpa completamente como a “Verwertungsstreben des Kapitals” e tão incrivelmente envolvida em uma explicação do imperialismo moderno.

A velha política colonial da Europa era mercantilista, militarista e imperialista. Com a derrota do mercantilismo pelas ideias liberais, o caráter da política colonial mudou completamente. Das antigas potências coloniais, Espanha, Portugal e França perderam a maior parte de suas antigas posses. A Inglaterra, que se tornara a maior das potências coloniais, administrava suas posses de acordo com os princípios da teoria do livre comércio. Não era absurdo para os livre-mercadistas ingleses falar da vocação da Inglaterra de elevar os povos atrasados a um estado de civilização. A Inglaterra demonstrou por atos que considerava sua posição na Índia, nas Colônias da Coroa e nos Protetorados, uma obrigação geral da civilização europeia. Não é hipocrisia quando os liberais ingleses falam do governo da Inglaterra nas colônias como sendo não menos útil para os habitantes e para o resto do mundo do que é para a Inglaterra. O simples fato de a Inglaterra ter preservado o livre comércio na Índia mostra que ela concebeu sua política colonial em um espírito bem diferente daquele dos estados que entraram ou reentraram na esfera da política colonial nas últimas décadas do século XIX — França, Alemanha, Estados Unidos, Japão, Bélgica e Itália. As guerras travadas pela Inglaterra durante a era do liberalismo para estender seu império colonial e abrir territórios que se recusavam a admitir o comércio exterior lançaram as bases da economia mundial moderna.[2] Para medir o verdadeiro significado dessas guerras, basta imaginar o que teria acontecido se a Índia e a China e seu interior tivessem permanecido fechados ao comércio mundial.

Não apenas cada chinês e cada hindu, mas também cada europeu e cada americano estariam em uma situação consideravelmente pior se a Inglaterra perdesse a Índia hoje, e se aquela grande terra, tão ricamente dotada pela natureza, afundasse na anarquia, de modo que não oferecesse mais um mercado para o comércio internacional ou não oferecesse mais um mercado tão grande — haveria uma catástrofe econômica de primeira ordem.

O liberalismo visa abrir todas as portas fechadas ao comércio. Mas de forma alguma deseja obrigar as pessoas a comprar ou vender. Seu antagonismo se limita aos governos que, ao impor proibições e outras limitações ao comércio, excluem seus súditos das vantagens de participar do comércio mundial e, portanto, prejudicam o padrão de vida de toda a humanidade. A política liberal nada tem em comum com o imperialismo. Ao contrário, visa derrubar o imperialismo e expulsá-lo da esfera do comércio internacional.

Uma comunidade socialista teria de fazer o mesmo. Também não seria capaz de permitir que áreas ricamente dotadas pela natureza fossem permanentemente excluídas do comércio internacional, nem que nações inteiras se abstivessem de trocas. Mas aqui o socialismo encontraria um problema que só pode ser resolvido sob o capitalismo — o problema da propriedade do capital no exterior.

Sob o capitalismo, como diriam os livre-mercadistas, as fronteiras não têm significado. O comércio fluiria sobre elas sem obstáculos. Elas não proibiriam nem o movimento dos produtores mais adequados para meios de produção imóveis, nem o investimento de meios de produção móveis nos locais mais adequados. A propriedade dos meios de produção seria independente da cidadania. O investimento estrangeiro seria tão fácil quanto o investimento doméstico.

Sob o socialismo, a situação seria diferente. Seria impossível para uma comunidade socialista possuir meios de produção fora de suas próprias fronteiras. Não poderia investir capital no exterior, mesmo se isso pudesse resultar um rendimento superior. Uma Europa socialista precisa permanecer indefesa, enquanto uma Índia socialista explora seus recursos de forma ineficiente e, portanto, traz menos bens ao mercado mundial do que teria trazido de outra forma. Novas ofertas de capital precisam ser utilizadas em condições menos favoráveis na Europa, enquanto na Índia, por falta de novo capital, condições mais favoráveis de produção não são totalmente exploradas. Assim, comunidades socialistas independentes, existindo lado a lado e trocando apenas mercadorias, alcançariam uma posição sem sentido. Independentemente de outras considerações, o próprio fato de suas independências levariam a um estado de coisas em que a produtividade necessariamente diminuiria.

Essas dificuldades não poderiam ser superadas enquanto comunidades socialistas independentes existissem lado a lado. Eles só poderiam ser superados pela amálgama das comunidades separadas em um estado socialista unitário abrangendo o mundo inteiro.

 

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Notas

[1]              É supérfluo contestar os planos da autarquia, que foram discutidos com mais zelo pelos ingênuos litterateurs do círculo “Tat” (Fried, Das Ende des Kapitalismus, Jena 1931). A Autarquia provavelmente depreciaria o padrão de vida do povo alemão incomparavelmente, mais do que o fardo das Reparações multiplicado em cem vezes.

[2]              Ao julgar a política inglesa de abertura da China, as pessoas constantemente colocavam em primeiro plano o fato de que foi o comércio de ópio que deu a ocasião direta e imediata para a eclosão de complicações de guerra. Mas nas guerras que ingleses e franceses travaram contra a China entre 1839 e 1860, o que estava em jogo era a liberdade de comércio geral e não apenas a liberdade do comércio de ópio. O que do ponto de vista do Livre Comércio, nenhuma barreira deve ser colocada no caminho nem mesmo do comércio de venenos, e que cada um deve se abster por seu próprio impulso de gozos prejudiciais ao seu organismo, não é tão vil e mesquinho quanto os escritores socialistas e anglófobos tendem a representar. Rosa Luxemburgo, Die Akkumulation des Kapitals, Berlim, 1913, p. 363 et seq., critica os ingleses e franceses por não ter sido um ato heroico derrotar com armas europeias os chineses, que dispunham apenas de armas obsoletas. Deveriam os franceses e os ingleses também ter entrado em campo apenas com armas e lanças antigas?

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Ludwig von Mises
Ludwig von Mises foi o reconhecido líder da Escola Austríaca de pensamento econômico, um prodigioso originador na teoria econômica e um autor prolífico. Os escritos e palestras de Mises abarcavam teoria econômica, história, epistemologia, governo e filosofia política. Suas contribuições à teoria econômica incluem elucidações importantes sobre a teoria quantitativa de moeda, a teoria dos ciclos econômicos, a integração da teoria monetária à teoria econômica geral, e uma demonstração de que o socialismo necessariamente é insustentável, pois é incapaz de resolver o problema do cálculo econômico. Mises foi o primeiro estudioso a reconhecer que a economia faz parte de uma ciência maior dentro da ação humana, uma ciência que Mises chamou de 'praxeologia'.

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