Desestatizando a polícia

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officer-indexAtualmente, é bastante comum aceitarmos sem questionamentos a ideia completamente falaciosa de que, por algum motivo, a proteção policial, o acesso ao sistema judiciário e até mesmo o acesso a uma acessória jurídica são um “direito” dos cidadãos.  Entretanto, por maior que seja o esforço, defender a ideia de que tais serviços devem ser fornecidos “gratuitamente” (isto é, por meio da tributação) faz tanto sentido quanto dizer que aparelhos de televisão devem ser fornecidos para absolutamente todasas pessoas do país “à custa do erário”.  Ou o indivíduo tem o direito de não tomarem sua vida, sua liberdade e sua propriedade, ou ele não tem direito algum.  Caso ele tenha esse direito, então nada pode justificar que ele seja obrigado a subsidiar as benesses de outra pessoa, inclusive sua proteção policial.

Ou um indivíduo assume a responsabilidade de manter sua própria vida, ou ele é um irresponsável.  Caso ele a assuma, então ele deve ganhar por conta própria os meios necessários para sua sobrevivência, pagando ele próprio por suas necessidades e prazeres.

Em uma sociedade livre, a proteção policial, como qualquer outro serviço, seria algo ofertado em bases contratuais, e somente para aqueles que estivessem dispostos a, e fossem capazes de, pagar por ela.  Em uma sociedade de livre mercado, os serviços policiais poderiam ser financiados de quatro maneiras:

1. por meio de serviços contratuais (similares a um seguro);

2. por meio de taxas para serviços eventuais;

3. por meio de contratos especiais; e

4. por meio de multas.

Vamos discutir cada uma delas por ordem.

Serviços contratuais seriam a principal fonte de receita para um departamento de polícia laissez-faire.  Um contrato de serviço consistiria simplesmente de um acordo contratual entre um departamento de polícia e um indivíduo, pelo qual o departamento de polícia concordaria em fornecer ao indivíduo certos serviços (por exemplo, investigação, defesa física de sua propriedade etc.) caso ele venha a necessitá-los.  Em troca, esse indivíduo pagaria uma taxa anual.

Tais serviços funcionariam essencialmente como uma apólice de seguro.  Virtualmente todos em uma dada sociedade iriam se tornar clientes e pagar uma taxa anual com o intuito de terem a garantia de que, caso haja necessidade, a proteção policial estaria disponível.  Contudo, durante o período de um ano, somente uma pequena fração do número de segurados iria de fato requerer serviços policiais de maior vulto.  Portanto, o custo da proteção policial seria efetivamente dispersado entre um grande número de contribuintes segurados.

Peguemos um exemplo concreto.  Suponha que o custo de uma típica investigação policial em uma pequena cidade seja de $25.000.  Se um indivíduo necessitado de proteção policial tivesse de pagar esse custo todo de uma vez, ele provavelmente não conseguiria.  Entretanto, ao invés de pagar uma taxa específica para tal serviço, é praticamente certo que ele seria um cliente de uma agência de proteção policial, assim como milhões de outros.  Digamos que haja mil segurados, cada um pagando $500 por ano.  A renda total desse pequeno departamento de polícia local seria de $500.000 por ano.

Durante o período de um ano qualquer, é improvável que mais do que quatro ou cinco pessoas, nesse universo de mil, necessitem de proteção policial.  Se o custo dos serviços demandados por cada uma delas fosse de $25.000, o custo total seria de $125.000 por ano, deixando $375.000 para outras funções policiais.  Dado que o indivíduo paga apenas $500 por ano, ele de fato recebeu um benefício (por assim dizer) de praticamente $25.000.  É exatamente assim que funciona uma seguradora: trabalhando com o princípio de que apenas uma fração de seus segurados irá requerer seus serviços em um dado momento, ao mesmo tempo em que vários outros, em número muito maior, estão pagando suas prestações.

A segunda forma de financiamento policial é ainda mais fácil de explicar.  Para a eventualidade — um tanto rara — de um indivíduo requerer proteção policial sem que, no entanto, ele tenha assinado um contrato de longo prazo, e nem queira fazê-lo, ou mesmo para o caso de um indivíduo requisitando algum tipo de serviço especial (como, por exemplo, uma busca por alguém desaparecido), haveria taxas específicas para tais serviços.  É claro que estas seriam bastante elevadas em relação a um acordo contratual normal; porém, em determinados casos, as pessoas demandando tais serviços certamente considerariam válido o preço a se pagar.

A terceira forma de financiamento policial seria a de contratos especiais.  Assim, por exemplo, uma empresa dona de uma rodovia provavelmente iria contratar uma força policial privada para patrulhar sua estrada, dado que é do seu interesse próprio fiscalizar motoristas imprudentes e quaisquer outros atos que porventura viessem a desestimular o uso de sua rodovia e, como consequência, a reduzir seus lucros.  Ou, similarmente, indústrias e centros comerciais iriam contratar serviços policiais para proteger suas instalações, como já ocorre hoje.

Finalmente, as forças policiais em uma sociedade livre poderiam ser financiadas por meio de multas.  Como uma condição contratual para a obtenção de proteção policial, os indivíduos poderiam autorizar os departamentos de polícia a coletar multas em decorrência de contravenções cometidas.  Isso também pouparia custos dispendiosos com serviços judiciários, tanto para a empresa judiciária quanto para o indivíduo.

Vamos agora considerar como as forças policias operariam no livre mercado.  Há dois tipos básicos de crimes operacionais: aqueles reportados (ou descobertos pela polícia) após o fato, e aqueles reportados (ou descobertos pela polícia) durante o fato.

Para o primeiro caso, o procedimento policial seria bastante claro.  Uma família, que ao retornar de um passeio ou de uma viagem descobrisse que sua residência foi invadida, iria chamar a polícia e reportar o fato, assim como faria hoje.

E então (ao contrário do que ocorre hoje), a polícia iria primeiro averiguar se essa família é cliente e está habilitada por contrato a receber essa forma de assistência.  Isso, é claro, poderia ser feito instantaneamente por meio de sistemas eletrônicos e computacionais.  Se a família for segurada e tiver direito a esse tipo de assistência, um policial seria enviado para a residência e daria início à sua investigação.  Se a família não for segurada, ou em seu contrato não constar esse tipo de proteção, um agente de vendas desse departamento policial provavelmente seria enviado junto com um investigador.

Esse agente de vendas iria explicar para a família — a qual agora se tornou uma cliente de alto risco — como ela poderia ampliar seu contrato de modo a cobrir essa situação, caso ela já fosse cliente da agência, ou ele poderia explicar para ela os tipos de contrato agora disponíveis, caso ela ainda não fosse segurada.  Ou ele poderia simplesmente dizer para essa família os custos dessa investigação específica que ela estaria agora requerendo, caso ela quisesse pagar apenas por esse serviço.

Naturalmente, se essa família não tivesse firmado nenhum contrato para o tipo de serviço policial que ela agora está requerendo, ela teria de pagar mais por isso agora do que teria caso já estivesse coberta para esse tipo de serviço — assim como uma pessoa precisa pagar mais por um seguro de automóvel após ter sofrido um acidente.  Entretanto, o ponto principal aqui é que, após o ocorrido, é claramente possível verificar se uma família já era ou não cliente dessa agência policial.  E, em caso negativo, é perfeitamente possível determinar as taxas apropriadas para o serviço agora requerido.

Já os crimes flagrados durante o ato por um policial presente no local oferecem um cenário um tanto diferente.  Se um policial surpreende um assaltante atacando uma pessoa, ele obviamente não terá tempo de verificar se a pessoa sendo atacada é ou não segurado por sua agência policial, mesmo que tal procedimento levasse apenas alguns segundos.  Se essa vítima fosse segurada, ela muito provavelmente iria ficar muito irritada com o fato de que o policial ficou parado checando sua identidade enquanto ela estava sendo submetida a ferimentos graves.  E se ela não fosse segurada, esse policial estaria perdendo um possível cliente para seu departamento.  Por essas razões, entre outras, é bastante razoável dizer que um policial que se deparasse com essa situação sairia imediatamente em auxílio à vítima.

É claro que a pessoa que está sendo atacada não tem nenhum “direito” de exigir que seja salva, assim como ela não tem o direito de exigir que seja alimentada caso esteja com fome.  Proteção policial e comida são mercadorias que devem ser compradas no livre mercado.  O fato de que a pessoa seja uma vítima inocente não altera sua obrigação de zelar por sua própria vida.

Há, entretanto, uma séria de motivos pelos quais um policial iria automaticamente sair em auxílio da vítima nessa situação.  Primeiro, como mencionado acima, a vítima pode ser um atual cliente.  Segundo, a vítima seria um cliente em potencial.  Terceiro, é do interesse próprio do policial garantir que criminosos sejam detidos, já que isso aumentaria os lucros de sua agência policial, ou, mais diretamente, poderia aumentar seu próprio salário.  (É concebível dizer que aumentos salariais e promoções teriam por base a eficácia com a qual um policial efetuou sua função de proteger os cidadãos dos criminosos).

Mas, e se a vítima não for cliente dessa e nem de nenhuma outra agência policial?  De novo, há duas possibilidades.  Primeiro, a vítima poderia gritar “Socorro, polícia!”  Se ela assim o fizesse, ela estaria com efeito fazendo um contrato verbal de assistência policial, assim como você faz um contrato implícito de que irá pagar a conta quando entra em um restaurante e pede uma refeição.  Nesse caso, após salvá-la, o policial apresentaria a conta para a vítima, esperando que ela pague.

No segundo caso, a pessoa não grita “Socorro, polícia!” simplesmente porque está ali, derrubada, dominada e ensanguentada, enquanto o assaltante continua a espancando.  Nesse caso, não há nenhum contrato verbal.  Entretanto, pelos motivos acima mencionados, o policial teria todos os motivos para socorrer a vítima.

Sendo racional, a agência policial também mandaria uma conta para essa pessoa, a qual ela seria solicitada mas não obrigada a pagar.  Dado que a polícia salvou sua vida, há uma grande chance de que ela aceitasse pagar.  Ou, caso essa agência de polícia seja esperta, ela irá despachar um agente de vendas até a vítima para tentar vender uma apólice.  Posto que a vítima foi beneficiada pelos serviços dessa agência, seria bastante provável que ela ao menos comprasse o “pacote de proteção com desconto promocional”.  Caso ela não quisesse comprar nada, e nem mesmo pagar a conta, essa pequena despesa incorrida para salvar sua vida seria facilmente coberta pelas receitas gerais da agência, e certamente nenhum habitante dessa cidade iria reclamar do fato de que o policial dedicou alguns minutos de seu tempo para salvar a vida de uma vítima inocente.

Há, finalmente, pelo menos uma outra maneira como os serviços policiais poderiam ser financiados.  Dado que a investigação de crimes, a proteção da propriedade e outras atividades afins são ações perpetradas por criminosos, seria lógico fazê-los pagar ao menos uma parte do custo de tais operações.  Assim, parte da pena do criminoso, em uma sociedade livre, seria pagar o custo da investigação e da ação que ele provocou.

Esta seria uma das maneiras de se financiar a proteção policial dos mais pobres.[*] Seria interessante ver, caso algum dia haja uma sociedade livre, qual método de financiamento — taxas de serviço ou pagamento extraído de criminosos — funcionaria melhor.

Vou considerar apenas mais uma questão ligada a departamentos policiais: prisões.  Alguns libertários afirmam que prender alguém é uma atitude inerentemente imoral porque seria, com efeito, uma iniciação de força contra pessoas cuja culpa não foi provada “sem qualquer sombra de dúvida”.  Existe, entretanto, uma justificativa epistemológica muito simples para prisões em uma sociedade livre.  Ei-la:

Necessariamente, o homem age com base em seu conhecimento.  Na melhor das hipóteses, o homem pode estar epistemologicamente certo — isto é, certo dentro de um dado contexto de conhecimento.  O homem raramente pode, se é que pode, estar metafisicamente certo — isto é, certo de que não existe qualquer alternativa no universo para seu julgamento.  Estar metafisicamente certo, na maioria dos casos, requer onisciência, algo que o homem claramente não possui.  O homem geralmente pode apenas estar certo de que ele examinou todos os fatos relevantes disponíveis, e os integrou sem qualquer contradição; o que é relevante será, repito, ditado por seu estado de conhecimento.

O conhecimento da verdade das proposições não é uma condição do tipo “ou uma coisa ou outra”, uma função dicotômica.  O conhecimento é uma função contínua, variando da mais completa ignorância, de um lado, até a mais completa certeza (epistemológica), do outro.

Ao atribuir a culpa ou a inocência de um homem acusado de cometer um crime, existe, consequentemente, uma série contínua e epistemologicamente evidente, variando desde a possibilidade de tal culpa até a certeza de tal culpa.  Em níveis diferentes desse continuum evidencial, ações diferentes são requeridas.

Destarte, quando se suspeita que um homem pode possivelmente ser culpado de um crime, é adequado questioná-lo.  Quando se tem evidência de que um homem é provavelmente culpado de um crime, é adequado detê-lo.  E quando se está convencido de que um homem certamente é culpado de um crime, é adequado puni-lo.  Em termos gerais, a ação apropriada em relação a criminosos suspeitos vai depender da evidência que se tem.  A prisão é, portanto, justificável quando a culpa é provável.

Agora, é claro que isso não significa que a moralidade das ações de uma pessoa vai depender da validade contextual de seu julgamento.  Se é certo ou errado questionar, deter ou encarcerar um homem, vai depender se ele de fato cometeu um crime.  Em uma sociedade livre, se a polícia prende ou os tribunais condenam uma pessoa cuja inocência, mais tarde, acaba sendo comprovada, eles serão obrigados a reparar seu erro, fazendo restituições equivalentes aos danos e inconveniências causados a essa pessoa (a menos que essa pessoa tenha contratualmente os livrado dessa obrigação).

Há duas maneiras de um sistema de justiça de livre mercado lidar com erros policiais e jurídicos.  Ou os clientes de uma agência policial concordariam contratualmente em estar sujeitos a prisões quando a polícia (ou um magistrado) julgar ter evidências suficientes (desta forma liberando-os da obrigação de fazerem restituições caso prendam uma pessoa cuja inocência seja mais tarde comprovada); ou as agências concordariam em fazer restituições caso cometessem erros.

Dessas duas possibilidades, eu prefiro a última.  Se a polícia ou os tribunais cometerem um erro, eles devem pagar por isso.  Em um livre mercado de justiça, as agências policiais que cometessem muitos erros seriam rapidamente eliminadas do mercado por falência.

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Notas

[*] Um segundo e óbvio método de financiar a proteção policial para os pobres dignos seria por meio da caridade — seja de agências privadas ou do próprio departamento de polícia.

Para mais informações sobre o assunto, leia também os artigos recomendados na nossa seção anarcocapitalismo, dentre eles:

O setor público: desestatizando a segurança, as ruas e as estradas

A produção privada de serviços de segurança

Serviços de defesa no livre mercado

A possibilidade de uma justiça privada

Leis e justiça numa sociedade libertária (Concurso IMB)

Estado, violência e leis privadas

Em uma sociedade sem estado, os déspotas não assumiriam o controle?

Liberalismo Clássico versus Anarcocapitalismo

Por que um estado mínimo inevitavelmente leva a um estado máximo?

O problema com o sistema penitenciário

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