Entrevista com Jesús Huerta de Soto sobre a “inusitada” situação europeia

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Nota do IMB: como recentemente divulgado em um de nossos artigos, os países da zona do euro que estão apresentando uma deflação de preços são, ao contrário do que prevê o senso comum, exatamente aqueles que mais estão crescendo.  O professor Huerta de Soto comenta este cenário.]

Entrevista concedida ao jornal de finanças alemão Handelsblatt.

 

huertaentrevista.jpgProfessor Huerta de Soto, a taxa de inflação de preços na zona do euro, acumulada em 12 meses, estáatualmente em 0,4%.  Por acaso a deflação está nos ameaçando, como vários especialistas alertam?

Bom, em primeiro lugar, vamos corrigir os conceitos.  ‘Deflação’ significa que a oferta monetária está encolhendo.  Isso não está ocorrendo na zona do euro.  O agregado monetário M3, que é o maior agregado disponível, está crescendo a aproximadamente 2% ao ano, ao passo que o M1, que é o agregado mais restrito, está crescendo a mais de 6% ao ano.

Embora a taxa de inflação de preços na zona do euro esteja atualmente abaixo da meta do Banco Central Europeu, que é de 2%, não há nenhum motivo para insuflar temores sobre uma iminente deflação, como vários bancos centrais ao redor do mundo estão fazendo.

Ao agirem assim, eles estão insinuando que uma queda de preços seria algo ruim.  Isso está errado.  Uma deflação de preços não apenas não é nenhuma catástrofe, como, ao contrário, é uma bênção.

O senhor terá de explicar isso.

Veja o que está acontecendo no meu país, a Espanha.  No momento, os preços ao consumidor estão literalmente diminuindo.  Ao mesmo tempo, a economia passou a crescer aproximadamente 2% em termos anuais.  Mais de275.000 empregos foram criados em 2013 e o desemprego caiu de 27% para 23%.

Os fatos contradizem os cenários de horror para vislumbrados pelos especialistas para a deflação.

[Nota do IMB: uma das maneiras mais rápidas e corretas de se acabar com uma recessão — ou ao menos suavizar seus efeitos, é permitindo que preços e salários se encaminhem para níveis mais próximos da oferta e da demanda.  Estando em recessão, uma economia deve permitir que salários caiam para que haja mais contratações de desempregados; e deve permitir que os preços caiam ainda mais para que se adéquem à realidade dos salários menores].

Isso significa que deveríamos ficar alegres com a deflação de preços?

Certamente.  A queda de preços é particularmente benéfica quando resulta de uma combinação entre oferta monetária estável e aumento da produtividade.

Um ótimo exemplo prático dessa combinação foi o padrão-ouro clássico existente no século XIX.  Naquela época, a oferta monetária crescia aproximadamente, e apenas, 2% ao ano.  Ao mesmo tempo, as sociedades industrializadas produziram, em termos percentuais, o maior aumento da prosperidade em toda a nossa história.

É por isso que o Banco Central Europeu deveria utilizar aquele padrão-ouro clássico como um exemplo a ser seguido e reduzir a meta de crescimento anual do M3.  Atualmente, a meta é de 4,5% ao ano.  Ela deveria ser reduzida para 2% ao ano. [Nota do IMB: no Brasil, M3 e M4 estão crescendo a uma taxa de 12% ao ano].

Se a economia da zona do euro passasse a crescer aproximadamente 3% ao ano — algo plenamente factível caso ela fosse libertada dos grilhões das várias regulamentações estatais que a restringem —, os preços cairiam aproximadamente 1% ao ano.

Se a deflação de preços é tão benéfica, por que as pessoas têm medo dela?

Não creio que o cidadão comum tenha medo de preços em queda.  Essa fobia da deflação de preços é fomentada por economistas representantes da economia convencional.  Eles argumentam que a deflação de preços faz com que o fardo da dívida aumente, e com isso estrangule a demanda geral.  Mas os alarmistas se esquecem de dizer que uma queda de preços estimula ainda mais a demanda.  Também se esquecem de dizer que os credores — inclusive pessoas que têm aplicações bancárias — se beneficiam da deflação, e que isso também estimula a demanda.

[Nota do IMB: no Japão, após vários pacotes de estímulo do governo, a inflação de preços atingiu 3% ao ano, um recorde em décadas.  “Espantosamente”, a demanda caiu e a economia entrou em recessão].

Não há um perigo de os consumidores adiarem seus gastos por acreditarem que tudo estará mais barato amanhã?

Esse é um argumento obtuso que você escuta repetidamente, e simplesmente parece não ir embora.

Apenas veja a rapidez com que são vendidos os mais recentes modelos de smartphones.  E os consumidores sabem que esses aparelhos estarão mais baratos apenas daqui a uns meses.  E ainda assim eles compram.

Os EUA foram dominados pela deflação de preços durante décadas após a Guerra Civil, a partir de 1866.  Apesar disso — ou melhor, por causa disso —, o consumo aumento.  Se as pessoas parassem de comprar porque os preços estão caindo, elas acabariam morrendo de fome.

[Nota do IMB: o ser humano sempre irá preferir ter um bem hoje a ter esse mesmo bem apenas no futuro distante. Isso é o básico da teoria da preferência temporal.  Logo, sempre que possível, consumidores preferem consumir no presente.  Além de você não poder postergar sua demanda por alimentos, roupas, moradia e alguns outros bens, há também o fato de que você não necessariamente irá adiar sua aquisição de um bem hoje só porque ele estará mais barato daqui a uma ano. Porque mesmo comprando-o hoje a um preço maior, você sabe que seu poder de compra será maior no futuro, por causa da deflação de preços].

Mas preços em queda diminuem as receitas de venda e reduzem a propensão das empresas em investir.  O senhor quer ignorar isso?

Receitas de vendas não são cruciais para empresas.  O que é realmente crucial é o seu lucro, isso é, a diferença entre receitas e custos.

Uma redução nos preços de venda aumenta a pressão para se reduzir custos.  Consequentemente, as empresas começam a substituir trabalho humano por máquinas.  Isso significa que será necessário produzir mais máquinas, o que aumenta a demanda por mão-de-obra no setor de bens de capital, que é o que paga os melhores salários.

Dessa maneira, aqueles trabalhadores que eventualmente perderam seus empregos no setor de serviços ou comercial em decorrência de uma deflação de preços irão encontrar novos empregos no setor de bens de capital.

O estoque de capital da economia irá aumentar sem que isso resulte em desemprego em massa.

O senhor não está facilitando muito suavizar a sua posição?  A realidade é que a diferença entre as qualificações dos desempregados e as exigências das empresas é, na maioria das vezes, muito grande.

Não estou alegando que o mercado é perfeito e que as transições são suaves, rápidas e indolores.  É exatamente por isso que é crucial que o mercado de trabalho seja flexível o bastante de modo a oferecer incentivos para que empregadores criativos possam contratar novos empregados sem grandes empecilhos e custos.

Qual o papel da política?

O problema é que políticos têm um horizonte temporal muito curto.  Eles enxergam apenas as próximas eleições.  É por isso que precisamos de uma política monetária que restrinja ao máximo políticos e governos.

O euro está fazendo isso na Europa.  A moeda comum acabou com a opção dos governos de recorrer à desvalorização de suas moedas como uma maneira de ocultar os efeitos de suas políticas econômicas desastradas.  Erros de política econômica agora são vistos e sentidos diretamente pela população do país, e a perda de competitividade decorrente desses erros obriga os políticos a fazer reformas mais duras.

Em um período de apenas um ano e meio, dois governos da Espanha implementaram reformas que eu jamais sonharia ver serem implementadas durante meu tempo de vida (ver aqui e aqui).

Agora a situação econômica está melhorando e a Espanha está colhendo os benefícios da reforma.

O senhor pode estar certo no que diz respeito à Espanha, mas não há sinais de reformas fundamentais na Itália e na França…

E é por isso que a situação lá terá de piorar ainda mais para que as reformas sejam feitas.

Já aprendemos com a experiência que, quanto pior a situação, mais forte é a pressão por reformas.  Os êxitos reformistas que a Espanha e outros países do euro alcançaram aumentas a pressão sobre Roma e Paris.  O alto desemprego na Espanha reduziu os custos trabalhistas, que eram dos mais altos da Europa.  Atualmente, a uma média de €20 ou US $24.90 por hora, os custos trabalhistas espanhóis são hoje metade dos da França.

É por isso que os franceses não poderão evitar uma drástica cura por meio da política econômica, mesmo que as pessoas de lá se oponham a isso.  Já vocês alemães deveriam se manter firmes ao rigor orçamentário como maneira de pressionar a França e a Itália.

O Banco Central Europeu está sob crescente pressão para abrir as comportas da inflação monetária e desvalorizar o euro.  A pressão está vindo de acadêmicos, dos mercados financeiros e de políticos.

O keynesianismo e o monetarismo, que são as correntes dominantes na economia, dizem que a Grande Depressão americana da década de 1930 ocorreu porque havia uma escassez de dinheiro.

[Nota do IMB: a Grande Depressão americana se prolongou por 16 anos justamente porque o governo americano não deixou que preços e salários caíssem. A recessão gerada pelo crash da bolsa não deveria ter durado mais do que um ano, assim como ocorreu em 1920, quando houve uma recessão idêntica. Só que, ao contrário de 1920, o governo americano não permitiu a liberdade de preços e salários, de modo que estes se adequassem à nova realidade da oferta monetária. Mesmo keynesianos ortodoxos hoje já reconhecem o fracasso do New Deal, que nada mais foi do que um conjunto de políticas de controle de preços, controle de salários, aumento das tarifas de importação, aumento de impostos, aumento de gastos, aumento do déficit, e de arregimentação sindical e de empresários incentivados pelo governo a não reduzirem seus preços.]

Isso gerou uma mentalidade anti-deflação entre os acadêmicos.  E os políticos utilizam a caixa de ressonância acadêmica como forma de pressionar o BCE a reinflacionar a economia.

Governos adoram inflação porque ela lhes possibilita, por algum tempo, viver com um orçamento muito superior à realidade econômica tributária do país.  A inflação permite que os governos se endividem de maneira aparentemente indolor, e também faz com que essas próprias dívidas sejam desvalorizadas ao longo do tempo, uma vez que a moeda vai perdendo poder de compra.

Não é de se estranhar que sejam justamente os oponentes da austeridade os principais arautos dos horrores da deflação e os grandes demonizadores do euro e de suas políticas de estabilização.  Eles têm medo de apresentar os reais custos do assistencialismo e do estado de bem-estar social aos eleitores.

O presidente do BCE, o italiano Mario Draghi, sucumbiu à pressão ao prometer que, se necessário, irá acionar as impressoras.  Foi um erro?

Vamos com calma.  Até o presente momento, o senhor Draghi se limitou apenas a fazer promessas.  Ele ainda não agiu de acordo com elas.

Embora o BCE tenha iniciado generosos programas de empréstimos e transações, e tenha reduzido as taxas básicas de juros, os juros dos títulos de 10 anos dos governos dos países mais enfermos da zona do euro estão acima dos juros dos títulos de 10 anos do governo dos EUA.  Mensurado em termos de balancetes, o BCE atuou menos do que outros bancos centrais ocidentais. (Veja a evolução dos balancetes do BCE, do Fed, do Banco Central da Inglaterra e do Banco Central do Japão )

Enquanto os guardiões do euro estiverem apenas falando e não agindo, a pressão permanecerá sobre Itália e França para que façam suas reformas.  É por isso que é crucial que o BCE resista à pressão dos governos e do mundo financeiro anglo-saxão, e não compre títulos dos governos.

Que papel estão tendo os mercados financeiros anglo-saxões?

A imprensa e os mercados financeiros anglo-saxônicos estão ostensivamente conduzindo uma cruzada contra o euro e contra as políticas de austeridade que ele impôs à Europa.  Eu realmente não acredito em teorias da conspiração, mas os seguidos e incansáveis ataques ao euro feitos por Washington e Londres sugerem uma agenda oculta.  Os americanos temem a possibilidade de que os dias do dólar como moeda global estejam ameaçados caso o euro sobreviva e se mantenha como uma moeda forte.

O euro pode sobreviver sem uma união política?

Uma união política não terá o apoio maciço da população.  E também não é desejável, pois ela reduz a pressão por austeridade fiscal.

O melhor regime monetário para uma sociedade livre é o padrão-ouro, no qual todos os depósitos bancários que funcionam à vista são 100% lastreados por ouro e não há bancos centrais.  Porém, enquanto não tivermos esse arranjo, deveríamos defender o euro porque ele restringe bastante o acesso dos governos às impressoras e os obriga a consolidar seus orçamentos e a fazer reformas.

De certa forma, o euro possui o efeito de um padrão-ouro.

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