História do Debate do Cálculo Econômico Socialista

0
Tempo estimado de leitura: 52 minutos

6. A Batalha das Interpretações
Nos dois últimos capítulos estudamos separadamente as propostas dos socialistas de mercado e as críticas austríacas a essas propostas. Os textos discutidos nesses capítulos, que compõem o núcleo do debate do cálculo econômico socialista, foram escritos em sua maioria entre 1935 e 1940, com desdobramentos realizados ao longo da década de quarenta. Depois disso, embora os protagonistas do debate tenham continuado a pesquisar sobre o tema do socialismo, a partir da década de cinqüenta não encontramos, salvo esporádicas menções ao debate, novas discussões diretas entre os mesmos autores.
Até que ressurja na década de noventa, o debate fica relativamente dormente entre 1950 e 1990. Nesse período, a controvérsia é pobre em termos de geração de novas propostas de solução do problema do cálculo, girando mais em torno das diferentes interpretações sobre quem teria ‘vencido’ o debate das décadas de trinta e quarenta.

Essas décadas são então marcadas por trabalhos de História do Pensamento Econômico que procuram elucidar e interpretar as diferentes posições em conflito. Ao longo desse período surgiram diferentes versões do debate, que serão mais ou menos aceitas em cada instante do tempo conforme ocorria a evolução da teoria econômica e variava a aceitação do ideal socialista. Logo após o arrefecimento do debate, quando a teoria do equilíbrio geral ainda se desenvolvia e inspirava confiança entre economistas e o bloco soviético se expandia no pós-guerra, os economistas eram quase unânimes em afirmar que Lange havia vencido Hayek. A partir da década de oitenta, porém, com a maturidade da teoria, que vem acompanhada pelo aumento das críticas à mesma, e o ressurgimento do interesse por temas austríacos, além da crescente perda de confiança na capacidade de crescimento econômico da URSS, até o seu colapso final, o debate foi reinterpretado de forma favorável a Hayek. O ressurgimento da Escola Austríaca, por sua vez, gerou um debate interno que contrapôs as posições de Mises e Hayek. Além disso, já na década de noventa, alguns desenvolvimentos teóricos como a Economia da Informação e a teoria da Escolha Pública deram origem a novas propostas de socialismo de mercado e respectivas críticas, o que resultou em ainda outra interpretação da controvérsia original.

O propósito deste capítulo é estudar as diferentes interpretações feitas até a década de oitenta, além de construir uma interpretação própria sobre o significado da controvérsia. No capítulo seguinte, estudaremos a retomada do debate na década de noventa à luz da nossa interpretação.

As Interpretações do Debate

A interpretação predominante até 1985, denominada por Lavoie de ‘versão padrão’ do debate, repetida até hoje em boa parte dos livros textos de História do Pensamento Econômico e Sistemas Econômicos Comparados, pode ser sintetizada nos seguintes pontos[1]:

i) Antes de Mises os socialistas não desenvolveram um modelo sobre o funcionamento econômico de uma comunidade socialista.

ii) O artigo de Mises, que teve o mérito de chamar a atenção para o problema, defende a tese de que é impossível sem propriedade privada e portanto sem preços de mercado alocar os recursos de forma racional; isto é, de forma que se obtenha uma alocação ótima de Pareto. O socialismo seria então teoricamente impossível.

iii) Antes mesmo da publicação do artigo de Mises, a tese da impossibilidade teórica foi refutada por Enrico Barone, que mostrou que uma economia socialista (sem propriedade privada) poderia resolver o problema através da solução de um conjunto de equações que descrevam o equilíbrio geral da economia. Dickinson, em resposta a Mises, repete a tese de Barone.

iv) Hayek e Robbins aceitam a possibilidade teórica do socialismo, recuando a uma segunda linha de defesa que afirma a sua impossibilidade prática, visto que não seria possível resolver efetivamente milhares de equações, nem obter os dados que as alimentem. Nota-se ainda que o argumento de Hayek é anterior à era dos computadores.

v) Lange, por sua vez, refuta a posição de Hayek, mostrando que o sistema de equações não precisa ser resolvido diretamente se o órgão planejador estabelecer diferentes preços até que um equilíbrio seja obtido por tentativas e erros.

Fica evidente pela leitura dos tópicos que tal interpretação é derivada da versão dos fatos elaborada em 1936 pelo próprio Lange. Portanto, em termos históricos, pelo menos até a década de oitenta, podemos dizer que a versão de Lange do debate convenceu a comunidade acadêmica.

A interpretação de Lange foi difundida na profissão por vários autores, entre os quais se destacam Lippincott, Schumpeter e Bergson[2]. Esses três autores tiveram papel especial nesse processo, dado que o relato de tais autores foi a base a partir da qual se desenvolveu vasta literatura secundária sobre o assunto.

Um grande impulso na difusão da ‘versão padrão’ do debate foi dado pela publicação em 1938 dos artigos de Lange e de Taylor na forma de livro, editados com uma introdução por Lippincott. Nessa introdução, Lippincott repete a versão langeana do debate de forma mais didática, despida de complicações técnicas do argumento e das questões ainda por resolver que podemos encontrar nos artigos acadêmicos de Taylor e Lange que compõem o livro.

Apesar de que a introdução de Lippincott fosse muitas vezes a referência básica para a familiarização com o problema do cálculo, o maior responsável pela popularização da versão em questão do debate foi Schumpeter[3], dada a influência que as idéias deste autor geralmente exerce sobre a opinião dos economistas no que diz respeito a história da disciplina. A controvérsia do cálculo é discutida por Schumpeter tanto em Capitalismo, Socialismo e Democracia [1947] quanto em History of Economic Analysis [1954][4].

Na primeira obra, Schumpeter inicia dois capítulos que tratam da economia do socialismo com afirmações confiantes sobre a sua viabilidade:

Será viável o socialismo? Claro que é. (pág. 215)

Antes de mais nada, precisamos ver se existe ou não algo de errado com a lógica pura da economia socialista. … Nada há de errado com a lógica pura do socialismo. E isso é tão óbvio que não me ocorreria insistir, não fosse pelo fato de que houve quem negasse, … (Schumpeter, 1984:221)

Nota-se que o autor coloca a questão em termos da consistência lógica do socialismo, distinguindo logo no primeiro parágrafo do capítulo XVI entre prova lógica (teórica) e viabilidade prática do socialismo. Schumpeter afirma que Mises, a autoridade negadora da credencial lógica do socialismo, não teria obtido resposta dos socialistas ortodoxos, pois estes não dominavam a teoria necessária para tal. A resposta definitiva, porém, teria sido dada por Barone, que mostrou que a ‘lógica fundamental’ da solução é a mesma tanto nas sociedades comerciais quanto no socialismo.

Schumpeter se propõe então a esboçar a tese de Barone despida do formalismo. O que segue, porém, não enfatiza a descrição do equilíbrio geral e do mecanismo de tentativas e erros, mas sim o comportamento das firmas individuais: descreve-se um esquema de distribuição de renda em dólares, a serem gastos pelos consumidores em indústrias cujas administrações devam minimizar custos, adquirir os recursos (dados) com os dólares obtidos através das vendas e produzir de forma a igualar o custo marginal ao preço estabelecido centralmente. O autor (pág. 226) continua sua exposição afirmando que ‘a tarefa de cada comitê industrial é, então, determinada de maneira única, como, hoje em dia, todas as firmas de uma indústria em concorrência perfeita sabem o que, como e quanto produzir — desde que sejam dadas as possibilidades técnicas, as reações dos consumidores … e os preços dos meios de produção’.

Percebe-se a identificação imediata da realidade dos mercados competitivos com a teoria da competição perfeita, da mesma maneira como fizera Lange anteriormente. De fato, alguns parágrafos mais adiante (pág. 228), Schumpeter revela que para funcionar na prática a transição para o socialismo deve ser feita de forma que o capitalismo esteja próximo do estado estacionário, já tendo vivido ‘as loucuras da mocidade’. Pela análise dos dois trechos mencionados, mais uma vez podemos verificar a crença, também presente entre os socialistas de mercado, na capacidade da teoria de descrever a essência do funcionamento das economias reais, que de fato estariam próximas a um estado de equilíbrio. Ausentes grandes inovações, os agentes se comportam como tomadores de preços em um ambiente com tecnologias dadas. A falta de discussões metodológicas sobre a natureza das simplificações teóricas leva o autor a crer em um estado estacionário real e que a tarefa dos administradores socialistas seja unicamente determinada pelos fundamentos (dados) da economia, segundo a descrição teórica desses fundamentos.

Para o autor, a transição de uma economia estacionária (que, como vimos, não é apenas um recurso teórico, mas algo que possa ser aproximado na prática) para uma na qual ocorra ‘mudança industrial’ não envolveria dificuldades substanciais para os planejadores. Schumpeter discute então o que fazer com o lucro advindo da mudança. As questões ‘dinâmicas’ que preocupam Schumpeter são, porém, claramente distintas daquelas levantadas por Mises e Hayek. Enquanto para o primeiro o empresário aparece de vez em quando para perturbar um equilíbrio estático, para os últimos a atividade empresarial seria necessária em todo instante para que se possa esperar uma tendência ao equilíbrio. Para estes autores, o estado estacionário seria apenas um útil instrumento analítico sem contrapartida na realidade.

Em History of Economic Analysis, Schumpeter (1994:985-990) volta ao tema do cálculo econômico socialista, repetindo a tese knightiana de que o argumento de similitude formal de Wieser, Pareto e Barone constitui uma prova da possibilidade lógica (teórica) do socialismo: “Mas tudo isso se resume a dizer que qualquer tentativa de desenvolver uma lógica geral do comportamento econômico irá gerar automaticamente uma teoria da economia socialista como subproduto” (Schumpeter, 1994:987)

Barone, ao mostrar que existe para uma economia socialista um sistema de equações que possua um conjunto determinado de soluções que apresente propriedades de optimalidade, refuta também, em termos lógicos (pág. 989) a tese de que o socialismo seria irracional. O argumento de Mises e Hayek a respeito da impossibilidade em termos puramente teóricos (pág. 989, n.r. 12) seria então ‘definitivamente errado’.

Note-se o uso alternado dos termos lógico e teórico, o que indica a sua equivalência, no entender do autor. Em relação a isso, devemos ter em mente o contraste com a opinião de Hayek expressa no artigo de 1937, no qual argumenta que a teoria econômica não deveria se limitar ao aspecto lógico, buscando um elemento empírico no estudo da tendência ao equilíbrio. A identificação exclusiva de argumento teórico com a pura lógica da escolha leva Schumpeter a ter dificuldades em interpretar os argumentos de Mises e Hayek. De fato, Schumpeter (1994:989) considera difícil determinar se tais autores negam de fato a validade do resultado de Barone.

A posição de Schumpeter no debate é em muitos aspectos surpreendente. Keizer (1997) dedica um artigo à tarefa de entender os paradoxos envolvidos nessa posição. Dada a antipatia de Schumpeter pelo socialismo, sua formação austríaca e sua própria teoria sobre a destruição criativa inerente à competição empresarial, deveríamos esperar que o autor se posicionasse contrário ao socialismo de mercado, moldado na teoria do equilíbrio estático. Além de indicar o gosto por paradoxos e polêmicas do autor, Keizer aponta para a admiração e respeito que Schumpeter devotava à teoria do equilíbrio geral e à formalização matemática, embora não fosse ele mesmo muito versado em matemática e não tivesse utilizado tal ferramenta em suas contribuições. Em History of Economic Analysis tal admiração pode ser constatada na afirmação de que Walras teria sido o maior economista de todos os tempos e a teoria do EG o maior feito teórico da disciplina.

Hayek, por sua vez, atribui a posição de Schumpeter a crenças metodológicas. Em “The Uses of Knowledge in Society” Hayek (1981:89-91) critica a afirmação encontrada em Capitalismo, Socialismo e Democracia (pág. 225) de que “os consumidores, ao avaliarem bens de consumo, ipso facto avaliam também os meios de produção que entram em sua produção”. Para Hayek, a afirmação revela a adoção de “um certo ramo do positivismo” da parte de Schumpeter. O ‘ipso facto’ sugere que a avaliação dos fatores de produção seria uma implicação lógica da avaliação dos consumidores, como se uma única mente na posse dos dados objetivos calculasse todas as alternativas e escolhesse a melhor, como em um problema de engenharia. A posição de Schumpeter ignoraria então que entre os dados objetivos do problema e as ações estão as interpretações dos agentes sobre essas realidades, interpretações essas sujeitas a um processo de aprendizado. A objetivização dos dados[5], inerente à formulação matemática do modelo, esconderia o fato de que ‘a inevitável imperfeição do conhecimento humano’ não permite concluir que o resultado da interação no mercado seja determinado a priori a partir de fundamentos objetivos da economia. Cada agente, com base em opiniões distintas sobre a realidade, escolheria uma linha de ação própria e portanto avaliaria os meios (os fatores de produção) de forma diversa.

Chegamos agora ao terceiro autor cuja contribuição solidificou a aceitação da versão padrão. Em 1948 Bergson escreve um artigo avaliando o debate. Nas décadas seguintes, esse artigo foi visto como a principal referência acadêmica[6] sobre o assunto. Embora quase a totalidade do artigo seja dedicada à discussão da natureza de uma alocação ótima que deva ser obtida no socialismo, o que revela a primazia da pura lógica da escolha no pensamento do autor, Bergson também opina sobre o debate em si e examina algumas objeções ao modelo de Lange.

Bergson apresenta duas interpretações sobre o significado da tese de Mises. Segundo a primeira, mesmo um Órgão de Planejamento Central onisciente não poderia alocar recursos racionalmente:

Imaginemos um conselho de super-homens, com faculdades lógicas ilimitadas, com uma escala de valores completa para os diferentes bens de consumo e para o consumo presente e futuro, além de um detalhado conhecimento das técnicas produtivas. Mesmo tal conselho seria incapaz de avaliar racionalmente os meios de produção. (Bergson, 1948: 446)

Essa interpretação a respeito do que Mises teria dito seria defendida por Lange e Schumpeter, que indicaram que o argumento foi refutado por Pareto e Barone. A outra interpretação, que Bergson atribui a Hayek, afirma que o socialismo não seria logicamente impossível, mas não haveria maneira prática de realizá-lo. Quanto a essa segunda interpretação, Bergson contrasta a opinião de Lange, segundo a qual ele próprio teria refutado essa segunda tese, com a opinião de Hayek, que não acredita nessa solução. Bergson deixa ao leitor a decisão sobre qual interpretação seria a correta.

A inclinação do autor sobre a viabilidade do socialismo de mercado, entretanto, se revela na apreciação que Bergson (1948: 434-440) faz de algumas objeções levantadas contra o modelo de Lange. Entre estas, vejamos três relacionadas à crítica de Hayek.

Em primeiro lugar, Bergson investiga a questão do controle e incentivos no modelo. Deve-se notar que entre os autores simpáticos ao socialismo de mercado, Bergson foi provavelmente o primeiro a considerar legítima a discussão sobre incentivos, questão essa que só será abordada na retomada moderna do debate na década de noventa. Para Bergson, o teste ótimo de desempenho administrativo seria o lucro obtido pela firma. Entretanto, como já discutimos, a maximização de lucros, se seguida pelas firmas, violaria as regras de custo que levam à eficiência naquelas ocasiões em que temos condições diferentes das de competição perfeita.

Bergson cita então a objeção de Hayek de que o CPB teria que auditar minuciosamente os registros de custos das firmas[7]. Para Bergson (1948: 435), Hayek teria exagerado o problema: “provided the question of controls could be disposed of satisfactorily, our impression is that the question of managerial incentives would not present any serious difficulties”. Acredita o autor que seria viável a construção de um clima no qual se avalie corretamente o risco dos empreendimentos. Sugere então como incentivo esquemas nos quais lucro seria premiado, quando a maximização de lucros for adequada.

Em segundo lugar, mesmo ausentes problemas de incentivos, os agentes terão que prever as condições futuras do mercado. Para Bergson, entretanto, isso seria minimizado pela existência de um ‘serviço de informação abrangente para o benefício dos gerentes’. Contrário à distinção de Hayek entre conhecimento do cientista e conhecimento localizado, Bergson acredita, da mesma forma que Dickinson, que dados colhidos em forma estatística são suficientes para gerenciar firmas.

Em terceiro lugar, Bergson (1948: 436) enfrenta o argumento de Hayek de que o esquema de Lange seria rígido porque não reajusta preços continuamente e trata produtos diferenciados de forma homogênea. Embora reconheça o problema do conhecimento disperso, inclusive citando o artigo de Hayek de 1945, novamente Bergson minimiza as dificuldades, acreditando que o CPB poderia construir um aparato elaborado para fixar preços, descentralizado geográfica e funcionalmente.

O artigo de Bergson, embora seja o único na literatura do socialismo de mercado até então a tratar de algumas das objeções feitas por Hayek e a reconhecer a existência de tais problemas, tende a minimizar a sua importância, contribuindo na difusão da opinião padrão do debate. Mais tarde, em um artigo menos conhecido, de 1967, Bergson aumenta seu ceticismo a respeito da viabilidade do socialismo de mercado, considerando com mais atenção algumas críticas de Hayek e levantando objeções a respeito da motivação dos agentes que só serão consideradas pelos socialistas na retomada do debate na década de noventa.

A partir das contribuições de Lange, Schumpeter, Bergson e de vários outros economistas, a versão padrão do debate é estabelecida definitivamente na literatura. A partir daí tal versão se espalhou para os livros-textos. Samuelson (1958:336), por exemplo, em uma nota de rodapé da Introdução à Análise Econômica resume o debate nas mesmas linhas. Sugere que Mises talvez desconhecesse a prova de Pareto quando aquele teria afirmado a impossibilidade lógica do socialismo. Em livros-texto de HPE traduzidos para o português, Fusfeld (2001:192), por exemplo, repete com detalhes a versão padrão, notando ainda que o argumento prático de Hayek foi escrito em uma época em que os computadores não eram conhecidos.

A interpretação dominante da controvérsia, como vimos, teve sua origem no artigo de Lange de 1936-7. Seria interessante investigar então como evoluiu a opinião do autor depois dessa data. Os escritos posteriores de Lange sobre o socialismo, porém, versam mais sobre os problemas a serem enfrentados pelas reformas na Polônia e outros países do que sobre novas teorias ou controvérsias a respeito dos modelos de socialismo de mercado[8]. Contudo, mencionaremos dois documentos que tratam de sua polêmica com Hayek.

Em uma cordial carta de 31 de julho de 1940, Lange[9] escreve a Hayek agradecendo por este ter enviado uma cópia da crítica que este autor (Hayek, 1940) fizera ao seu artigo. Na carta, podemos encontrar uma adição de Lange a sua interpretação do debate:

Eu espero que você não fique ofendido se eu classificar sua posição como uma terceira linha de defesa, desta vez mudando a questão do aspecto puramente estático para o aspecto dinâmico. (Lange, citado em Kovalik, 1994:298)

Impressionado com o artigo, Lange afirma que a ‘mudança’ para questões dinâmicas traz à tona as questões que realmente importam para o problema: “Você certamente teve sucesso em levantar uma questão importante e assinalar as lacunas em uma solução puramente estática como aquela dada por mim.” (Lange, em Kovalik, 1994:298)

Lange escreve que planeja escrever um artigo em resposta a essas objeções a ser submetido à Economica — revista editada por Hayek — no outono daquele ano. Tal resposta, porém, nunca foi escrita.

Talvez sob o impacto do artigo de Hayek, Lange faz nessa carta uma surpreendente declaração, incompatível com os escritos anteriores e posteriores do autor sobre o tema. Afirma Lange que a sugestão da fixação de preços pelo CPB não seria uma solução prática, mas um ‘recurso metodológico’ para mostrar que se podem encontrar preços de equilíbrio por um processo de tentativas e erros sem fazer o uso de mercados reais. Lange esclarece que quando o número de agentes for grande, deve-se deixar que os preços sejam determinados pelos mercados e não seria necessária a socialização. Apenas em casos de competição imperfeita a fixação central de preços seria uma sugestão prática de uso do mecanismo descrito no artigo.

Em outra ocasião o autor revela dúvidas sobre o significado prático de seu modelo. Em um artigo de 1947 (Kovalik, 1994:169), Lange afirma que a análise marginal requer muito mais elaboração em termos operacionais até que sirva como base para decisões práticas.

A aceitação da validade da crítica de Hayek e as dúvidas sobre o significado prático de seu resultado, contudo, voltam a desaparecer no último artigo escrito por Lange, no qual o autor reafirma sua confiança na simulação dos mercados através da teoria do equilíbrio geral. Nesse artigo, seguindo o caminho inverso ao de Dickinson, Lange migra da solução por tentativas e erros para a solução matemática:

Se eu fosse reescrever meu ensaio hoje, minha tarefa seria muito mais simples. Minha resposta a Hayek e Robbins seria: então qual é o problema? Colocamos as equações simultâneas em um computador eletrônico e obtemos a solução em menos de um segundo. O processo de mercado, com seus canhestros tateamentos, parece superado. De fato, ele pode ser considerado como um mecanismo de computação da era pré-eletrônica. (Lange, 1969:158)[10]

Nessa passagem Lange reafirma sua crença de que a essência da tarefa exercida pelos mercados é descrita pelo mecanismo de tâtonnement do modelo de equilíbrio geral.

A partir da década de oitenta, com o ressurgimento do interesse pela escola austríaca, tomou corpo a literatura que contesta a interpretação dominante descrita acima. Embora esta última ainda predomine até hoje nos livros-textos, os trabalhos acadêmicos a respeito do debate feitos a partir de então foram em grande parte revisionistas. Veremos agora a formação dessa segunda versão do debate, desde sua formação até seu ápice na década de oitenta.

Da mesma forma que a opinião predominante teve sua origem em Lange, as interpretações contrárias se apoiaram em Hayek. A versão hayekiana dos fatos pode ser inferida a partir do livro de 1935 e do artigo de 1940. No primeiro, a história de Hayek é incompleta devido à data na qual foi escrita. No segundo, Hayek (1940:125-6) identifica três fases do debate, em cada uma delas havendo uma derrota da posição socialista. Podemos colocar a história de Hayek na forma de tópicos, como foi feito com a versão padrão:

1ª etapa: a tese de que o socialismo poderia dispensar o cálculo em termos de valor em favor de algo como cálculo em espécie foi refutada pelos teóricos de similitude formal e por Mises.

2ª etapa: a tese de que o cálculo econômico no socialismo poderia dispensar os mercados em favor da solução matemática foi refutada (por antecipação) por Pareto, que argumenta que o único modo de resolver as equações é por observação dos mercados reais.

3ª etapa: a tese de que a solução para o sistema de equações poderia ser obtida por tentativas e erros foi criticada pelo artigo de 1940 do próprio Hayek.

Além de enfatizar as alterações na posição socialista, Hayek combate as alegações de Lange sobre o recuo austríaco a uma segunda linha de defesa:

1ª linha de defesa: o argumento de Mises não teria sido refutado por Barone. A questão de Mises não seria sobre se as categorias econômicas devam ser aplicadas, o que seria óbvio desde Wieser, mas sim como de fato poderiam ser aplicadas sem mercados.

2ª linha de defesa: Hayek não abandonou o argumento de Mises em favor do argumento da impossibilidade prática. A diferença no argumento dos dois autores reside no tipo de idéias às quais se contrapõem. Enquanto os socialistas aos quais Mises se opôs partem de outra teoria, Hayek nega não a consistência lógica da teoria empregada pelos socialistas de mercado, mas sim sua relevância para resolver o problema.

A opinião de Hayek sobre o tema, ignorada durante o debate, passou a ser recuperada por alguns autores desde então, até que, nas mãos de Lavoie, se solidifique em uma interpretação alternativa — austríaca — do debate. Um das primeiras contestações da versão padrão foi feita por Michael Polanyi, irmão de Karl Polanyi. Ao contrário deste, que respondeu ao desafio de Mises por meio de uma das primeiras propostas de socialismo de mercado[11], M. Polanyi [1950] se alinha com a posição contrária ao socialismo.

Em sua apreciação do debate, M. Polanyi enfatiza a posição socialista original contra a qual o argumento de Mises foi dirigido, posição essa que pretende eliminar os mercados em favor do controle consciente da produção. Esse objetivo, central para o socialismo, teria sido esquecido no desenrolar do debate. O socialismo de mercado, ao confiar aos mercados a alocação dos recursos, de fato teria abandonado a pretensão de planejamento central: “Sem que os críticos e os defensores percebessem, a teoria socialista moderna, ao adotar os princípios do comércio, tinha abandonado silenciosamente o pleito cardeal do socialismo: a direção central da produção industrial.” (M. Polanyi, 2003:198-9)

A acusação de Polanyi é dirigida tanto aos defensores quando aos críticos do socialismo de mercado, lembrando que Dobb foi o único a protestar contra o abandono do ideal de planejamento central. Devemos recordar, porém, que Mises, Robbins e Hayek não deixaram de notar esse recuo em suas críticas[12]. Samuelson, (1958:336), em nota de rodapé na qual resume o debate, parece concordar com a visão de Polanyi quando descreve o CPB como ‘deliberadamente planejando não planejar’.

Roberts [1971], vinte anos mais tarde que Polanyi, insistirá na tarefa de colocar o argumento de Mises em perspectiva histórica, contrapondo-o com as idéias socialistas originais. Roberts acredita que a essência do socialismo seria a abolição do sistema de produção de mercadorias. Neste sistema, as relações sociais entre as pessoas são determinadas segundo as relações entre mercadorias e a exploração do trabalho não é explícita, mas escondida sob a forma do pagamento de salários. Portanto, o fim da alienação dos trabalhadores, no socialismo, seria obtido pela abolição da produção de mercadorias. Os homens, assistidos pela ciência, dominariam o processo produtivo em vez de se ajustarem ao mecanismo dos mercados: as relações produtivas autônomas dos mercados seriam eliminadas em favor da organização racional da produção, cuja execução seria feita como se fosse em uma única fábrica.

Tendo em vista a natureza da oposição marxista aos mercados, a proposta de solução do problema de Mises oferecida por Lange teria, para Roberts (1971:265), obscurecido e posto fora de contexto o problema do planejamento. Como Mises combatia a proposta de eliminação das relações de mercado, uma teoria do socialismo baseada nas mesmas relações de troca não consistiria então em uma resposta ao problema do cálculo. Além de não responder a Mises, o modelo de Lange, ao ignorar a essência do socialismo, cria um socialismo em que nenhum socialista acreditaria ou lutaria por ele[13]. O debate, que procura investigar se os mercados poderiam ser simulados, só interessaria aos economistas teóricos.

A solução proposta por Lange, entretanto, fala em planejamento central. Mas quando se examina o funcionamento do modelo, observa-se que o papel do CPB é em essência ratificar os desejos dos agentes isolados e não dirigir a produção. O uso da nomenclatura de planejamento e o apelo à alocação via mercados, para Roberts, consiste em uma contradição no modelo de Lange:

O dualismo contraditório do modelo de Lange é confirmado pelo desejo de ignorar a inconsistência lógica de seu status duplo. Com essa dualidade inconsistente, o modelo de Lange foi capaz de estabelecer a possibilidade teórica do planejamento socialista baseada nos mesmos princípios de mercado que o planejamento socialista pretendia substituir. (Roberts, 1971:566)

O CPB, para Roberts, se limita a um papel passivo de reajustar preços determinados externamente pelos agentes isolados e portanto não consiste em um esquema de planejamento central[14].

A ilusão de planejamento central existente na proposta de Lange, para Roberts [1971:572], teria sido perpetuada pela crítica de Hayek (1940), que concedeu à proposta uma não merecida credibilidade ao criticá-la em seus próprios termos. Mises, por sua vez, teria contribuído com isso ao apresentar ao mesmo tempo o argumento sobre a impossibilidade do planejamento e a defesa da propriedade privada, dando a entender que o problema se refere à alocação de bens de capital sem propriedade privada.

Embora de fato a versão padrão do debate ignore o contexto da argumentação de Mises e consista em um recuo em relação à possibilidade de planejamento central pleno, o artigo de Roberts peca por distorções na direção inversa. Em primeiro lugar, o CPB não é tão passivo como quer o autor. Especialmente na segunda parte do artigo, Lange apela para o conhecimento superior do CPB em relação aos agentes privados a fim de corrigir imperfeições do mercado ou dirigir o investimento. Hayek, por sua vez, criticou justamente as bases da alegação a respeito desse conhecimento superior. Em segundo lugar, a questão da propriedade em Mises não consiste em um argumento à parte, mas faz parte do ponto central. De fato, Mises define socialismo como ausência de propriedade privada de bens de produção. Finalmente, a discussão sobre qual é a definição correta de socialismo, que apresentamos no primeiro capítulo, é estéril. Deve-se em vez disso avaliar a capacidade de se obter o fim almejado (seja qual for) a partir do esquema proposto e, no máximo, indicar em que medida esse fim se altera ao longo do debate.

A partir da década de oitenta as apreciações do debate contrárias à versão padrão terão o seu foco deslocado da discussão da relação entre o socialismo marxista e o socialismo de mercado para a crítica da interpretação neoclássica da teoria dos preços. Isso é natural na medida em que a partir dessa década ressurge nos EUA o interesse pela economia austríaca. A nova versão do debate que surge nesse período, informada pelos recentes desenvolvimentos da teoria austríaca de processo de mercado[15], irá enfatizar as diferenças entre as abordagens austríaca e a tradicional, criticando o desvio para questões estáticas promovido pelos socialistas de mercado.

A primeira história do debate sob esse ponto de vista foi feita por Karen Vaughn, ativa participante do ressurgimento da Escola Austríaca. Em 1980 a autora apresenta sua versão na introdução do livro de Hoff e em um artigo sobre a história da controvérsia. Neste último, Vaughn [1980] identifica as duas percepções sobre o problema em questão — austríaca e neoclássica — e conclui que as diferenças teóricas entre as mesmas impediram desde o início a resolução da controvérsia. Assim, os austríacos divergiram do mainstream a respeito da relevância e aplicabilidade dos modelos de equilíbrio estático nos quais o conhecimento é considerado como dado, os agentes reagem mecanicamente a esses dados e os incentivos fornecidos pelas diferentes instituições não influem no comportamento desses agentes. Com a teoria econômica se limitando ao modelo teórico convencional, a tese de Mises parece ser de fato refutada por Barone e as objeções teóricas de Hayek soam como objeções práticas.

Contudo, para Vaughn, a crítica de Hayek trata dos aspectos dos mercados que o modelo deixa de fora, em especial a atenção ao processo de ajustamento ao equilíbrio, as conseqüências da incerteza, como a necessidade de atividade empresarial, a natureza da informação ou a questão dos incentivos[16].

A partir do fato de que existem importantes diferenças entre os programas de pesquisa austríaco e neoclássico, Vaughn explica o silêncio dos socialistas de mercado em relação aos argumentos de Hayek. A autora nota (pág. 536) que nos jornais ingleses de fato não houve debate entre defensores e críticos do socialismo, mas sim apenas entre os primeiros. As críticas de Hayek, por sua vez, foram ignoradas e podem ser consideradas como críticas à parte (pág. 543). Além disso, para a autora (pág. 537), os economistas favoráveis ao socialismo tentaram refutar os argumentos de Mises, o que parecia fácil, e ignoraram as ‘questões mais difíceis’ levantadas por Hayek.

Entretanto, Vaughn não explora as diferenças entre Mises e Hayek a fim de fundamentar sua opinião de que os argumentos de Hayek seriam diferentes dos de Mises[17]. Contrapondo-se a essa opinião, o próximo artigo revisionista sobre a história do debate, publicado por Murrell em 1983, afirma que a maioria dos argumentos contrários ao socialismo de mercado foi exposta por Mises de forma mais clara do que Hayek e defende então a tese de que o socialismo de mercado não é resposta legítima ao argumento de Mises.

Da mesma forma que Vaughn, Murrell busca nas diferenças entre as teorias austríaca e neoclássica o fundamento dessa última tese. Murrell expõe então o desafio de Mises em termos austríacos e mostra que a resposta neoclássica ignora os problemas levantados por Mises. Usando citações da edição alemã de Socialism de 1932, anterior aos trabalhos dos socialistas de mercado, Murrell mostra que o problema da alocação eficiente dos recursos para Mises requer adaptação à mudança. Toda a ação é voltada para um futuro incerto e é portanto especulativa. A atividade empresarial consiste essencialmente em abrir, modificar, expandir ou fechar empresas com base em especulações particulares sobre o futuro incerto. Por isso, na teoria de Mises, especial importância é dada aos mercados financeiros. A presença de lucros, por outro lado, premia aqueles especuladores que melhor anteciparam as necessidades futuras dos consumidores. O processo seletivo dado pelos lucros ou perdas, para Murrell (1983:95), estaria no coração da teoria de Mises.

A presença de fatores como atividade empresarial diante da mudança contínua e o mecanismo de seleção dado pelos lucros (em especial nos mercados financeiros) resultam na eficiência econômica que Mises relaciona com as economias de mercado. Dessa maneira, a eficiência exigiria adaptação à mudança. No socialismo de mercado, por sua vez, todos esses fatores estão ausentes. A não ser por alguns breves comentários de Lerner sobre expectativas, não existe no socialismo de mercado ação especulativa, voltada para o futuro. No modelo de Lange, os agentes são tomadores de preços e não se fala em expectativas. Murrell conclui então que o socialismo de mercado, ao ignorar a mudança, não seria então uma resposta ao desafio de Mises.

A desconsideração dos argumentos de Mises por parte dos socialistas de mercado, conclui Murrell (1983:100), não pode ser atribuída ao desconhecimento desses argumentos, já que a reconstrução de Murrell do argumento misesiano foi feita com base em edições de Socialism anteriores a 1936. Como Vaughn, Murrell atribui às diferenças entre os paradigmas austríaco e neoclássico a falta de uma resolução do debate: “O debate terminou com duas teorias, baseadas em diferentes pressupostos e enfatizando diferentes características das economias.” (Murrell, 1983:93)

A tarefa de explicitar tais diferenças e restabelecer o argumento de Mises em termos dessas diferenças chega ao seu ápice com as contribuições de Lavoie. Em 1981 este autor organiza uma edição especial do Journal of Libertarian Studies dedicado ao problema do cálculo, com trabalhos teóricos que questionam a versão padrão (Lavoie, Steele e Bradley) e trabalhos históricos que aplicam o argumento do cálculo no estudo da história da União Soviética (Steele, Richman). A contribuição mais significativa de Lavoie ao problema, contudo, foi sua história do debate intitulada Rivarly and Central Planning, de 1985. Tal livro se tornou a referência moderna mais importante sobre o debate, estabelecendo ‘a’ versão austríaca alternativa sobre o assunto. O próprio Lavoie (1985a:20-22) coloca essa nova versão na forma de tópicos, que podemos resumir da seguinte forma:

i) Embora não tenha dito como funcionaria a economia socialista, a literatura marxista dá indicações do que essa economia não seria, pois rejeita os mercados, o sistema de preços e o uso de moeda.

ii) O desafio de Mises seria dirigido contra a visão marxista do socialismo; não negaria a validade da lógica da escolha para o socialismo e também não seria um argumento de equilíbrio estático.

iii) O argumento de Barone seria similar ao de Mises (a lógica da escolha deve ser aplicada). Enquanto para Mises o sistema de equações não seria aplicável ao mundo real, para Dickinson seria a base de uma solução concreta.

iv) Os argumentos de Robbins e Hayek não são recuos, mas clarificação do argumento de Mises, dado que o argumento socialista se modificou.

v) O modelo de Lange não responde a Hayek por se basear na analogia com o modelo de competição perfeita e ignorar o problema de adaptação a mudanças no mundo real.

vi) A teoria econômica não é neutra a respeito dos méritos relativos do socialismo e capitalismo. Isso só seria verdade se por ‘teoria’ entende-se exclusivamente a teoria neoclássica de equilíbrio de mercado.

A fim de justificar sua versão, Lavoie procura explicitar de forma sistemática as diferenças entre as teorias austríaca e neoclássica que Vaughn e Murrell já haviam mencionado. O autor (págs. 100-113) faz isso a partir da listagem do que considera ‘as limitações da análise estática’ derivada da segunda teoria: a) o limitado papel do subjetivismo, b) a desconsideração dos aspectos da escolha ligados à passagem do tempo e ação empresarial em favor unicamente do aspecto maximizador, c) a concentração no estudo do equilíbrio em vez do processo de obtenção do equilíbrio e finalmente d) a exclusão do estudo da influência de diferentes instituições no comportamento dos agentes. Essa lista deixa clara, quase cinqüenta anos após o ápice do debate, a distinção entre os programas de pesquisa envolvidos na disputa e portanto a natureza do desafio. Levando- se em conta tais aspectos desconsiderados pela teoria convencional, as críticas de Mises e Hayek devem ser vistas como argumentos teóricos (e não meramente práticos) sob o ponto de vista da teoria austríaca de processo de mercado.

O conceito que norteia todo o livro de Lavoie (1985a:22) é a noção de rivalidade: ‘the clash of human purposes’. O autor distingue entre o conceito neoclássico de competição perfeita e o conceito clássico de competição, próximo ao austríaco, segundo o qual a competição consiste em um processo que envolve rivalidade[18]. Enquanto o programa marxista condena a luta competitiva inerente aos mercados, e o programa neoclássico (e também o socialismo de mercado) por sua vez a ignore, o desafio austríaco de Mises, segundo Lavoie, aponta para a necessidade da rivalidade econômica para que se mantenha a complexidade da produção atual. O autor liga a rivalidade com a solução do problema do conhecimento de Hayek, segundo o qual, podemos lembrar, dever-se-ia estudar como os agentes adquirem o conhecimento postulado pela teoria neoclássica. A rivalidade entre competidores seria responsável, para Lavoie (págs. 26 e 102), pela própria criação do conhecimento a respeito das funções de produção, o que inviabilizaria a solução do modelo de Lange: “… o ponto chave do argumento do cálculo é que o conhecimento requerido sobre possibilidades objetivas de produção seria indisponível sem o processo competitivo de mercado.” (Lavoie, 1985a:102)

O problema do conhecimento é corretamente colocado por Lavoie no centro da objeção hayekiana ao planejamento. A maneira como o autor lida com esse problema, por sua vez, pode ser encontrada em seu outro livro, publicado no mesmo ano. Em National Economic Planning: what is left? (Lavoie, 1985b) temos a crítica ao planejamento central estendida a formas distintas de planejamento, como o uso das tabelas imput-output de Leontief. A base da crítica, calcada no problema do conhecimento, é tomada a partir das contribuições à filosofia da ciência feitas por Michael Polanyi (2003, 1962) e, segundo Lavoie, pelo próprio Hayek.

O problema do conhecimento de Hayek, segundo Lavoie (pág. 52), consiste na afirmação de que um órgão planejador bem intencionado não pode alocar recursos de forma adequada devido à impossibilidade de obter o conhecimento necessário para isso. Por sua vez, a crença no planejamento central seria atribuível a uma concepção errônea sobre a natureza do conhecimento: “Em resumo, o argumento contra o planejamento desenvolvido aqui é baseado em uma crítica de teorias objetivistas do conhecimento. (Lavoie, 1985b:57)

O termo ‘objetivista’ é usado no sentido desenvolvido por M. Polanyi e corresponde aproximadamente à concepção positivista da ciência, segundo a qual a ciência consiste na aquisição acumulativa de conhecimento objetivo empiricamente demostrado.

Os defensores do planejamento, ao esposarem tal concepção, crêem que a barreira à obtenção do sucesso de seus planos remonta à limitação na capacidade de obter dados, entendidos como informação explícita, não ambígua, objetiva e portanto comunicável (págs. 5-6). Entretanto, o que guia as decisões econômicas, para Lavoie, é o conhecimento dos agentes. Ao contrário dos dados, o conhecimento dos agentes tem natureza tácita e pessoal, composto muitas vezes de habilidades que seu detentor não é capaz de articular e transmitir. Polanyi dá o exemplo do ciclista que não conhece as leis físicas que mantém sua bicicleta em pé e no entanto as usa em seu proveito. A mesma idéia é expressa pela distinção de Gilbert Ryle entre ‘saber que’ e ‘saber como’. Embora os órgãos de planejamento central possam colher ‘montanhas de dados’ (pág. 56), o conhecimento dos agentes é forçosamente disperso entre os agentes individuais, já que não pode ser expresso como dados.

A adoção da epistemologia subjetivista de Polanyi leva Lavoie não só a rejeitar a possibilidade de centralização de um conhecimento objetivo no socialismo, mas também a defender a rivalidade inerente à competição, a partir da qual se desenvolvem as habilidades e conhecimentos pessoais de cada agente, necessários para que se resolva o problema econômico nos mercados. Ao invés de defender a reconstrução racional (positivista) da sociedade a partir do centro, Lavoie crê que o entendimento da filosofia da ciência, tal como desenvolvida por Polanyi e Hayek, sustentaria a posição de que um sistema econômico complexo só é mantido pela emergência da ordem espontânea descentralizada dos mercados. Tal como uma colônia de formigas (cada uma das quais limitada cognitivamente) que se organiza a partir de comunicação via feromônios, o conhecimento e habilidade pessoal de cada agente econômico só podem ser aproveitados por um sistema descentralizado no qual a comunicação é feita através dos preços.

O processo de diferenciação do programa de pesquisa austríaco do tradicional, que conforme pudemos apurar deveu muito ao envolvimento de Mises e Hayek na controvérsia do cálculo, foi completado na década de setenta com as obras de Lachmann e Kirzner. A versão alternativa do debate, de Vaughn a Lavoie, calcada na clara distinção entre os programas de pesquisa, representa então a retomada do problema original de Mises que havia se perdido com a preocupação neoclássica com questões de equilíbrio estático.

A partir da consolidação da versão alternativa do debate, temos desde a década de oitenta várias outras menções ao debate que divergem da versão padrão. Em particular devemos citar De Soto (1992) e Steele (1992), que escreveram histórias da controvérsia em forma de livro, ambos críticos das soluções do problema do cálculo apresentadas até então.

Da mesma maneira que fizemos ao final da exposição da versão padrão, quando relatamos os comentários de Lange feitos depois do debate, será interessante aqui fazermos o mesmo com Hayek. Ao contrário do primeiro autor, este não altera sua posição. Em um artigo escrito em 1982, Hayek (1984) novamente rejeita a afirmação da versão padrão de que ele teria recuado em relação à posição de Mises. Nesse artigo, Hayek reafirma sua objeção de que o conhecimento necessário para o planejamento central não pode ser transmitido a um órgão central e sequer existiria sem o processo competitivo de descoberta. Diferentemente da serenidade com que debatera na década de trinta, na citação abaixo o autor mostra visível impaciência com a versão padrão: “A expressão pleonástica ‘dado os dados’ (given data) constantemente aparece em Lange. Ela parece exercer uma irresistível atração sobre os economistas matemáticos porque garante duplamente que eles sabem o que de fato eles não sabem.” (Hayek, 1984:54)

Em sua crítica ao modelo de Lange, porém, encontramos o mesmo engano da parte do autor que detectamos no artigo de 1940. Em vez de criticar o mecanismo de tentativas e erros, como fizera naquele artigo, Hayek parece atribuir a Lange a crença de que toda a informação necessária para o planejamento estaria disponível para o CPB. Talvez por escrever muito tempo depois do debate original, Hayek é levado ao erro quando lê no artigo de Lange a afirmação de que ‘os administradores da economia socialista terão exatamente o mesmo conhecimento ou falta de conhecimento das funções de produção do que os empresários capitalistas.’ Por ‘administradores’ Hayek entende o CPB, enquanto na verdade Lange se refere aos administradores descentralizados das plantas.

Embora Lange identifique ilegitimamente o conhecimento dado para o economista com aquele dado para o agente e em seu último artigo de fato demostra crer que o CPB possa de fato obter todos os dados, o novo artigo de Hayek distorce o significado do modelo original e esquece a crítica apropriada que fizera quarenta anos antes a respeito desse ponto específico do modelo: o mecanismo de tentativas e erros proposto, embora busque a descentralização, para funcionar requer que o CPB deva em última análise ter conhecimento sobre cada detalhe da economia, dado que as regras que as firmas devam seguir não são guias à ação claras e objetivas, como quer o autor da proposta.

O Problema do Cálculo Reformulado

Após expor ao longo do trabalho as contribuições dos autores envolvidos no debate e as diferentes opiniões na literatura secundária sobre o significado dessas contribuições, podemos agora retomar a discussão metodológica desenvolvida no primeiro capítulo, a luz da qual organizamos a nossa própria interpretação sobre a controvérsia e que orientará a maneira como em seguida reformularemos o problema original.

Como podemos lembrar, no primeiro capítulo discutimos as implicações metodológicas do estudo de fenômenos complexos. Vimos que para tais fenômenos as relações entre os seus diversos elementos individuais formam uma estrutura organizada cujo funcionamento não é captado pela mensuração estatística de médias e que o conhecimento sobre o estado desses elementos, necessário para que se possa prever ou construir peça por peça tais estruturas, supera em muito a capacidade cognitiva de qualquer elemento isolado. Uma forma de superar essa limitação é por meio da atuação dos mecanismos de tentativas e erros, como a seleção natural ou o mecanismo de lucros e perdas, responsáveis pela organização desses sistemas. As simplificações teóricas que descrevem o princípio de funcionamento desses mecanismos são úteis então para explicar ocorrências passadas e fazer previsões de padrão sobre algumas características gerais de um fenômeno complexo, não para a previsão de seus detalhes e a construção consciente de seus elementos de forma centralizada.

As implicações metodológicas da assimetria entre explicação e previsão que discutimos aparecem por trás das estratégias adotadas ao longo da controvérsia do cálculo por seus protagonistas. O artigo original de Mises pode de fato ser lido como um convite para se lidar com a complexidade da alocação de recursos. Tal complexidade, que podemos claramente ver na exposição do autor do problema alocativo, só seria preservada através das instituições que geram o mecanismo de tentativas e correção de erros dado pelos lucros e perdas.

Tal mecanismo permite abdicar da onisciência necessária para planejar o problema alocativo complexo em favor da ‘divisão intelectual do trabalho’ de que fala o autor. Teríamos então, a partir da ação de agentes cujo conhecimento é meramente especulativo, um sistema de alocação capaz de se adaptar às mudanças contínuas do ambiente econômico. Para Mises, o socialismo seria ‘impossível’ na medida em que exclui por definição o que identificamos como o mecanismo seletivo necessário para que haja tal adaptação.

Na verdade, o argumento não pode ser visto como uma ‘prova’ da impossibilidade do socialismo. O que seu autor faz é mostrar que o problema deve ser resolvido (argumento da similitude), explicar como este é resolvido pelos mercados e notar que não se pode contar com essa solução no socialismo, dada a intenção socialista de eliminar as relações de mercado. O desafio do cálculo consiste na verdade em notar que nenhuma solução alternativa foi formulada até então e convida para que isso seja feito.

A maneira mais simples de lidar com o desafio é negar a complexidade do problema. Vimos que a tradição marxista ignora essa complexidade por causa da influência ricardiana[19]. As decisões de produção são determinadas tecnicamente. Em autores mais recentes, porém, podemos encontrar a crença de que o problema alocativo não é tão complexo como querem os proponentes da revolução marginalista. Dobb explicitamente negou a existência de uma complexidade inerente ao problema. Com ele, vários outros autores crêem que a complexidade seja aparente, fruto precisamente do sistema de produção de mercadorias. Eliminada a rivalidade que se manifesta em segredos industriais ou no planejamento descentralizado, a complexidade em si desapareceria. A mesma crença também surge com freqüência nos escritos dos socialistas de mercado.

A outra maneira de resolver o problema é aceitar a complexidade, mas limitando-a ao que descreve a teoria do equilíbrio geral. Como afirmamos no primeiro capítulo, quando o uso das simplificações da teoria é transferido da explicação para a construção dos mercados, a simplicidade da teoria é imposta à realidade. O socialismo de mercado rejeita então a postura clássica dos defensores do planejamento, mas se limita à descrição de um equilíbrio sem se preocupar com os outros fatores presentes nos mercados reais que possam desempenhar um papel significativo na alocação de recursos. A estratégia adotada é então excluir tais aspectos do conjunto de questões consideradas legítimas sob o ponto de vista da análise econômica, como ilustra o zelo extremo mostrado por Lerner em relegar tais questões aos campos da sociologia e psicologia.

As ambigüidades inerentes ao uso indiscriminado da teoria para tanto descrever quanto simular mercados estão presentes desde o artigo de Barone. Além de sua ambigüidade, o próprio silêncio desse autor sobre o significado de seu conjunto de equações possibilitou que seu artigo fosse utilizado tanto para sustentar a tese de que o socialismo seria impossível (Hayek) quanto para demostrar a sua possibilidade teórica (Lange). O modelo de EG desenvolvido por Barone, quanto visto como teoria meramente explicativa, mostra apenas a complexidade do problema, o que conspira contra o planejamento central; visto de forma literal, reduz tal complexidade de forma a que a solução do sistema seja vista como a base viável para uma resposta a Mises.

Os eventos do debate que ilustram essa nossa interpretação da estratégia dos socialistas de mercado são obscurecidos na visão padrão. Isto porque a visão padrão ficou excessivamente marcada pelas peculiaridades do artigo de Lange e pela época em que este foi escrito. A versão de Lange diminui a importância da solução de Dickinson e ignora tanto a outra solução proposta simultaneamente, desenvolvida por Durbin, quanto as críticas feitas por Hayek depois de 1936, data da publicação do texto de Lange. Sendo assim, salientaremos em seguida os episódios da controvérsia que ilustram nossa interpretação.

Tendo em vista as críticas que foram feitas aos modelos de socialismo de mercado, a estratégia de restringir a complexidade do problema aos elementos destacados pela teoria foi marcada por uma série de recuos, progressivamente abandonando elementos de planejamento central e reincorporando elementos de mercado conforme essa complexidade era introduzida novamente.

Inicialmente, Dickinson preserva o planejamento central através do uso de uma interpretação bastante literal da teoria. O S.E.C., por meio da coleta de estatísticas, traçaria curvas de demanda e custos e resolveria centralmente o sistema de equações do equilíbrio geral, sem auxílio de mercados. Todas as ações econômicas dos agentes seriam então satisfatoriamente ‘comprimidas’ em tais curvas.

A reação de Mises e de Hayek e essa proposta consistiu essencialmente em criticar a relevância do esquema para resolver o problema real. Para Mises, a teoria de equilíbrio é apenas uma construção auxiliar no processo de explicação do mundo, que abstrai da necessidade de lidar com o problema da ação empresarial diante da mudança. A descrição do equilíbrio não seria um guia para a ação no contexto relevante das escolhas concretas. Hayek, da mesma forma, identifica na proposta os erros originários do uso da teoria explicativa para dirigir uma economia. A distinção de Hayek entre conhecimento teórico do economista e conhecimento prático do agente deveria alertar Dickinson de que, para que tenhamos uma explicação, é legítimo o uso de abstrações que estilizam os dados sobre preferência, recursos e tecnologias. No mundo real, contudo, essas entidades simplificadoras se dissolvem em uma variedade enorme de detalhes, refletidos no conhecimento disperso entre todos os agentes sobre cada situação local. Tudo isso desaparece, por exemplo, quando se interpreta muito literalmente a noção de função de produção como uma relação constante e pouco mutável entre produtos homogêneos e insumos genéricos.

Durbin e Lange, porém, não se impressionaram com a distinção entre conhecimento teórico, fruto de simplificações, e conhecimento prático, extremamente rico em detalhes. Se o fizessem, teriam que lidar com os problemas da assimetria entre explicação e previsão. O aspecto da crítica de Hayek que os marcou, conseqüentemente, se restringiu ao ponto também levantado por Robbins de que a coleta e processamento dos dados para preencher as equações da teoria não seriam viáveis ‘na prática’. A natureza dos dados, por sua vez, permanece em suas respostas como no modelo de Dickinson.

A consideração da objeção prática, por sua vez, foi suficiente para que o socialismo de mercado, na proposta de Lange, recuasse significativamente, abdicando do planejamento estritamente central em favor da adoção parcial do mecanismo de alocação descentralizado. A solução de Lange, sob o ponto de vista que defendemos, sem dúvida, representa um passo na direção correta, na medida em que propõe um mecanismo seletivo que em princípio dispensa a necessidade de planejadores oniscientes, já que os dados sobre os fundamentos da economia não mais são coletados pelo CPB.

Embora utilize o princípio correto, o mecanismo seletivo proposto por Lange é ainda bastante rudimentar. Como Dickinson, Lange vê a teoria de forma literal, o que simplifica sobremaneira a visão que o autor tem a respeito da tarefa que deve ser realizada por um mecanismo de correção de erros no mercado. A crítica de Hayek irá justamente salientar essa extrema simplificação. Para Lange, a economia requer poucas adaptações, os produtos são homogêneos, as alternativas produtivas conhecidas pelos agentes, as expectativas não desempenham função alguma e o papel dos administradores se limita a reagir mecanicamente a preços dados. De fato, como vimos, este último autor acredita que os agentes nos mercados atuam da mesma forma que descreve a teoria da competição perfeita. Nessa interpretação literal da teoria, o processo de mercado se reduz efetivamente a uma espécie de mecanismo primitivo de computação de dados, como de fato afirmou Lange (1969).

O esquema de Lange, porém, retém elementos centralizadores. Não só o processo de fixação de preços depende do CPB e os agentes atuam passivamente segundo as ordens centrais, mas também podemos ver na segunda parte do artigo que o autor deixa de apelar aos mercados artificiais e defende intervenções centrais com base no conhecimento superior dos planejadores. É curioso notar que Hayek não dá atenção a essa parte do artigo, mais facilmente exposta à sua crítica baseada na limitação do conhecimento.

Parte da centralização ainda presente no modelo de Lange é abandonada na proposta de Durbin. Nesta última, a fixação centralizada de preços é abandonada em favor da fixação realizada pelos administradores dos monopólios nacionalizados, ainda que a fixação obedeça a regras impostas sobre custos. O modelo evita assim a rigidez na periodicidade dos reajustes de preços ou a hipótese de existência de muitas firmas por mercado existente no primeiro modelo. É interessante notar que a proposta não obteve a atenção que mereceu no debate. Na versão padrão a proposta não aparece, pois foi publicada no mesmo ano que o artigo de Lange. Hayek, por sua vez, discutiu uma proposta análoga no seu artigo de 1935, surpreendentemente ignorando em seus artigos posteriores à proposta de Durbin, que ilustraria mais um recuo em relação ao planejamento central. O descaso com essa proposta, de qualquer maneira, deve ser reavaliado em trabalhos históricos como este, já que na retomada do debate a partir da década de noventa, as novas propostas de socialismo de mercado se aproximam em espírito muito mais de Durbin do que de Lange, na medida em que utilizam mercados reais e não simulados.

Esta proposta, porém, como as demais, se atém ao universo da teoria convencional e ignora elementos fundamentais dos mercados reais. Em uma crítica válida também para a proposta de Lange, Hayek aponta em seu artigo de 1935 que em um mundo fora do equilíbrio, com a incerteza inerente ao mesmo, as alternativas não são dadas e os custos de oportunidade existentes sob competição não existem sem que haja competição propriamente dita. Instruir as firmas a igualar preço a custo marginal pressupõe conhecimento sobre custos que só existe na presença do processo competitivo abstraído pela teoria. Para que a aplicação das regras seja efetiva, o órgão central deveria então, a fim de avaliar as alternativas, conhecer os detalhes de cada empreendimento, o que resultaria no abandono da descentralização pretendida.

Ao explorar as assimetrias entre previsão e explicação na teoria econômica, apontando para elementos dos mercados que vão além da descrição da lógica da escolha em equilíbrio, a crítica austríaca ao socialismo de mercado deu origem a uma teoria alternativa sobre a competição, teoria essa que enfatiza a rivalidade entre empresários e o processo de descoberta de conhecimento que daí resulta. A teoria austríaca moderna do processo de mercado, como vimos, deveu muito de sua formação ao próprio debate do cálculo. Contudo, outros desenvolvimentos teóricos que ocorreram no séc. XX, como as teorias de direito de propriedade, escolha pública e economia da informação, ou mesmo os próprios desenvolvimentos posteriores da teoria de equilíbrio geral, poderiam ter acrescentado aspectos novos ao problema do cálculo.

Tais desenvolvimentos resultarão de fato na retomada do debate na década de noventa, como veremos no próximo capítulo. Aqui, porém, apenas ilustraremos como um desses elementos deixados de fora, a questão dos incentivos, teve sua discussão ora legitimada ora não ao longo do debate original. Os primeiros críticos do socialismo apontavam para a falta de motivação para o trabalho que existiria naquele sistema. Mises e Hayek, por sua vez, queriam mostrar que sem propriedade privada, independente dessa crítica, escolhas racionais não seriam possíveis. Assumiram então essa motivação como dada, pois pretendiam apontar outro problema com o socialismo. Isso não implica naturalmente que consideravam os problemas de incentivo irrelevantes. Os socialistas de mercado, por outro lado, rejeitaram a análise dessas questões porque as consideravam fora do escopo da teoria econômica. Na resposta ao socialismo de mercado, Mises e Hayek introduzem um segundo tipo de incentivo, diverso daquele discutido pelos primeiros críticos: a propriedade privada estaria ligada com a atividade empresarial, a postura diante do risco e a rivalidade necessária para a descoberta de alternativas. Finalmente, como veremos no próximo capítulo, os socialistas de mercado modernos, ao incorporarem a teoria de informação assimétrica em seus modelos, voltarão a considerar legítimas as observações sobre motivação postas pelos primeiros críticos e interpretarão as observações austríacas sobre o segundo tipo de motivação como se fossem do primeiro, ignorando os problemas levantados por Mises e Hayek. Irão então procurar desenhar mecanismos de incentivos para o controle da administração das firmas socialistas que sejam capazes de induzir os administradores a se esforçar quando seus superiores não podem observá-los.

Entretanto, sob o ponto de vista austríaco, a questão fundamental que emergiu do debate foi o problema do conhecimento proposto por Hayek. Além da complexidade encontrada em fenômenos físicos, o estudo das relações de mercado adiciona ainda as complicações inerentes aos fenômenos mentais e sociais. Em vez de apenas relações estruturais entre objetos inanimados, temos também a interação de agentes cujos planos de ação para atingir seus propósitos levam em conta as crenças de cada um, tanto a respeito de objetos inanimados quanto a respeito dos planos de outros agentes. O subjetivismo austríaco, que se estende além do reconhecimento das preferências como a base do valor, nas mãos de Hayek dissocia o conhecimento estilizado postulado pelos economistas do conhecimento de cada agente sobre os detalhes de seu entorno. Mais ainda, questiona a correspondência automática entre esse último tipo de conhecimento (ou crença) e a realidade que pretende refletir, correspondência essa que figura na definição de equilíbrio do autor. A Economia, para este, deveria então formular uma teoria sobre o processo de aprendizado pelo qual o conhecimento dos agentes se aproxima ou não dessa realidade: “Portanto poder-se-ia descrever a Economia (que eu prefiro agora chamar Catalática) como uma meta-teoria, uma teoria sobre as teorias que as pessoas desenvolveram para explicar como descobrir e usar de forma mais eficiente diferentes meios para diversos propósitos.” (Hayek, 1988:98, ênfase no original)

A interpretação de Lavoie do debate corretamente coloca o problema do conhecimento no centro da objeção hayekiana ao planejamento central. Como Hayek apenas formula o problema e não deixa explícita qual ‘metateoria’ ou abordagem de metodologia da ciência pretende usar para resolvê-lo, Lavoie utiliza em sua discussão do debate as idéias de Michael Polanyi sobre o conhecimento pessoal. O uso dessa abordagem leva Lavoie a enfatizar a natureza tácita do conhecimento dos agentes, de modo que o uso centralizado do mesmo seria barrado pela impossibilidade de articulá-lo e portanto comunicá-lo diretamente a um órgão diretor. O desenvolvimento dessas habilidades tácitas seria por sua vez fruto da rivalidade inerente ao processo de mercado.

Contudo, em nossa opinião, existe outra abordagem metodológica mais adequada para lidar com o problema do conhecimento e portanto também com a interpretação da controvérsia do cálculo. Reinterpretaremos aqui o debate a partir de uma postura popperiana a respeito do problema do conhecimento[20]. Esta abordagem, aliás, se aproxima mais das crenças metodológicas do próprio Hayek, bastante influenciadas pelas idéias seu amigo Karl Popper[21].

O grande mérito do artigo de Hayek de 1937 foi enfatizar tanto a importância do conhecimento falível dos agentes quanto postular a existência de uma realidade independente desse conhecimento, realidade essa a qual o agente deve se adaptar com o auxílio do mecanismo competitivo de descoberta. Os mesmos elementos podem ser encontrados na obra de Popper, como pode ser visto através do breve esboço de sua versão da Epistemologia Evolucionária que apresentamos em seguida[22].

Popper contraria a posição positivista que crê que a ciência progride através do acúmulo de dados empíricos objetivos, independentes de crenças pessoais. Como a ciência sempre parte de problemas, a coleta de dados é sempre condicionada pelas concepções prévias, além das disposições inatas do cientista. Não existiriam dados independentes de teoria; aqueles são impregnados por estas[23]. A ciência partiria então da tentativa de resolver problemas através da formulação de hipóteses explicativas de natureza conjectural. Embora creia que a ciência não parta dos fatos, mas sim de idéias, Popper é realista: existe uma realidade externa à qual as teorias pretendem se referir. Esta realidade, por sua vez, nunca é captada de forma perfeita pelas hipóteses: o conhecimento humano é sempre falível.

A racionalidade da ciência não dependeria da capacidade de justificar (provar) as teorias — isto seria impossível — mas sim da postura crítica, da disposição para submeter as hipóteses a testes. A impossibilidade de se saber com certeza se uma hipótese foi refutada ou não, por sua vez, não altera a essência de sua filosofia. O racionalismo crítico de Popper pode ser ampliado de forma a estender o falibilismo ao próprio processo de crítica, o que Bartley denomina racionalismo pan-crítico[24].

Para essa vertente de defesa do racionalismo, independente de conhecermos os detalhes de funcionamento do processo seletivo, independente de sabermos se em cada caso a crítica teria sido conclusiva ou não, ainda assim o progresso do conhecimento humano depende da existência do espírito crítico. Suspensa a atitude crítica, necessária para que o conhecimento falível se aproxime da realidade inatingível, cessa a competição entre idéias e reina o dogmatismo.

O desenvolvimento do conhecimento por meio de ‘conjecturas e refutações’, como descreve Popper, é apenas uma variante do mecanismo geral de seleção por tentativas e erros que encontramos tanto na biologia de Darwin, na filosofia da ciência de Popper ou na teoria da competição de Hayek. Uma das linhas de pesquisa da Epistemologia Evolucionária explora justamente as semelhanças e diferenças entre esses processos seletivos. Na ciência, para que haja efetivamente a ‘seleção’ de idéias, estas precisam ser passíveis de crítica. Para isso, devem ser vistas como entidades objetivas, dissociadas de seus criadores. O casamento indissociável entre o criador e sua idéia, como é feito em epistemologias subjetivistas, limita o processo de crítica à seleção (morte) do próprio indivíduo. A articulação da idéia por meio de uma linguagem que possa ser entendida intersubjetivamente ‘objetifica’ a teoria de modo que possamos analisá-la pelo seu mérito próprio, independente de seu criador. Assim, podemos ‘deixar que as idéias morram em nosso lugar’, como coloca Popper, o que aceleraria o processo de correção de erros.

O ‘conhecimento objetivo’, dissociado dos aspectos sociológicos e psicológicos de sua criação, se torna autônomo, na medida em que existem implicações lógicas desse conhecimento que podem revelar novos problemas, problemas que estavam lá, de forma independente da percepção prévia dos analistas. Abre-se caminho então para um processo de descoberta, de exploração das conseqüências das idéias, processo esse cujo resultado revela alternativas surpreendentes e insuspeitas.

O falibilismo, o caráter conjectural das hipóteses, o realismo, o mecanismo de correção de erros e a natureza indeterminista do processo de evolução que, como indicamos em nosso esboço acima, caracterizam a filosofia de Popper, são elementos – também presentes na obra de Hayek – utilizados em nossa reformulação do problema do cálculo.

A dificuldade com a solução de Lavoie ao problema reside no fato de que, ao se refugiar em uma postura estritamente subjetivista a respeito do conhecimento, impede-se o desenvolvimento do programa de pesquisa proposto por Hayek. Por um lado, considerar que o conhecimento disperso seja tácito e inarticulável permite que se critique o tipo de planejamento que pressupõe o conhecimento dos dados objetivos do problema e que reduz o problema à capacidade de processamento desses dados. Por outro, restringe-se sobremodo o que se pode dizer a respeito do processo de aprendizado dos agentes, de como o conhecimento subjetivo se aproxima ou não da realidade externa.

Sem dúvida grande parte do conhecimento dos agentes é tácito, o que implica em uma objeção válida ao planejamento central enfatizada por Lavoie; entretanto, isso não revela a principal dificuldade que esse planejamento encontra ao lidar com o problema do conhecimento de Hayek, a saber, como o conhecimento se relaciona com a realidade subjacente. Sob um ponto de vista popperiano, porém, essa dificuldade figura no centro do problema [25].

Sob esse ponto de vista, o problema dos agentes econômicos é o mesmo que o dos cientistas, a não ser pela natureza da realidade que se investiga (geral no caso dos cientistas ou local no caso dos empresários). O conhecimento dos agentes econômicos, como o dos cientistas, é conjectural e falível. O comportamento futuro dos consumidores, as alternativas tecnológicas, os usos alternativos dos recursos são muito complexos para que se tenha conhecimento imediato a seu respeito. Cada empresário formula então uma hipótese sobre quais são as condições dos mercados que lhe interessa e estabelece um plano de ação baseado nessa conjectura. Mais ainda, dentro de cada firma podemos encontrar teorias diferentes, defendidas por grupos diferentes de executivos, que procuram explicar, por exemplo, por que as vendas de certa firma estariam caindo. As ações baseadas nas conjecturas são implementadas e sujeitas então a teste: se a causa for a renda baixa da população, a adoção de produtos mais baratos pode resolver o problema, se for a falta de conhecimento dos consumidores sobre a existência do produto, publicidade poderia ser a solução.

Cada hipótese empresarial enseja a análise de dados diferentes e o mesmo conjunto de dados é interpretado de forma diferente por indivíduos diferentes. As ações dos indivíduos não são portanto determinadas pelo conjunto de dados objetivos conhecidos pelos agentes. Podemos então modificar a distinção entre informação e conhecimento proposta por Lavoie[26]. Informação seria um fluxo de dados e conhecimento seria um estoque de teorias que compõem a ‘visão de mundo’ do indivíduo[27].

Fransman (1987) coloca a distinção de forma clara no que chama de ‘paradoxo da IBM’: se o que diferencia as firmas são conjuntos de informação, pode-se perguntar como a IBM — processadora de informação por excelência — pôde cometer tamanho erro na década de sessenta ao privilegiar os mercados de mainframes em detrimento dos mercados de microcomputadores, enquanto pequenos empresários, sem a mesma capacidade de processamento de informação, tomaram a decisão empresarial correta? A resposta do autor coincide com a nossa: mais importante que ‘informação’ é o conjunto de crenças (o conhecimento) que gera hipóteses diferentes sobre a realidade.

A essência do processo competitivo reside no teste dessas hipóteses, na medida em estas são a base dos planos de ação implementados. Lucros indicam que a hipótese empresarial não foi refutada até então e prejuízos indicam que pelo menos alguma hipótese deve ser abandonada ou reformulada. As bolsas de valores e as demais modalidades de investimento são arenas nas quais opiniões diferentes sobre os mercados entram em conflito. Por tratar da condição dos mercados no futuro mais distante, a respeito do qual o conhecimento é mais incerto, nas bolsas e demais mercados de investimento é importante que haja conjecturas diferentes.

Nos termos da Epistemologia Evolucionária, o aprendizado não depende apenas do processo de correção, mas também das ‘mutações e recombinações’ ou variabilidade de hipóteses. Quanto se reconhece que o conhecimento é falível, a diversidade é bem vinda. Porém, quando se pressupõe que os agentes já conheçam a realidade, como faz a teoria neoclássica, a diversidade passa a representar uma ineficiência: a diversificação nas características dos produtos é vista não como uma tentativa de descobrir as preferências dos consumidores, mas como uma tentativa de gerar poder de monopólio.

O próprio Lavoie acaba reconhecendo a importância do esquema de competição popperiano (hayekiano) entre hipóteses conjecturais, embora essa idéia não possa ser derivada da metodologia que defende:

Os participantes do mercado não são e não poderiam ser tomadores de preços mais do que cientistas poderiam ser tomadores de teorias. Em ambos os casos, um pano de fundo de preços ou teorias não questionadas é utilizado subsidiariamente pelo empresário ou cientista, mas o foco da atividade é discordar com certos preços de mercado ou teorias científicas. Empresários (ou cientistas) ativamente discordam de preços (ou teorias) existentes e se comprometem com seus projetos (ou idéias) elevando ou abaixando preços (ou criticando teorias existentes). (Lavoie, 1985b:83-4)

Podemos a partir da postura falibilista rever a crença dos socialistas de mercado de que o planejamento do investimento reduziria ou eliminaria as flutuações econômicas. Se o conjunto das atividades econômicas for determinado segundo as hipóteses sobre a realidade econômica concebidas pelo planejador, embora não haja neste caso desperdício advindo das decisões contraditórias por parte de agentes isolados (as paredes seriam de vidro), será quase certo que o sistema como um todo sofrerá flutuações ainda maiores após um certo tempo, depois que a conjectura que baseou todas as decisões se revelar errônea.

O sistema de correção de erros existente nos mercados, por outro lado, a todo instante elimina erros, o que é seguido de imitação das estratégias que se revelaram corretas. O processo de encontrar a hipótese mais correta pressupõe a diversidade de tentativas e o conseqüente desperdício representado pelos erros.

Esse problema surge também, em menor grau, no planejamento indicativo. Na medida em que o comando central for de fato efetivo, subtrai-se a capacidade do sistema de testar alternativas. O MITI[28] japonês, ao qual freqüentemente se associa o sucesso econômico do Japão, acreditava na década de sessenta que o país não comportaria mais do que uma única fábrica de automóveis, que não se deveria investir em softwares e inicialmente negou à Sony o licenciamento da tecnologia americana de transistors porque acreditava que tal tecnologia não tinha futuro (Henderson, 1993:744). Tivesse o MITI autoridade de fato para planejar o investimento, o processo de descoberta do mercado teria sido barrado e o progresso tecnológico seria provavelmente menor. A publicação dos dados setoriais, por sua vez, não eliminaria o problema, na medida em que estes seriam interpretados de formas diferentes pelos empresários.

Tendo em vista a forma como colocamos o problema do conhecimento, podemos agora reformular o desafio do cálculo econômico posto por Mises.

A alocação de recursos em uma sociedade desenvolvida é tarefa extremamente complexa, devido ao enorme número de inter-relações entre indivíduos interagindo com elevado grau de divisão do trabalho e a existência de um contínuo fluxo de mudanças às quais deve haver adaptação. Nenhum indivíduo ou grupo é capaz de descobrir e dominar o conhecimento necessário para dirigir tal tarefa alocativa centralmente. Em economias de mercado, a alocação de recursos é feita através de um sistema de correção de conjecturas empresarias falíveis dado pelo mecanismo de lucros e perdas. A competição entre empresários gera novas conjecturas cujas conseqüências são desconhecidas e que serão por sua vez testadas e darão origem a novas oportunidades de lucros. A diversidade de hipóteses (concorrência de idéias) submetidas a teste aumenta as chances de aprendizado e descoberta dessas novas possibilidades, em comparação com uma situação na qual todos os planos sejam baseados no mesmo conjunto de hipóteses (monopólio de idéias). A falibilidade do conhecimento e a presença das mudanças no ambiente econômico requerem que o processo de correção de erros seja contínuo. O mercado não chega a um estado estacionário de equilíbrio ótimo. Gera adaptação, mas não esgota as possibilidades de troca.

A rejeição dos mercados exige então que ou se explique como o problema do conhecimento deixa de ser relevante em um sistema alternativo ou se explicite qual seria o mecanismo que substituiria o processo de seleção de mercado e ainda assim resolveria o mesmo problema, ou seja, de forma que haja um processo de descoberta que sirva como base para a alocação de recursos que pelo menos preserve a complexidade e a capacidade de adaptação presentes no mecanismo seletivo dos mercados (ou que de fato o supere e gere um resultado ótimo).

As soluções apresentadas pelos socialistas de mercado até então falharam pelos seguintes motivos:

a) Seus autores pressupõem nos modelos a solução do problema exposto acima (petitio principii), na medida em que postulam que os agentes e os planejadores possuam o conhecimento que é gerado pelo mecanismo de descoberta substituído;

b) Seus autores ao mesmo tempo reconhecem a complexidade do problema (quando utilizam a teoria para explicar o mercado) e ignoram essa complexidade em suas respostas (quando transferem a simplicidade do modelo explicativo para a realidade, na medida em que o utilizam para simular os mercados).

O caminho mais promissor para resolver a questão, em nossa opinião, requer que se investiguem mais a fundo as características dos processos de correção de erros. A representação desses processos por meio de um modelo de seleção por tentativas e erros, como o de Lange, ignora a diversidade de dimensões competitivas e depende da formulação de critérios a priori sobre o que consiste sucesso ou fracasso[29].

A questão central é colocada pelo próprio Mises quando este afirma que seria necessário para a economia um mecanismo de seleção automático, pois do contrário teríamos que postular o conhecimento da solução, caso a seleção fosse consciente. O rigor analítico mostrado por Lerner ao defender o abandono da ‘regra’ do lucro em favor do apelo direto aos custos e receitas marginais, quando visto à luz do problema do conhecimento de Hayek, na verdade se dissolve na falácia apontada no item (a).

Mises x Hayek: O Debate Interno Austríaco

Defendemos na seção anterior que o resultado mais importante da controvérsia do cálculo foi a formulação do problema do conhecimento. Contudo, a solução popperiana que sugerimos, compatível com as idéias de Hayek, se choca diretamente com as crenças metodológicas de Mises[30], crenças estas defendidas até hoje por um grupo de economistas austríacos. Como resultado disso temos na década de noventa um debate entre economistas austríacos a respeito da questão do cálculo econômico socialista. Esse debate, que gira em torno das diferenças entre as contribuições de Mises e Hayek, ilustra a maneira como as diferentes posturas metodológicas envolvidas são compatíveis ou não com o problema do conhecimento.

A distinção hayekiana entre conhecimento teórico e conhecimento prático dos agentes trouxe consigo a dissociação entre o conhecimento subjetivo desses últimos e a realidade externa à qual este conhecimento pretende se referir. A introdução do realismo e do falibilismo no que diz respeito ao conhecimento dos agentes, por sua vez, implica que a explicação econômica deve ir além da lógica da escolha baseada somente nas decisões subjetivas dos agentes. Os agentes econômicos erram e a teoria econômica deveria justamente investigar como a alocação econômica dos recursos depende de um processo de correção desses erros. O programa de pesquisa proposto por Hayek — a formulação de teorias sobre aprendizado — rouba então da economia a pretensão de estabelecer a validade de seus resultados apenas a partir do exame das implicações lógicas do conceito de ação humana proposital, como quer a metodologia misesiana. Isto porque o estudo da ação proposital se limita ao estudo da lógica da ação de cada agente, enquanto a garantia de que haja coordenação no mercado depende de considerações intersubjetivas. Em outros termos, a preponderância das forças equilibradoras nos mercados deixa de ser garantida apenas existência da ação racional e passa a ser o principal objeto de investigação da moderna teoria austríaca de processo de mercado, tal como desenvolvida por Lachmann e Kirzner a partir dos fundamentos erguidos por Mises e Hayek.

Não existem, naturalmente, diferenças significativas no que diz respeito às concepções teóricas e práticas analíticas dos economistas austríacos. As diferenças metodológicas apontadas acima, no entanto, levaram o referido grupo de economistas austríacos a rejeitar a contribuição de Hayek ao debate, refugiando-se em uma postura por vezes denominada ‘subjetivismo radical’.

Os defensores do apriorismo misesiano irão então desferir um ataque simultâneo ao programa de pesquisa hayekiano, em duas frentes: Selgin (1990), sob um ponto de vista estritamente subjetivista, irá criticar as idéias de Lachmann e Kirzner derivadas do problema do conhecimento de Hayek e Salerno (1990, 1993) procurará dissociar as idéias de Mises das de Hayek, rejeitando as contribuições do segundo.

Esse ataque deu origem ao debate interno a respeito das contribuições de Mises e Hayek à controvérsia do cálculo. Yeager (1994, 1996, 1997) e Kirzner (1976) defendem a relevância das objeções de Hayek ao socialismo, enquanto Salerno (1994, 1996), Rothbard (1991), Hoppe (1996) e Herbener (1996) defendem a tese de que o problema do cálculo de Mises seria diferente do problema do conhecimento de Hayek, sendo este último um desvio do argumento relevante:

Em particular, ele [Salerno, 1990] mostrou que a visão dos autores [Mises e Hayek] sobre o socialismo são distintas e argumentou que o argumento original de Mises no assim chamado debate do cálculo econômico socialista era correto desde o princípio e era também a palavra final, enquanto que a contribuição própria de Hayek ao debate foi falaciosa desde sua origem e meramente acrescentou confusão. (Hoppe, 1996: 143)

A rejeição da contribuição de Hayek, como sugerimos acima, é derivada da crença deste autor no realismo e falibilismo popperiano (modificado pelas considerações sobre complexidade do fenômeno social). A veracidade dessa afirmação é ilustrada de forma mais clara pelo texto de Selgin (1990). Para este autor (1990:28), a investigação sobre o conhecimento dos agentes introduz na análise hipóteses auxiliares não provadas que invalidariam a certeza obtida através do conhecimento praxeológico. O falsificacionismo que Hayek introduz em seu artigo de 1937, interpretado por Selgin, diria respeito à possibilidade de refutação da teoria a partir da observação concreta das ‘motivações particulares e estímulos’ que dariam origem às escolhas reais dos agentes. Para Selgin, porém, a observação do aprendizado dos agentes seria relevante apenas para estudos históricos, não teóricos. Segundo a praxeologia, observações sobre eventos históricos apenas ilustram a teoria, cuja validade seria determinada a priori.

Contudo, essa interpretação do significado do artigo de Hayek de 1937, repetida por seus demais oponentes, não se sustenta. Como mencionamos no capítulo anterior, quando estudamos o referido artigo, Hayek explicitamente nota que está sugerindo uma teoria sobre aprendizado e não a coleta de dados empíricos sobre aprendizados reais dos agentes. Esta interpretação é reforçada pela citação do autor que fizemos há pouco sobre a Economia como metateoria.

Em Hayek, o subjetivismo e o realismo convivem e são representados respectivamente pelas conjecturas empresariais e pelo mecanismo impessoal de seleção por lucros e perdas. Selgin, por sua vez, procura defender a praxeologia através de uma postura radicalmente subjetivista. Para este autor (1990:39), os conceitos de lucro ou perda “são fenômenos subjetivos, não tendo uma base ‘objetiva’ externa à mente dos participantes dos mercados”. Para Selgin, a imaginação das vias alternativas de ação define a oportunidade de lucros. Não existiriam, como quer Kirzner, oportunidades de lucros objetivas, não percebidas, passíveis de serem descobertas[31]. Selgin (pág. 43) procura então esconder a realidade externa através da justificação da seguinte afirmativa: não existem oportunidades objetivas de lucro porque não existem preferências dos consumidores independentes da reação destes às ofertas empresariais.

Nas obras de Hayek e de Mises, além do elemento empresarial subjetivo, temos também o mecanismo impessoal de lucros e perdas influenciando o comportamento subjetivo dos agentes. Neste ponto a fraqueza da postura estritamente subjetivista de Selgin se torna explícita, tanto que ele próprio não deixa de apelar para esse segundo elemento. Quando saímos da esfera da praxeologia, afirma este autor, e investigamos processos de mercados reais, históricos, temos que a realização do lucro (distinto do conceito praxeológico de lucro empresarial) é sintoma de que ‘a compreensão e imaginação’ do empresário se mostraram corretas.

De maneira hayekiana (e misesiana), Selgin afirma que nesse caso as conjecturas empresariais ‘não foram baseadas em ilusão ou antecipação incorreta do futuro’ (pág. 49) ou ainda que ‘os preços de mercado transmitiram informação refletindo a compreensão derivada do contínuo processo de trocas’ (pág. 51). Sem o cálculo monetário, continua o autor, seria impossível julgar se as conjecturas empresariais foram corretas.

Dessa maneira, depois de descrever com outras palavras o próprio processo de aprendizado hayekiano, necessário para que se obtenha a coordenação nos mercados, e que não depende apenas dos aspectos subjetivos dos agentes, mas também do mecanismo de correção de erros, Selgin subitamente atribui à praxeologia a garantia de que haverá coordenação no mercado. Para efetuar tal manobra o autor apela para a necessidade dos preços para que se faça o cálculo econômico, sendo estes preços um conceito praxeológico:

A existência de preços de mercado, que por sua vez depende da propriedade privada e troca dos meios de produção, é portanto um pré-requisito necessário para o cálculo econômico. Essa é a conclusão fundamental da crítica praxeológica ao socialismo. A necessidade (não a suficiência) dos preços de mercados para o sucesso empresarial, incluindo cálculo e entendimento empresarial pode ser estabelecido sem o apelo a outros pressupostos necessários a respeito do uso e disseminação do conhecimento. Sua veracidade não depende do ‘estado de alerta’ dos empresários em um mercado livre. Ela deriva da consideração da lógica pura do processo equilibrador:… (Selgin, 1990:51)

É curioso notar que a descrição do funcionamento dos mercados não diverge significativamente daquela apresentada por Hayek. Apenas as consequências metodológicas da contribuição deste último são impalatáveis para os defensores da metodologia de Mises.

Entretanto, isto bastou para que as ideias de Hayek em geral, e em particular sua contribuição ao debate do cálculo fosse sistematicamente criticada e mal compreendida por esse grupo de economistas. Salerno (1990:39), por exemplo, ataca o conceito de ordem espontânea através de uma falácia da composição: a racionalidade da ação individual implica, para o autor, a racionalidade das instituições sociais. Os mercados seriam então criados propositadamente, de forma racional.

Nesse mesmo artigo, Salerno rejeita a contribuição de Hayek ao debate, afirmando que o problema do socialismo se refere ao cálculo, não ao conhecimento. A fim de suportar a sua rejeição das considerações sobre conhecimento, Salerno cita trechos dos capítulos 25 e 26 do Human Action de Mises (1998:692-696). Nesses trechos, Mises introduz o problema do cálculo. Argumentando contra a visão de que o cálculo dispensa preços (em favor do cálculo em espécie), o autor assume que os fins sejam dados (a construção de um prédio) e que as alternativas tecnológicas sejam conhecidas pelo diretor socialista que toma a decisão.

Argumenta então que mesmo na posse desse conhecimento, a decisão sobre a construção não pode ser feita racionalmente porque é impossível sem moeda atribuir valor aos diferentes bens de capital, já que não é possível somar recursos heterogêneos. Citado fora do contexto da crítica ao cálculo em espécie, a menção ao pressuposto de que as tecnologias, recursos e preferências sejam conhecidos pelo diretor consistiria, para Salerno (pág. 45), em uma ‘prova’ de que mesmo com conhecimento perfeito o problema do cálculo ainda persistiria e que por isso considerações sobre conhecimento seriam não essenciais. Mas, se tomarmos a teoria de equilíbrio geral que informa os modelos de socialismo de mercado, a hipótese de que os fundamentos da economia são conhecidos pelo diretor evidentemente implica que uma alocação econômica de recursos poderia ser planejada. A complementariedade das ideias de Hayek em relação ao argumento de Mises se torna evidente quando situamos o trabalho do primeiro autor no seu contexto de crítica a relevância desses modelos de equilíbrio geral para a solução do problema proposto por Mises.

A hostilidade de Salerno em relação à obra de Hayek suscitou uma resposta da parte de Yeager (1994), que marcou o início do debate propriamente dito entre os dois autores. O artigo de Yeager defende a continuidade entre os argumentos de Mises e Hayek e convida Salerno a indicar claramente qual é o aspecto fundamental do problema do cálculo que não faz referência ao conhecimento dos agentes.

Salerno (1990), antes do desafio de Yeager, já indicara que o elemento relevante à questão do cálculo seria o conceito de avaliação (appraisement). Para Salerno, a avaliação empresarial consiste na antecipação do estado futuro do mercado com o auxílio dos preços passados. A posição de Hayek, por sua vez, é interpretada por Salerno (1994:116) de maneira a sugerir que a avaliação empresarial, para este último, seria dispensável. O argumento de Hayek seria do tipo ‘próximo do equilíbrio’, de forma que os preços passados transmitiriam automaticamente informação relevante sobre o conhecimento disperso entre os agentes. Salerno repete ao longo do debate sua interpretação do argumento de Hayek:

….Yeager agora abandona sua posição hayekiana original de que o sistema de preços, isto é, preços passados, automaticamente transmite para todos os produtores passivos todo o conhecimento que é relevante às duas decisões comerciais. (Salerno, 1996:142)

Pela nossa discussão da participação de Hayek no debate que vimos ao longo do capítulo anterior, contudo, esta interpretação é claramente errônea, em especial no que diz respeito aos textos que compõem aquilo que denominamos crítica indireta ao socialismo de mercado. Na interpretação de Hayek, os agentes jamais seriam passivos. Justamente porque existe uma realidade exterior, realidade esta muito complexa para ser apreendida imediatamente, cada empresário deve imaginar e descobrir maneiras melhores de satisfazer os consumidor por meio de suas conjecturas.

O teste no mercado dessas conjecturas empresarias está no centro da concepção do autor sobre a atividade competitiva como um mecanismo de descoberta. A variabilidade de conjecturas empresarias sobre determinada realidade de mercado, juntamente com o mecanismo seletivo de mercado, são para o autor os elementos que explicam a tendência ao equilíbrio. O argumento é portanto de processo equilibrador e não uma análise pura de equilíbrio (ou na vizinhança do equilíbrio) como quer Salerno. Apenas o termo ‘empresário’ não é empregado por Hayek.

A não ser por distorções no significado do argumento de Hayek, Salerno não é capaz portanto de responder ao desafio de Yeager e separar o problema do conhecimento de Hayek de sua origem misesiana. Essa incapacidade se revela a todo instante através de repetições involuntárias das ideias de Hayek como se fossem argumentos contrários às mesmas:

Ou, colocando de outra forma, os preços de ontem não ‘economizam conhecimento’ mas economizam esforço mental depreendido pelo empresário na busca por ‘entender’ os efeitos de mudanças antecipadas nos preços de amanhã. (Salerno, 1990:43)

Como corretamente aponta Yeager (1996) os conceitos de previsão empresarial e appraisement apontados por Salerno são todos aspectos ligados à questão do conhecimento proposto por Hayek.

A reação de Salerno à crítica fundamental de Hayek à exclusividade da lógica da escolha, na verdade, o coloca ao lado da teoria neoclássica tradicional, em oposição à moderna teoria austríaca do processo de mercado. Isto porque, como veremos no próximo capítulo, também os intérpretes neoclássicos de Hayek se recusarão a reconhecer a natureza falível do conhecimento empresarial. Para estes intérpretes, a preocupação com o conhecimento de Hayek se dissolverá em uma questão puramente computacional a respeito da transmissão de informações objetivas.
[1] Na síntese da ‘versão padrão’ feita por Lavoie (1985a:10), cada ponto é fartamente ilustrado por citações retiradas de diversas fontes secundárias que ilustram essa versão do debate.

[2] Lavoie (1981b) examina ainda a apreciação do debate dada por Ward (The Socialist Economy: A Study of Organizational Alternatives), Sweezy (The Economist in a Socialist Economy) e Dobb (Welfare Economics and the Economics of Socialism). Todas essas narrativas, inclusive a de Dobb, repetem em essência a versão langeana.

[3] Hayek (1984:59) atribui a Schumpeter mito de que Barone teria resolvido a controvérsia.

[4] É importante notar que Schumpeter orientou Klaire Tisch em sua tese de doutorado sobre o cálculo econômico.

[5] Ver ponto análogo na discussão levantada por James Buchanan, no final do capítulo anterior.

[6] Ver Lavoie (1981b:49)

[7] Devemos lembrar, porém, que a objeção de Hayek não se relacionava a incentivos, mas sim ao fato de que os custos de oportunidades não são entidades objetivas fora do equilíbrio.

[8] Ver Kovalik (1994).

[9] A Carta está transcrita no apêndice da coletânea de artigos editados por Kovalik (1994:298).

[10] Ver também “From Accounting to Mathematics” reproduzido em Kowalik (1994).

[11] A proposta de K. Polanyi é mencionada no capítulo 2.

[12] Hayek nota que os socialistas de mercado invocam o planejamento central quando defendem a superioridade do socialismo, mas quando estão diante de qualquer problema concreto apelam para os mercados.

[13] Na mesma linha opina Steele (1991:192): “O ‘Socialismo de Mercado’ ou socialismo de mercado de fatores significa mercados de fatores sem mercados financeiros. Ele apresenta dois problemas: é muito capitalista para atrair o apoio da maioria dos socialistas e não capitalista o suficiente para funcionar.”

[14] Além de criticar esse aspecto do modelo, Roberts repete as críticas que estudamos no capítulo anterior a respeito da aplicabilidade das regras de custo. O autor nota não só que a igualdade de custo marginal e preço depende do comportamento de busca de lucros e não uma regra consciente a ser seguida, mas também repete a tese de Wiseman de que a regra do custo não é aplicável sob incerteza.

[15] Em especial os estudos sobre a atividade empresarial de Israel Kirzner. A referência clássica é Competição e Atividade Empresarial (Kirzner, 1985).

[16] Sob o tópico ‘incentivos’ a autora se refere a discussão de Hayek sobre a atitude dos investidores socialistas diante do risco. Devemos lembrar que Hayek, para fins de argumentação, assume que os agentes socialistas não têm problemas de motivação.

[17] Dedicamos a última seção deste capítulo para a discussão da relação entre as contribuições de Mises e Hayek.

[18] Ver Machovec (1995).

[19] Ver, como um exemplo representativo, citação de Engels no segundo capítulo.

[20] Não nos referimos ao popperianismo de livro-texto que se limita a descrever um falsificacionismo ingênuo, mas ao falibilismo do autor que pode ser visto em obras como Conhecimento Objetivo. Para a distinção entre o Popper popular e o Popper relevante, ver Boland, (1990, 1994). e também o primeiro e último capítulos de minha dissertação de mestrado (Barbieri, 2001).

[21] Bartley, em (Bartley e Radnitszky (ed.), 1987), discute a grande aproximação entre as idéias dos dois autores, agrupadas sob a mesma categoria denominada epistemologia evolucionária.

[22] Este esboço se baseia em Popper (1975).

[23] Ver também Hayek (1952).

[24] Ver Bartley e Radnitsky (1987).

[25] Harper (1996), de um ponto de vista ligeiramente diferente, também trata a competição entre empresários no mercado como um processo popperiano de conjecturas e refutações, como faremos agora.

[26] Para este autor, conhecimento seria subjetivo e pessoal e informação seria objetiva.

[27] Lachmann (1986) adota esta postura.

[28] MITI: ministério do comércio internacional e indústria.

[29] Este aspecto será melhor explorado quando fizermos a distinção no último capítulo entre seleção natural e seleção artificial.

[30] No capítulo 3 aludimos as teses metodológicas defendidas por Mises, segundo as quais a teoria econômica seria toda derivada logicamente do pressuposto da ação humana, pressuposto esse válido a priori. Identificada com a praxeologia, a teoria econômica seria então composta por proposições verdadeiras, irrefutáveis na ausência de falácias lógicas.

[31] Selgin nota (pág. 44) que a postulação de uma oportunidade objetiva a ser descoberta rouba o caráter inovador da atividade empresarial. Uma crítica semelhante a esta aparece em minha dissertação de mestrado. Lá, notamos todavia que, sob o ponto de vista popperiano, o reconhecimento da realidade objetiva não elimina o caráter imaginativo das conjecturas sobre essa realidade.

DEIXE UMA RESPOSTA

Por favor digite seu comentário!
Por favor, digite seu nome aqui