Intervencionismo Econômico e a Família Moderna

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Por mais que consideremos a família como uma instituição natural e que reconheçamos sua evolução ao longo dos séculos é inegável que, o fato de ser uma instituição “natural” não impede que esta sofra influências exógenas e, além disso, sua evolução não necessariamente é positiva. Embora as principais características da família, a saber, a prole e a progênie continuem sendo intrínsecas à sua existência, características singulares como o quanto é numerosa a prole ou mesmo os costumes e hábitos que os membros mantêm entre si atualizam-se de acordo com a realidade da época vivida.

Mesmo considerando que independentemente da data que se investigue, as relações familiares tenham suas peculiaridades e estas estão diretamente relacionadas com os mais diversos fatores que nos abstemos de investigar, (apenas ressaltamos que deve-se descartar a opção de que o modo de produção seja o único influente na caracterização de tais relações) a família moderna é, sem dúvidas, a que mais se distancia dos outros “modelos”, pois é inédita ao valorizar a infecundidade, o distanciamento afetivo entre os membros e a união por pura convencionalidade. Na verdade, esta última característica parece ser a mais marcante visto que as principais fundamentações para a formação de uma família em qualquer modelo anterior ao moderno residiam em necessidades biológicas e, além disso, em fundamentos religiosos e morais.

Argumenta-se, de modo um tanto abstracionista, que as características que tornam inédita a família hodierna são provenientes puramente do declínio do modo religioso de se enxergar o mundo, bem como da crescente cultura antimetafísica, para ser mais cirúrgico, do desencantamento do mundo que falava Weber. Conquanto consideramos estes argumentos válidos, não devem ser estimados como os únicos a influenciar as características supracitadas. Objetiva-se demonstrar que, o fator econômico desempenha papel fundamental, pois como os indivíduos reagem a incentivos, é natural, portanto, que a intervenção governamental na economia promova comportamentos que não se realizariam em uma sociedade livre.

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Com o paulatino fim do Ancien Regime, especialmente simbolizado pela Revolução Francesa, as relações familiares também passaram por diversas mudanças. O transcorrer da nova ordem republicana que emergia trouxe consigo novos papéis ao estado, que agora pretendia, como liberal, garantir direito civis e liberdade à toda população e para atingir seus objetivos, contraditoriamente, necessitava tomar conta de todos os aspectos da vida de seus cidadãos.

As antigas monarquias permaneceram firmes frente aos ataques revolucionários até o início da 1° Guerra Mundial, sendo que no início do conflito apenas Portugal, França e Suíça eram repúblicas e, logo após seu desfecho, quase todas nações já tinham adotado o governo de propriedade pública. Hans-Hermann Hoppe defende em Democracia – O deus que falhou, a tese de que o processo evolutivo da forma de governo da propriedade privada (monarquia) para o governo da propriedade pública (república democrática) está inerentemente associado às tendências que, segundo ele, são descivilizatórias. Para Hoppe, a monarquia, embora possua diversas imperfeições intrínsecas à sua própria natureza, favorece uma visão de longo prazo não somente ao estadista, mas também aos súditos, que são beneficiados com maior segurança de seus direitos naturais. Enquanto isso, a república, pretensamente popular, promove tendências de curto prazo quanto à acumulação de bens, característica essa que está naturalmente presente em sociedades primitivas.

[…] o governo monárquico é reconstruído teoricamente como um governo de propriedade privada (particular), o qual, por sua vez, é explicado como a promoção, por parte do governante, de uma visão de longo prazo (orientada para o futuro) e de uma preocupação para com o valor do capital e o cálculo econômico. […] O governo democrático é reconstruído como um governo de propriedade pública, o qual é explicado como a adoção de uma visão de curto prazo (orientada para o presente), ocorrendo, assim, o desprezo ou a negligência do valor do capital por parte dos governantes […].[1]

Esta propensão à descivilização inerente ao modo republicano traz consigo incentivos perversos, que variam em grau, de acordo com o nível de coletivização, por exemplo. Mas de maneira geral, consideramos que o governo de propriedade pública promove comportamentos hedonistas e de curto prazo nos cidadãos. A realidade é que, com o advento da república norte americana, com seu grande objetivo, quase profético, de levar o ideal democrático à força para todas as nações, o modelo republicano se espalhou definitivamente e com ele, as relações sociais e, especificamente, familiares, passaram por mudanças abruptas como nunca antes na história.

Além disso, o processo de desenvolvimento civilizacional é, reconhecidamente, acompanhado de diminuições dos padrões de preferência temporal, sendo que em períodos de desenvolvimento econômico e social, as taxas de juros são de fato mais baixas. Enquanto isso, geralmente em períodos marcados por guerras e desastres a preferência temporal dos indivíduos é de fato mais elevada. O ponto mais curioso é que, mesmo no século da democracia, com todo desenvolvimento econômico e tecnológico que se presenciou, as taxas de juros são tão elevadas quanto em períodos remotos nos quais a barbárie ainda era dominante[2].

A tendência à alta preferência temporal, ou seja, à uma visão de curto prazo está intimamente, mas não necessariamente, correlacionada ao aumento da frequência de crimes hediondos e, além disso, esta tendência se reflete nas relações familiares incidindo, portanto, no aumento de casos de divórcios, abortos, violência por motivos passionais, entre outros. Embora eventos deste tipo se repetiam cotidianamente desde tempos mais remotos, como algo inerente à própria natureza humana, e realmente assim é, nota-se que com a hegemonia do republicanismo democrático, acompanhado da crescente expansão do domínio estatal em todos os aspectos da vida individual e social, os problemas supracitados, característicos de um declínio civilizacional, tornaram-se mais frequentes e evidentes.

Como nos parece evidente, a intervenção governamental, principalmente representada na figura do estado de bem-estar social atua como um agente nocivo na sociedade, sendo um propagador de maus incentivos, que pervertem as relações sociais. No Ancien Regime, predominantemente monárquico, a instituição familiar permanecia ainda incólume, havia uma clara distinção entre estado e família. Doravante, o emergir do estado paternalista obscureceu essa distinção que anteriormente existia e, através dos seus mais variados programas assistencialistas, tornou o indivíduo, a família e, finalmente, toda sociedade carente de sua égide protetora.

A política pública de maior impacto na elevação dos padrões de preferência temporal foi a previdência social que, após sua implementação pioneira na Alemanha, no final do século XIX, se espalhou pela Europa e Estados Unidos, até chegar nos países subdesenvolvidos como uma benesse que agora, o estado paternalista poderia oferecer à população. A ideia de que, a partir de agora, sua velhice estava respaldada pela proteção de um governo benevolente não apenas foi um desincentivo à poupança – refletindo, portanto, na preferência temporal e na taxa de juros – como também promoveu a desintegração do que era, até então, a família tradicional.

Para Hoppe, a legislação de previdência social atua como um subterfúgio para o indivíduo que, em uma condição anterior ao estado de bem-estar, deveria buscar para sua própria sobrevivência, formas de garantir o sustento de sua velhice. O natural seria que uma família numerosa garantiria seus cuidados quando estivesse idoso e, consequentemente, os cuidados que teria com seus filhos seriam fundamentais para que, no futuro, também eles cuidassem dos seus pais. Assim sendo, segundo Hoppe, programas de apoio como a seguridade social não apenas desvalorizaram o papel do matrimônio, dos filhos e da família, como também influenciaram na educação passada dos pais para sua prole[3].

Mais adiante, no livro citado, ele argumenta que todo subsídio governamental se torna, doravante, um incentivo. Assim sendo, da mesma forma que o subsídio promovido aos recém desempregados, por exemplo, gera mais desemprego, o subsídio para mães solteiras engendraria aumento nos números de divórcios e filhos uniparentais (diminuição do valor atribuído ao casamento) e, da mesma forma, a proibição do trabalho infantil diminuiria as taxas de fertilidade (diminuição do valor atribuído às crianças)[4].

Para o economista Vedran Vuk, no período anterior à “democratização” da previdência social, os filhos tinham um papel de máxima importância não apenas para a família, mas para o indivíduo, que os encarava como um investimento para seu próprio futuro.

Assim era a regra em todos os lugares antes do estado de bem-estar: seus pais cuidavam de você financeiramente quando criança – e você devia ajudá-los no futuro. Esse elemento básico da vida familiar parece ser incompreensível para os defensores do estado de bem-estar social. Os defensores do estado de bem-estar falam constantemente sobre nossa responsabilidade para com a sociedade por meio de impostos redistributivos[5].

Além dos programas estatais de previdência social direcionados à senilidade, o intervencionismo governamental revelou-se ainda mais abrangente, buscando cada vez mais gananciosamente preencher todos os momentos da vida humana com sua assistência pretensa e perversa. Exemplo notável é o caso da Suécia que, pioneiramente, desde meados do século XIX já adotava políticas coercitivas que visavam, de modo velado, a identificação do estado como a figura paterna que estava sempre a zelar por seus cidadãos.

O historiador Allan Carlson cita que no caso sueco, com a obrigatoriedade da presença infantil nas escolas aliada à extinção do trabalho infantil, a procriação passou a ser desvantajosa porquanto os benefícios financeiros que os pais obteriam com seus filhos enquanto pudessem contribuir com um negócio familiar, por exemplo, se desvaneciam, enquanto que os gastos para sustenta-los permaneciam. Além disso, não esperavam mais os cuidados dos filhos quando estivessem na velhice, visto que o estado de bem-estar social estaria perpetuamente disposto a ajudá-los. Segundo Carlson, o resultado do welfare state se deu na queda da fertilidade, que realmente se constatou naquele país a partir da segunda metade do século XIX.

Ações governamentais anteriores, como a obrigatoriedade da frequência escolar, a proibição do trabalho infantil e as pensões estatais de velhice, eles admitiram, haviam tirado o valor das crianças para os pais. Mas os custos das crianças permaneceram em casa. Em consequência, as crianças tornaram-se agora a principal causa da pobreza. […] Os jovens adultos foram obrigados a sustentar os aposentados e os necessitados através do sistema de bem-estar do estado, e também as crianças às quais davam a vida. Sob essa carga múltipla, eles optaram por reduzir o número de filhos como o único fator sobre o qual tinham controle. O resultado, para a Suécia, foi o despovoamento e o espectro da extinção nacional[6].

O estado de bem-estar social persistiu na Suécia no século XX, sendo a principal causa do baixo crescimento populacional do país. Para o economista sueco Gunnar Myrdal, a diminuição das taxas de crescimento demográfico do país se deviam exatamente à falta de políticas públicas que incentivassem os casais a terem filhos. Em seu livro Crisis in the Population Question, escrito juntamente com sua esposa Alva Myrdal, ele propõe que o governo atue na economia distorcendo as realidades de mercado através de propostas como assistência médica gratuita, merenda escolar gratuita, benefício infantil, moradia acessível e aluguel subsidiado. Carlson critica as contradições das propostas dos Myrdal: “A proposta dos Myrdal seria resolver o problema criado pelo welfare state com “mais welfare state””.

Curiosamente Gunnar Myrdal dividiu o prêmio Nobel de Economia com Friedrich Hayek em 1974 e, apesar que o motivo da premiação de ambos não teve relação com suas teorias sobre as relações sociais ou familiares, neste quesito, são diametralmente opostos. Myrdal, com seu ideal de engenharia social, buscava moldar a sociedade à sua vontade, da forma que entendia como mais agradável. Seus objetivos para com o desenvolvimento do welfare state envolviam transformá-lo em uma entidade quase divina que, com toda sua onipotência, cuidaria do indivíduo desde a infância, retirando quase toda autonomia dos pais, até os últimos momentos de vida. Enquanto isso, Hayek propunha uma teoria de grande valia no polo oposto desta discussão. Sua ideia de ordens espontâneas refere-se ao fato de que existem fenômenos sociais que se desenvolvem através da ação humana despropositada, de modo orgânico e natural através dos séculos. Exemplos de ordens espontâneas são a moeda, a linguagem, manifestações culturais e, inclusive, as características adquiridas pelos laços familiares. Em The Counter-Revolution of Science: Studies on the Abuse of Reason, ele explica suscintamente o conceito: “alguma espécie de ordem aparece como resultado da ação individual, mas sem ser intencionada por qualquer indivíduo”[7].

O governo de propriedade pública, democrático, tende à engenharia social. A república traz consigo o ideal positivista/cientificista que busca ideais de meliorismo evolutivo a todo custo. Não obstante, discute-se a ideia de que toda esta metamorfose que passou as relações familiares não é decorrente das mudanças políticas e, finalmente, de intervenções econômicas como defendemos anteriormente. Para Joseph Schumpeter, a transição para o modo capitalista de produção dá origem aos incentivos necessários para tal metamorfose. Em Capitalismo, Socialismo e Democracia ele propõe que o processo capitalista é responsável por promover mudanças psíquicas e, assim, o referido processo “dilui valores da vida familiar, elimina as inibições conscientes trazidas pela velha tradição moral, e induz a novos prazeres”[8].

Por mais que consideremos a tese schumpeteriana como abstracionista, por focar apenas no “processo capitalista” e esquecer todo os outros fatores de influência, como os incentivos promovidos especialmente pelo intervencionismo do estado de bem-estar social e outros fatores de ordem cultural que ainda citaremos no decorrer do presente artigo, a análise proposta por Schumpeter tem características interessantes que auxiliam a compreensão do assunto. Assim sendo, em sua leitura, a família burguesa encara a formação familiar negativamente a priori, sendo que as condições materiais futuras são levadas em conta com exagero. A principal preocupação do indivíduo quanto a construção de uma família no capítulo materialista da história se baseia nos custos que ela o trariam, por mais que a melhoria geral das condições materiais vistas nos últimos séculos possibilitariam maiores propensões à procriação, por exemplo, o indivíduo agora avalia sobremaneira negativamente os custos que a formação de uma nova família poderia trazer.

Além disso, Schumpeter lembra que em decorrência do fenômeno de aversão à fertilidade os indivíduos agora têm uma menor propensão à poupança, porquanto seus interesses materiais se estendem apenas ao seu tempo de vida médio e, por vezes, limitam-se apenas aos seus períodos de juventude. Dessa forma, tal fenômeno caracterizaria uma sociedade limitada por uma alta preferência temporal e, consequentemente, alta taxa de juros.

Dado o declínio do poder propulsor proporcionado pelo incentivo familiar, os horizontes temporais do homem de negócios se reduzem, aproximadamente, à sua esperança de vida. E ele pode-se mostrar agora menos disposto do que antes a desempenhar a função de ganhador, economizador e investidor, mesmo que não veja razão para temer que os resultados engrossarão suas declarações de imposto de renda. Adota ele uma atitude mental antiacumuladora e aceita com açodamento cada vez maior as teorias desse tipo, que são típicas de uma filosofia de curto prazo[9].

Foram diversos os marcos que podemos citar como ponto de partida para a desintegração da família tradicional. A Revolução Francesa, por exemplo, foi a responsável pela transição da sistemática rede de interações baseadas na lealdade familiar e territorial peculiares ao Ancien Regime para um sistema baseado em liames burocráticos em que o dever do indivíduo é primeiramente voltado para o estado e, apenas secundariamente, direcionado à família. A Revolução Francesa espalhou seus erros pelo mundo e possibilitou ao estado moderno a máxima liberdade de tornar cativos seus cidadãos. O crescimento do welfare state nutriu-se também nas fontes revolucionárias pós 1789 e, ademais, em outras fontes ideológicas de seu tempo.

Saindo do velho continente, o progressismo encontrou amparo nos devaneios dos pietistas norte-americanos. Assim como na Europa o protestantismo foi fundamental para a formação dos estados nacionais e do crescente poder da casta soberana sobre o indivíduo, nos Estados Unidos da América a situação foi análoga. O estado transfigurou-se em ferramenta interventora, transformou-se em agente propagador dos bons hábitos e da moral puritana.

Em território yankee o governo primeiramente promoveu, durante a chamada “era progressista”, um vertiginoso crescimento de sua influência sob a vida dos cidadãos em nome do puritanismo religioso, para mais tarde se estabelecer como welfare state. Os engenheiros sociais por trás deste projeto buscavam gerir os costumes e a cultura popular com o intuito de criar um verdadeiro paraíso na Terra, a sociedade ideal desejada pelos utopistas. Murray Rothbard comenta o tema no artigo A Era Progressista e a Família:

Assim, as bases da intervenção massiva do estado atual na vida interna da família americana foram lançadas na chamada “era progressista” de 1870 a 1920. Pietistas e “progressistas” se uniram para controlar as escolhas materiais e sexuais do resto do povo americano, seus hábitos de bebida e suas preferências recreativas. Seus valores, a própria criação e educação de seus filhos, deveriam ser determinados por seus superiores. A elite espiritual, biológica, política, intelectual e moral governaria, por meio do poder do estado, o caráter e a qualidade da vida familiar americana.

A obrigatoriedade do ensino estatal para as crianças foi outra pauta defendida pelos reformadores desde quando alcançaram determinado grau de influência na política europeia. O estado prussiano foi o primeiro a obrigar as famílias a levarem seus filhos para as escolas, por influência do movimento protestante. Doravante, a França também adotou o ensino obrigatório na Constituição de 1791, por influência da Revolução.[10] Nos Estados Unidos os defensores da educação estatal também eram protestantes que viam na obrigatoriedade do ensino uma oportunidade de uniformizar o pensamento religioso e moral, de acordo com o padrão puritano. Para John Swett, considerado como o “Pai da Escola Pública” na Califórnia, a família já não devia mais ter autonomia em relação ao ensino das crianças, pois este dever urgia ser coletivizado por toda sociedade: “as crianças que chegaram à idade da maturidade pertencem, não aos pais, mas ao estado, à sociedade e ao país”[11].

 O avanço do autoritarismo não apenas modificou as relações familiares tradicionais, mas também engendrou um processo de descivilização, como citamos. Os projetos de engenharia social contribuíram historicamente para a homogeneização da diversidade cultural, em função da desintegração dos núcleos familiares independentes, das pequenas unidades territoriais autônomas e da dissolução dos insurgentes desejos secessionistas.[12] Sobre o dano provocado pela intervenção governamental na cultura, é interessante a visão de Friedrich Nietszche exposta em Crepúsculo dos Ídolos:

A cultura e o Estado — não cabe enganar-se neste ponto — são antagônicos: “Estado cultural” é só uma ideia moderna. Um vive do outro, um prospera à custa do outro. Todas as grandes épocas da cultura são tempos de decadência política; o que é grande no sentido da cultura, é apolítico, melhor ainda, antipolítico[13].

Nietzsche, longe de favorecer o poder político como falsamente propuseram os nazistas[14], não compactuava com a expansão deste, criticando-o quando ainda mantinha sua sanidade. Reconhece-se o declínio cultural alemão após a unificação e o crescente grau de autoritarismo torna-se evidente desde então.

Esta crescente tendência de centralização, de autoritarismo, de engenharia social desde o início do século XX e até nossos dias traveste-se na figura do welfare state, estado de bem-estar social, personificando-se quase sempre na figura de um líder paterno, ou mesmo na simbólica aristocracia técnico-científica que sabe exatamente o que é melhor para cada um de seus súditos.  Sem sombra de dúvidas, caminhamos com alta cadência em direção à uma realidade cada vez mais semelhante à descrita na distopia Admirável mundo novo de Aldous Huxley. A obra é surpreendentemente profética, cada parágrafo do romance publicado em 1932 parece descrever o século XXI, e aqueles que não o descrevem são assustadores presságios do que pode ser o futuro.

No ano de 632 Depois de Ford o governo já sabe exatamente o que é o melhor para cada indivíduo – se é que podemos chamar de indivíduos aqueles personagens que perderam todas suas singularidades –, ele controla literalmente todos momentos da existência de cada um deles. O estado de bem-estar proposto no romance difunde o hedonismo como único princípio que a espécie humana se guia, fundamento básico da vida. O indivíduo destituído de toda sua individualidade serve unicamente ao coletivo, e sua recompensa se dá no bem-estar, na ausência de sofrimentos e responsabilidades. Naturalmente, para prescindir de todas preocupações inerentes à vida humana, se faz necessário eliminar todas obrigações que anteriormente eram intrínsecas. Dessa forma, em Admirável mundo novo já não existem mais famílias, as crianças são geradas por embriões artificiais, e assim como na República de Platão[15], a responsabilidade quanto à educação é socializada, pois não existe mais a instituição matrimonial.

A obra platônica foi a raiz de todas as utopias posteriores, Admirável mundo novo se inspira grandemente nela, mas como crítica à situação descrita, Huxley aborda diversos outros assuntos como por exemplo o declínio da diversidade cultural em função da centralização política: na sociedade descrita a diversidade linguística foi extinta, assim como todas tradições particulares à cada região. Sobrevive apenas um internacionalismo artificial de uma sociedade estratificada em castas, em que prevalece não apenas uma engenharia social capaz de determinar os rumos da vida de cada um, mas também uma engenharia biológica que define desde o berço as aptidões físicas de cada indivíduo.

Por mais que nem todas as questões tratadas por Huxley tenham se tornado realidade, é inegável o fato que o mundo atual caminha a passos largos em direção a este grau de autoritarismo. O estado de bem-estar social não apenas modificou a estrutura familiar, diminuiu o valor atribuído às relações mais íntimas, homogeneizou a diversidade cultural como também propõe a superação daquilo que é intrínseco à vida humana. Sentimentos como dor, angústia, medo, etc. são confundidos com problemas inerentes à uma sociedade livre nos quais apenas o intervencionismo da casta técnico-científica tem capacidade de resolver.

Independentemente de qual governo encaremos, de qualquer que seja o país, é uma de suas características necessárias expandir-se ad infinitum, e, em decorrência disto, qualquer retrocesso nesta tendência expansionista não deve ser esperado, ainda mais reconhecendo-se que no modelo democrático o populismo é a principal moeda política. A agenda que se volta contra a intervenção econômica e, consequentemente, contra a intervenção do estado nas relações familiares é impopular, nenhum corte em subsídios que provocam consequências nocivas a longo prazo resiste ao voto popular. Os subsídios por si sós, promovem essa má influência, mais especificamente o potencial de engendrar desejos desenfreados por mais, e sempre mais.

Além disso, a negação espontânea de qualquer que seja o subsídio é, naturalmente, algo ainda mais impensável, especialmente em uma sociedade caracterizada pela alta preferência temporal e mentalidade voltada ao curto prazo. Para exemplificar, consideraremos dois indivíduos, A e B, ambos dispondo de uma situação financeira idêntica. Caso apenas o indivíduo A receba um determinado auxílio governamental, ele estará em vantagem em relação a B. Assim sendo, é racional concluir que B também vai usufruir do auxílio. Dessa forma, esperar que a maioria das pessoas contrariem seus próprios interesses de curto prazo e neguem a mão estatal em suas vidas também parece algo impensável. Encara-se, portanto, um círculo vicioso em que o estado distribui cada vez mais migalhas e os indivíduos cedem não apenas mais impostos, mas também suas liberdades, a autonomia que, finalmente, os define como indivíduos.

Embora seja ilusório esperar do estado ou mesmo das multidões atos que contraponham a tendência à descivilização na qual comentamos, a reação de determinados indivíduos e instituições que se apartam da turba e conquistam a autonomia de pensamento é natural. O conceito de enantiodromia, atribuído inicialmente a Heráclito, define que uma grande força em uma determinada direção engendra uma força em sentido oposto. Além de ter sido aplicado na Psicologia por Jung, o conceito de enantiodromia também se aplica no contexto político/social para explicar fenômenos opostos à realidade de uma determinada época, por exemplo. Dessa forma, o declínio de tradições perpetradas ao longo dos séculos, bem como o retorno às tradições já esquecidas são exemplos a se citar. A ascensão do que comumente é chamado de “família moderna” gera, através do processo de enantiodromia, uma força oposta, capaz de retornar aos antigos padrões que se observava nas relações familiares, através de indivíduos que são autônomos não apenas intelectualmente, mas também economicamente, que conseguem se livrar da dependência do estado de bem-estar social e, através de um estilo de vida comum aos seus antepassados, revolucionar o presente que,  como analisamos, torna-se cada vez mais distópico.

 

 

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Notas

[1] Hans-Hermann Hoppe, Democracia – O deus que falhou (Instituto Rothbard, 2015), p.25-26.

[2] Sidney Homer e Richard Sylla, A History of Interest Rates (New Brunswick, N. J.: Rutgers University Press, 1991), p. 557–558.

[3] Hans-Hermann Hoppe, Democracia – O deus que falhou (Instituto Rothbard, 2015), p.60.

[4] Hans-Hermann Hoppe, Democracia – O deus que falhou (Instituto Rothbard, 2015), p.132.

[5] Vedran Vuk, O ataque do Estado de bem-estar social à família (Ludwig von Mises Institute, 2006).

[6] Allan Carlson, O que o governo fez com as nossas famílias?

[7] Friedrich Hayek, The Counter-Revolution of Science: Studies on the Abuse of Reason (Collier-Macmillan, 1964) p.39.

[8] Joseph Schumpeter, Capitalismo, Socialismo e Democracia (Fundo de Cultura, 1961), p.196.

[9] Joseph Schumpeter, Capitalismo, Socialismo e Democracia (Fundo de Cultura, 1961), p.199.

[10] Murray Rothbard, Educação: Livre e Obrigatória (Instituto Rothbard, 2013), cap. 2.2 e 2.3.

[11] Rousas John Rushdoony, “John Swett: A Auto-Preservação do Estado,” em O Caráter Messiânico da Educação Americana: Estudos sobre a História da Filosofia da Educação (Craig Press, 1963), p.79–80.

[12] Hans-Hermann Hoppe, Democracia – O deus que falhou (Instituto Rothbard, 2015), p.147, nota 17.

[13] Friedrich Nietzsche, Crepúsculo dos Ídolos, p.21.

[14] Mário Ferreira dos Santos, Análise de Temas Sociais Vol. I (Logos, 1964), p. 138.

[15] Platão, A República, cap. V.

1 COMENTÁRIO

  1. Texto esclarecedor! Muito obrigado! É o que falo, todo conservador se quiser sobreviver no futuro terá que apoiar as ideias libertárias, principalmente ser anti-estado.

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