Liberdade e a Lei

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INTRODUÇÃO

Parece que o destino da liberdade individual na atualidade é ser defendida principalmente por economistas, em vez de advogados e cientistas políticos.No que diz respeito aos advogados, talvez a razão para isso seja que estes são, de alguma forma, forçados a falar com base em seu conhecimento profissional e, portanto, em termos de sistemas contemporâneos de lei.  Como teria dito lorde Bacon: “Falam como se fossem compelidos.” Os sistemas legais contemporâneos aos quais estão amarrados parecem reservar uma área cada vez menor à liberdade individual.

Os cientistas políticos, por outro lado, geralmente dão a impressão de estarem inclinados a considerar a política como uma espécie de técnica, comparável à engenharia, digamos, envolvendo a ideia de que as pessoas deveriam ser tratadas pelos cientistas políticos mais ou menos da mesma forma com que os engenheiros lidam com máquinas e fábricas.  A concepção engenheira da ciência política tem pouco ou nada em comum com a causa da liberdade individual.

E claro que essa não é a única forma de se conceber a ciência política como uma técnica.  As ciências políticas podem ser consideradas também — embora hoje em dia isso aconteça cada vez menos — como um meio de permitir às pessoas que se comportem o máximo possível conforme sua vontade, em vez de se portarem da maneira tida como adequada por certos tecnocratas.

O conhecimento da lei, por sua vez, pode ser visto de outra perspectiva que não a do advogado que é obrigado a falar como se fosse compelido, sempre que tem de defender um caso no tribunal.  Um advogado suficientemente bem versado em direito conhece muito bem como o sistema legal de seu país funciona — e às vezes, também, como não funciona.  Além disso, se ele tem algum conhecimento de História, pode facilmente comparar os diferentes modelos dentro dos quais os sucessivos sistemas legais funcionaram em um mesmo país.  Finalmente, se conhece alguma coisa sobre a forma como outros sistemas legais funcionam ou funcionaram em outros países, pode fazer várias comparações valiosas que normalmente superam os horizontes, tanto do economista quanto do cientista político.

Com efeito, a liberdade não é apenas um conceito econômico ou político, mas também, e provavelmente acima de tudo, um conceito jurídico, na medida em que necessariamente envolve todo um complexo de consequências legais.

Enquanto a abordagem política, no sentido que tentei delinear na passagem anterior, é complementar à econômica em qualquer tentativa de redefinir a liberdade, a abordagem legal é complementar a ambas.

No entanto, algo ainda falta para o sucesso dessa tentativa.  Ao longo dos séculos, muitas definições de liberdade foram feitas, algumas das quais poderiam ser consideradas incompatíveis com outras.  O resultado é que um sentido unívoco poderia ser dado à palavra somente com algumas reservas e após prévias investigações de natureza linguística.

Todo mundo pode definir aquilo que acredita ser liberdade, mas, quando pretende que aceitemos sua formulação como nossa, tem de produzir argumentos verdadeiramente convincentes.  Entretanto, esse não é um problema peculiar às afirmações sobre a liberdade, mas sim um problema relacionado com qualquer tipo de definição, e é, acredito, um mérito indiscutível da escola analítica contemporânea de filosofia ter apontado a importância do problema.  Assim, para se analisar a liberdade, a abordagem filosófica deve estar combinada às abordagens econômica, política e legal.

Essa não é uma combinação fácil de conseguir.  Inúmeras dificuldades estão relacionadas com a natureza peculiar das ciências sociais e com o fato de que seus dados não são univocamente determináveis, como nas chamadas ciências naturais.

A despeito disso, ao analisar a liberdade, tanto quanto possível procurei considerá-la em primeiro lugar como um dado, ou seja, uma atitude psicológica.  Fiz o mesmo com a repressão, que é, em certo sentido, o oposto da liberdade, mas que é igualmente uma atitude psicológica da parte tanto daqueles que tentam produzir a repressão quanto dos que são reprimidos.

É difícil negar que o estudo das atitudes psicológicas revele diferenças e variações entre elas, de modo que uma teoria unânime de liberdade, e consequentemente também de coerção, referenciada em fatos averiguáveis, é difícil de ser formulada.

Isso significa que pessoas pertencentes a um sistema político no qual a liberdade seja defendida e preservada para cada um e para todos, contra toda e qualquer coerção, não podem evitar serem constrangidas, pelo menos na medida em que sua própria interpretação da liberdade, e consequentemente também da repressão, não coincide com a interpretação em vigor naquele sistema.

Entretanto, parece razoável se pensar que essas interpretações por parte das pessoas em geral não diferem a ponto de condenar à frustração qualquer tentativa de se chegar a uma teoria da liberdade política.  É possível se assumir que, pelo menos dentro de uma mesma sociedade, as pessoas que tentam reprimir as outras, e as que tentam evitar o constrangimento imposto pelas primeiras, têm aproximadamente a mesma ideia do que é a coerção.  Disso pode ser inferido que elas têm aproximadamente a mesma ideia do que é a ausência de constrangimento, e essa é uma suposição muito importante para uma teoria da liberdade concebida como a ausência de repressão, como sugerido neste livro.

Para evitar mal-entendidos, deve-se acrescentar que a teoria da liberdade como sendo a ausência de constrangimento, por mais paradoxal que possa parecer, não prega a ausência de limitação em todos os casos.  Há casos em que pessoas precisam ser constrangidas para que se preserve a liberdade de outras.  Isso fica por demais óbvio quando as pessoas têm de ser protegidas contra assassinos e ladrões, apesar de nem tão óbvio quando essa proteção implica constrangimentos e, concomitantemente, liberdades não tão fáceis de se definir.

No entanto, um estudo imparcial do que está acontecendo na sociedade contemporânea não apenas revela que a coerção está inextrincavelmente emaranhada à liberdade, na própria tentativa de se preservar esta última, mas também, infelizmente, que, de acordo com diversas doutrinas, quanto mais se aumenta a coerção, mais se aumenta a liberdade.  Ou muito me engano, ou isso não só é um mal-entendido evidente, mas também uma circunstância funesta para o destino da liberdade individual em nossos tempos.

As pessoas geralmente usam a palavra “liberdade” para significar a ausência de constrangimento e mais alguma coisa, também — por exemplo, como teria dito um respeitado juiz americano, “segurança econômica suficiente que permita à pessoa gozar satisfatoriamente a vida”.  As mesmas pessoas em geral não percebem as possíveis contradições entre esses dois significados de liberdade, e o fato desagradável de que não se pode adotar o último sem sacrificar, em certa medida, o anterior, e vice-versa.  Sua visão sincretista da liberdade é simplesmente baseada em uma confusão semântica.

Outras pessoas, ao mesmo tempo em que argumentam sobre a necessidade de se aumentar o constrangimento, em sua sociedade, para que aumente a “liberdade”, simplesmente negligenciam o fato de que a “liberdade” a que se referem é apenas a sua, enquanto que a restrição que querem aumentar deve ser aplicada exclusivamente a outras pessoas.  O resultado final é que a “liberdade” que pregam é somente a liberdade de obrigar outras pessoas a fazerem o que jamais fariam se fossem livres para escolher por si.

Hoje em dia, liberdade e constrangimento são cada vez mais um ponto central na legislação.  As pessoas em geral compreendem plenamente a extraordinária importância da tecnologia para as transformações que estão se operando na sociedade contemporânea.  Por outro lado, não parecem perceber na mesma medida as transformações paralelas ocasionadas pela legislação, muitas vezes sem qualquer conexão necessária com a tecnologia.  O que parecem compreender menos ainda é que a importância das últimas transformações na sociedade contemporânea depende, por sua vez, de uma revolução silenciosa nas ideias atuais a respeito da verdadeira função da legislação.  Com efeito, a crescente significância da legislação em quase todos os sistemas legais do mundo é provavelmente o aspecto mais impressionante de nossa era, afora o progresso tecnológico e científico.  Enquanto nos países anglo-saxões o direito consuetudinário e as cortes ordinárias de judicatura estão constantemente perdendo terreno para a lei estatutária e as autoridades administrativas, nos países da Europa continental a lei civil está vivendo um processo paralelo de submersão, resultado dos milhares de leis que enchem os códigos civis a cada ano.  Apenas sessenta anos após a introdução do Código Civil Alemão e pouco mais de século e meio depois da introdução do Código Napoleônico, a própria ideia de que a lei pode não ser idêntica à legislação soa estranha, tanto aos estudiosos do direito quanto aos leigos.

A legislação parece ser hoje um recurso rápido, racional e de grande alcance contra todo tipo de mal e inconveniência, se comparada a decisões judiciais, ajustes de disputas por árbitros privados, convenções, costumes e outros tipos análogos de ajustes espontâneos por parte dos indivíduos.  Um fato que quase sempre passa despercebido é o de que uma solução através da legislação pode ser rápida demais para ser eficaz, de alcance por demais imprevisível para ser totalmente benéfica, e muito diretamente ligada às visões contingentes e aos interesses de um punhado de pessoas — os legisladores —, quem quer que sejam, para ser verdadeiramente um remédio para todos os casos.  Mesmo quando tudo isso é observado, em geral a crítica se faz diretamente contra códigos específicos, em vez de contra a legislação em si, e as novas soluções são sempre procuradas em códigos “melhores”, em vez de em algo totalmente distinto da legislação.

Os advogados da legislação — ou, antes, da noção de legislação enquanto panaceia — justificam essa ideia de identificá-la totalmente com a lei, na sociedade contemporânea, apontando para as mudanças constantemente produzidas pela tecnologia.  O desenvolvimento industrial, dizem, traz consigo inúmeros problemas que as sociedades mais antigas, com suas ideias de lei, não estavam equipadas para solucionar.

Rendo-me ao fato de que ainda nos faltam provas de que os tantos novos problemas a que se referem esses advogados da legislação agigantada, sejam realmente causados pela tecnologia[1], ou que a sociedade contemporânea, com sua noção de legislação enquanto panaceia, esteja melhor equipada para solucioná-los do que as sociedades mais antigas, que nunca identificaram o direito com a legislação de forma tão marcante.

A atenção de todos os advogados da legislação inchada, como contrapartida supostamente necessária do progresso científico e tecnológico na sociedade contemporânea, precisa ser voltada para o fato de que o desenvolvimento da ciência e da tecnologia, por um lado, e o da legislação, por outro, estão baseados, respectivamente, em ideias completamente diversas e até mesmo contraditórias.  Na verdade, o desenvolvimento da ciência e da tecnologia, no início de nossa era moderna, tornou-se possível porque foram adotados procedimentos que contrastavam por completo com os que normalmente resultam em legislação.  As pesquisas científicas e técnicas precisavam e ainda precisam de iniciativa individual e de liberdade individual que permitam que as conclusões e resultados alcançados por indivíduos, possivelmente em choque com a autoridade contrária, prevaleçam.  Por outro lado, a legislação é o ponto terminal do processo no qual a autoridade sempre prevalece, possivelmente contra a iniciativa e a liberdade individuais.  Considerando que os resultados científicos e tecnológicos são sempre devidos a minorias relativamente pequenas ou a indivíduos isolados, com frequência, se não sempre, em oposição às maiorias indiferentes ou ignorantes, a legislação, especialmente hoje em dia, reflete o desejo de uma maioria contingente, dentro de um comitê de legisladores que não são necessariamente mais instruídos ou mais esclarecidos do que os dissidentes.  Onde prevalecem as autoridades e as maiorias, como na legislação, os indivíduos precisam se render, não importando se estão certos ou errados.

Outro aspecto característico da legislação na sociedade contemporânea — à parte de alguns exemplos de democracia direta em pequenas comunidades políticas, como as Landsgemeinde suíças — é que os legisladores devem representar seus cidadãos no processo legislativo.  O que quer que isso possa significar — e isso é o que devemos tentar descobrir nas páginas seguintes —, é óbvio que a representação, assim como a legislação, em seu conjunto é algo alheio aos procedimentos adotados para o progresso tecnológico e científico.  A simples ideia de que um cientista ou um técnico deveria ser “representado” por outras pessoas na condução da pesquisa científica ou técnica parece tão ridícula quanto a ideia de que a pesquisa científica deveria ser confiada, não a indivíduos isolados que agem como tal mesmo quando trabalhando em equipe, mas a algum tipo de comitê legislativo autorizado a tomar uma decisão por maioria de votos.

Não obstante, cada vez mais vem sendo adotada, em relação à lei, uma forma de se chegar às decisões que seria rejeitada pelos campos da ciência e tecnologia.

A situação resultante desse fato, na sociedade contemporânea, é uma espécie de esquizofrenia, que, longe de ser denunciada, mal tem sido notada.

As pessoas se comportam como se sua necessidade de iniciativa individual e decisão individual fosse quase que completamente satisfeita pelo fato de terem acesso pessoal aos benefícios das conquistas científicas e tecnológicas.  No entanto, é bastante estranho que suas correspondentes necessidades de iniciativa individual e decisão individual, nas esferas política e legal, pareçam ser supridas por procedimentos rituais e quase mágicos, como eleições de “representantes”, que se supõe saberem, por obra de alguma inspiração misteriosa, o que seus eleitores realmente querem, para poder decidir adequadamente.  É verdade que os indivíduos ainda têm, pelo menos no Ocidente, a possibilidade de decidir e agir como indivíduos em relação a muita coisa: fazer negócios — pelo menos a grosso modo —, falar, manter relações pessoais e muitos outros tipos de relações sociais.  Porém, eles parecem também ter aceitado em princípio, de uma vez por todas, um sistema por meio do qual um punhado de pessoas, as quais raramente conhecem pessoalmente, está apto a decidir o que todos devem fazer, e isso dentro de limites muito vagamente definidos ou praticamente sem qualquer limite.

O fato de os legisladores, pelo menos no Ocidente, ainda evitarem interferir em campos da atividade individual, como falar, escolher o cônjuge, o estilo de vestir, ou as viagens em geral, dissimula o simples fato de que, na realidade, eles têm o poder de interferir em todos esses domínios.  Mas outros países, ao mesmo tempo em que já oferecem outro quadro, revelam até onde os legisladores podem ir a esse respeito.  Por outro lado, hoje cada vez menos pessoas parecem compreender que, da mesma forma como a linguagem e a moda são produtos da convergência de ações e decisões espontâneas da parte de um vasto número de indivíduos, a lei também pode, em teoria, ser produto de uma convergência semelhante em outros campos.

Atualmente, o fato de não termos de confiar a outras pessoas a tarefa de decidir, por exemplo, como devemos falar ou como devemos passar nosso tempo livre, não nos permite compreender que o mesmo deveria ser verdade em relação a muitas outras atividades e decisões que tomemos na esfera da lei.  Nossa noção atual de lei está definitivamente afetada pela importância esmagadora que atribuímos à função da legislação, ou seja, à vontade de outros — quem quer que sejam — em relação a nosso comportamento diário.  Nas próximas páginas, procuro esclarecer uma das principais consequências de nossas ideias a esse respeito.  Na realidade, estamos longe de atingir, através da legislação, a efetividade ideal da lei, no sentido prático que esse ideal deve ter para qualquer pessoa que precisa planejar o futuro e que tem de saber, portanto, quais serão as consequências legais de suas decisões.  Ao mesmo tempo em que a legislação está quase sempre certa, ou seja, precisa e identificável enquanto “vigente”, as pessoas nunca poderão ter a certeza de que a legislação em vigor hoje estará em vigor amanhã, ou até mesmo amanhã de manhã.  O sistema legal centrado na legislação, ao mesmo tempo em que envolve a possibilidade de outras pessoas — os legisladores — poderem interferir em nossas ações todos os dias, envolve também a possibilidade de mudarem todos os dias sua forma de interferência.  Como resultado, as pessoas ficam privadas não só de decidir livremente o que fazer, mas de prever os efeitos legais de seu comportamento cotidiano.

E inegável que hoje esse resultado se deve tanto à legislação agigantada quanto ao enorme crescimento de uma atividade quase legislativa ou pseudolegislativa da parte do governo, e não se pode deixar de concordar com autores e intelectuais como James Burnham, nos Estados Unidos, professor G. W. Keeton, na Inglaterra, e professor F. A  Hayek, que nos últimos anos têm feito amargas críticas ao enfraquecimento dos poderes legislativos tradicionais do Congresso dos Estados Unidos, ou da “morte” do Parlamento Britânico, em consequência do correspondente aumento das atividades quase legislativas do Executivo.  No entanto, não se pode perder de vista o fato de que o poder sempre crescente dos funcionários do governo pode sempre ser atribuído a alguma sanção estatutária que os habilita a se comportarem como legisladores, e a interferir, dessa forma, quase que a seu bel-prazer, em todo tipo de interesse ou atividade privada.  A situação paradoxal de nossos tempos é que somos governados por homens, não — como sustentaria a teoria aristotélica clássica — por não sermos governados por leis, mas justamente porque o somos.  Nesse caso, seria quase inútil invocar a lei contra esses homens.  O próprio Maquiavel não teria sido capaz de tramar artifício mais engenhoso para dar dignidade à vontade de um tirano que finge ser um simples funcionário agindo dentro da estrutura de um sistema perfeitamente legal.

Se valorizamos a liberdade individual de ação e decisão, não podemos deixar de concluir que deve haver algo de errado com o sistema como um todo.

Não sustento que a legislação deva ser totalmente descartada.  É provável que isso nunca tenha acontecido em país ou momento algum.  Mas defendo que a legislação é, na realidade, incompatível com a iniciativa e decisão individuais, quando atinge um limite que a sociedade contemporânea parece ter avançado em muito.

Minha sugestão sincera é a de que aqueles que valorizam a liberdade individual devem reavaliar o lugar do indivíduo dentro do sistema legal como um todo.  Não é mais uma questão de se defender essa ou aquela liberdade em particular — fazer negócios, falar, associar-se a outras pessoas etc.; nem se trata de decidir que tipo de legislação “boa” devemos adotar no lugar de uma “má”.  A questão é decidir se a liberdade individual é compatível, quanto ao seu princípio, com o atual sistema centrado na legislação e quase inteiramente identificado com ela.  Essa visão pode parecer radical.  Não nego que o seja.  Mas visões radicais são, às vezes, mais férteis do que teorias sincretistas que servem mais para dissimular problemas do que para solucioná-los.

Felizmente não precisamos nos refugiar na Utopia para encontrar sistemas legais diferentes dos atuais.  Tanto a história romana quanto a história inglesa nos ensinam, por exemplo, uma lição completamente diferente daquela dos advogados da legislação agigantada do presente.  Hoje em dia, todo mundo louva os romanos não menos do que os ingleses por sua sabedoria jurídica.  Porém, muito poucas pessoas imaginam em que consistia essa sabedoria, ou seja, o quão independentes da legislação eram esses sistemas, no que concernia ao dia-a-dia das pessoas, e, consequentemente, o quão ampla era a esfera da liberdade individual, tanto em Roma quanto na Inglaterra, durante os vários séculos em que seus respectivos sistemas legais estavam em seu apogeu.  Algumas pessoas questionam por que ainda se estuda a história das leis romana e inglesa, se esse fato essencial sobre as duas permanece amplamente esquecido ou simplesmente ignorado.

Os romanos, assim como os ingleses, compartilhavam da ideia de que a lei é algo mais para ser descoberto do que a ser decretado, e de que ninguém é tão poderoso em sua sociedade a ponto de estar em posição de identificar sua própria vontade com a lei da terra.  A tarefa de “descobrir” a lei foi confiada, em seus países, a jurisconsultos e a juízes, respectivamente — duas categorias de pessoas comparáveis, pelo menos até certo sentido, aos cientistas de hoje.  Esse fato parece mais impressionante ainda ao considerarmos que os magistrados romanos, por um lado, e o Parlamento Britânico, por outro, em princípio tinham, e o último continua tendo, poderes quase despóticos sobre os cidadãos.

Durante séculos, mesmo no Continente, a tradição jurídica esteve longe de gravitar em torno da legislação.  A adoção do Corpus Júris Justiniano, nos países continentais, resultou em uma atividade peculiar da parte dos juristas, cuja tarefa era mais uma vez descobrir o que era a lei, e isso em grande parte independentemente da vontade dos governantes de cada país.  Assim, a lei continental era chamada, muito apropriadamente, de “lei dos advogados” — Juristenrecht — e jamais perdeu esse caráter, nem mesmo sob os regimes absolutos que precederam a Revolução Francesa.  Até mesmo a nova era da legislação, no início do século dezenove, começou com a ideia muito modesta de reavaliar e redeclarar a lei formulada por advogados, reescrevendo-a nos códigos, mas de forma alguma subvertendo-a através deles.  A legislação era principalmente uma compilação de disposições regulamentares passadas, e seus defensores costumavam enfatizar precisamente suas vantagens em ser um resumo inequívoco e claro, se comparado à massa caótica de trabalhos jurídicos individuais feitos por advogados.  Como fenômeno paralelo, as constituições escritas foram adotadas no Continente primeiramente como uma forma de colocar em preto e branco as séries de princípios já formulados passo a passo por juízes ingleses, no que concernia à constituição inglesa.  No século dezenove, os códigos e constituições dos países continentais foram concebidos como meio de expressar a lei como algo que de nenhuma forma era idêntico ao desejo contingente das pessoas que decretavam esses códigos e constituições.

Ao mesmo tempo, a crescente importância da legislação nos países anglo-saxões tinha, sobretudo, a mesma função e correspondia à mesma ideia: a de redeclarar e compendiar a lei existente da forma como fora elaborada pelas cortes através dos séculos.

Hoje, tanto nos países anglo-saxões como nos países continentais, o quadro mudou quase que completamente.  A legislação ordinária e mesmo as constituições e códigos apresentam-se cada vez mais como expressão direta da vontade contingente das pessoas que os decretam, enquanto que geralmente a ideia subjacente é a de que sua função é declarar, não o que a lei é como resultado de um processo secular, mas o que a lei deve ser como resultado de uma abordagem completamente nova e de decisões sem precedentes.

Enquanto o homem médio está se acostumando a esse novo significado da legislação, está se adaptando cada vez mais a sua noção de correspondente, não a uma vontade “comum”, ou seja, uma determinação que se presume existente em todos os cidadãos, mas à expressão da vontade específica de certos indivíduos e grupos que tiveram a sorte de ter uma maioria contingente de legisladores de seu lado, em um dado momento.

Dessa forma, a legislação viveu um desenvolvimento muito peculiar.  Chegou a parecer mais e mais uma espécie de Diktat que as maiorias vitoriosas, nas assembleias legislativas, impõem às minorias, resultando muitas vezes na destruição de expectativas individuais antigas e na criação de outras completamente sem precedentes.  As minorias perdedoras, por sua vez, ajustam-se a sua derrota apenas porque esperam se tornar, mais cedo ou mais tarde, uma maioria vitoriosa e ficar em posição de tratar de forma semelhante os pertencentes às maiorias contingentes de hoje.  Com efeito, dentro das legislaturas as maiorias podem ser produzidas e destruídas, através de um procedimento regular que atualmente está sendo metodicamente analisado por certos intelectuais americanos — o procedimento que os políticos americanos chamam de “conluio entre políticos”, e que deveríamos chamar de “comércio de votos”.  Sempre que os grupos têm representação insuficiente, na legislatura, para impor seu próprio desejo sobre outro grupo dissidente, recorrem à negociação de votos com o máximo possível de grupos neutros dentro da legislatura, de modo a colocar sua pretensa “vítima” em posição minoritária.  Cada um dos grupos “neutros” subornados hoje está, por sua vez, preparado para amanhã subornar outros grupos para impor sua própria vontade a outras pretensas “vítimas”.  As maiorias mudam dentro da legislatura, mas há sempre “vítimas”, assim como há sempre aqueles que se beneficiam do sacrifício dessas “vítimas”.

Infelizmente, essa não é a única desvantagem grave do inchamento do processo legislativo hoje.  A legislação envolve sempre uma espécie de coerção e constrangimento inevitáveis dos indivíduos a ela sujeitos.  A tentativa feita recentemente por alguns intelectuais de considerar as escolhas dos indivíduos, em sua qualidade de membros de um grupo de tomada de decisão — como um eleitorado ou uma legislatura —, como equivalentes às escolhas feitas em outros campos da atividade humana — no mercado, por exemplo —, deixou de observar uma diferença fundamental entre esses dois tipos de escolha.

É bem verdade que tanto as escolhas individuais, no mercado, quanto aquelas feitas por indivíduos enquanto membros de um grupo, dependem, para seu sucesso, do comportamento de outras pessoas.  Por exemplo, ninguém pode comprar, se não há ninguém vendendo.  Os indivíduos, ao fazerem opções no mercado, no entanto, estarão sempre livres para repudiar sua escolha, em parte ou no todo, sempre que não gostarem dos seus possíveis resultados.  Por mais pobre que possa parecer, até mesmo essa possibilidade é negada a indivíduos que tentam fazer suas opções enquanto membros de um grupo, seja de um eleitorado, seja de uma legislatura, ou de algum outro grupo.  O que a parte vitoriosa do grupo decide fica decidido para todo o grupo; e, a não ser que deixem o grupo, os membros derrotados não têm sequer a liberdade de rejeitar o resultado de uma opção que não os agrade.

Aqueles que advogam a legislação inflada, podem afirmar que é um mal inevitável que os grupos tenham de tomar decisões, por todos, que tenham de ser efetivas.  A alternativa seria dividir os grupos em números maiores de facções menores e finalmente em indivíduos.  Nesse caso, os grupos não poderiam mais funcionar como unidades.  Assim, a perda da liberdade individual é o preço a ser pago pelos supostos benefícios advindos dos grupos funcionarem como unidades.

Não nego que muitas vezes as decisões de grupo somente são alcançadas à custa da liberdade individual de escolha e, concomitantemente, da recusa de se fazer essa escolha.  O que quero salientar é que as decisões de grupo, na realidade, valem esse custo com menos frequência do que parece a um observador superficial.

A substituição, pela legislação, da aplicação espontânea de regulamentos não legislativos de comportamento, é indefensável, a não ser que se prove que estes são incertos ou insuficientes, ou que geram algum mal que a legislação poderia evitar, além de manter as vantagens do sistema anterior.  Essa avaliação preliminar é simplesmente inconcebível para os legisladores contemporâneos.  Ao contrário, eles parecem pensar que a legislação é sempre boa em si própria, e que cabe àqueles que discordam provar o contrário.  Minha humilde sugestão é a de que sua conclusão de que uma lei, mesmo que ruim, é melhor do que nada, precisaria estar muito mais apoiada em evidências do que está.

Por outro lado, só estaremos em posição de decidir até onde podemos ir na introdução de qualquer processo legislativo e, ao mesmo tempo, na tentativa de preservar a liberdade individual, se tivermos clareza de quanta repressão o real processo da legislação implica.

Parece inquestionável que devemos, com base nisso, rejeitar o recurso à legislação sempre que usada meramente como um meio de subjugar as minorias para tratá-las como perdedoras.  E, também, que devemos rejeitar o processo legislativo sempre que os indivíduos envolvidos possam atingir seus objetivos sem dependerem das decisões de um grupo e sem realmente coagirem outras pessoas a fazerem o que jamais fariam sem essa coerção.  Finalmente, parece simplesmente óbvio que sempre que surgir qualquer dúvida a respeito da conveniência do processo legislativo, em comparação com algum outro tipo de processo que tenha por objeto a determinação das regras de nosso comportamento, a adoção do processo legislativo deverá, obrigatoriamente, ser resultado de uma avaliação muito precisa. 

Se submetêssemos a legislação existente ao tipo de julgamento que aqui proponho, pergunto-me o quanto dela sobreviveria.

Uma questão completamente diferente é a de verificar como tal julgamento poderia ser conduzido.  Não pretendo que isso possa ser facilmente realizado.  Interesses e preconceitos demais estão, obviamente, prontos a defender o inchamento do processo legislativo na sociedade contemporânea.  No entanto, a não ser que eu esteja enganado, todo mundo irá se confrontar, mais cedo ou mais tarde, com o problema de uma situação resultante que parecerá prometer nada além de perpétuo mal-estar e opressão generalizada.

Um princípio muito antigo parece ter sido violado na sociedade contemporânea — um princípio já enunciado no Evangelho e muito antes ainda na filosofia de Confúcio: “Não faça aos outros aquilo que não gostaria que os outros fizessem a você.”‘ Não conheço qualquer outra asserção, na moderna filosofia da liberdade, que soe tão concisa quanto essa.  Pode parecer tola, se comparada às fórmulas sofisticadas às vezes embaladas em símbolos matemáticos obscuros de que as pessoas parecem gostar, tanto na economia quanto nas ciências políticas.  Entretanto, o princípio confuciano se mostra aplicável ainda hoje para a restauração e preservação da liberdade individual.

Com certeza, a tarefa de descobrir o que as pessoas não gostariam que os outros lhes fizessem não é fácil.  Porém, parece ser comparativamente mais fácil do que a tarefa de determinar o que as pessoas gostariam de fazer sozinhas ou em colaboração com outras.  A vontade comum, concebida como o desejo comum a todo e qualquer membro da sociedade, no que se refere a seu conteúdo é muito mais facilmente apurável na forma “negativa” já evidenciada pelo princípio confuciano do que em qualquer outra forma “positiva”.  Ninguém contestaria o fato de que uma inquirição entre qualquer grupo, conduzida com o objetivo de determinar o que seus membros não querem sofrer como resultado da ação direta de outras pessoas sobre eles, mostraria resultados mais claros e mais precisos do que qualquer investigação relacionada com seus desejos a respeito de outras coisas.  Na realidade, a célebre regra da “autoproteção” proposta por John Stuart Mill não só pode ser reduzida ao princípio confuciano, como também só pode ser aplicada se é assim reduzida, pois ninguém pode efetivamente decidir o que é e o que não é prejudicial a qualquer indivíduo em particular, em dada sociedade, sem confiar, afinal, no julgamento de cada membro de tal sociedade.  Cabe a todos eles definirem o que é prejudicial, ou seja, de fato, o que cada um deles não gostaria que lhe fosse feito.

Agora, a experiência demonstra que, em certo sentido, não há em qualquer grupo minorias relativas a uma série completa de coisas que “não devem ser feitas”.  Mesmo as pessoas que estão prontas a fazer essas coisas aos outros, admitem que não gostariam que se lhes fossem feitas essas mesmas coisas.

Apontar essa simples verdade não é o mesmo que dizer que não há diferença entre um e outro grupo ou sociedade a esse respeito, e, menos ainda, que qualquer grupo ou sociedade guarda sempre os mesmos sentimentos ou convicções, ao longo de sua história.  Mas nenhum historicismo ou relativismo poderia nos impedir de reconhecer que, em qualquer sociedade, os sentimentos e convicções relativos aos atos que nãodeveriam ser produzidos, são muito mais homogêneos e facilmente identificáveis do que quaisquer outros tipos de sentimentos e convicções.  O provável é que uma legislação que proteja as pessoas contra aquilo que não querem que os outros lhes façam, seja mais facilmente determinável e no geral mais bem-sucedida do que qualquer tipo de legislação baseada em outros desejos “positivos” dos mesmos indivíduos.  Com efeito, esses desejos não são apenas, em geral, menos homogêneos e menos compatíveis uns com os outros do que os “negativos”, como frequentemente também são difíceis de serem determinados.

Certamente, como enfatizam alguns teóricos, “há sempre alguma interligação entre a máquina do estado que produz as mudanças legislativas e a opinião social da comunidade na qual essas mudanças devem operar”[2].  O único problema é que essa inter-relação pode significar muito pouco na revelação da “opinião social da comunidade” — o que quer que isso possa significar — e menos ainda na expressão das verdadeiras opiniões das pessoas em questão.  Em muitos casos, não há essa coisa de “opinião social”, nem existe qualquer razão convincente para chamar de “opinião social” a opinião particular de grupos e indivíduos que aconteça estarem em posição de aprovar a lei, nesses casos, em geral às custas de outros grupos e indivíduos.

Pretender que a legislação seja “necessária” sempre que outros meios fracassem em “descobrir” a opinião das pessoas envolvidas, seria apenas uma outra maneira de fugir à solução do problema.  Se os outros meios fracassam, isso não é motivo para inferir que a legislação não fracassa.  Ou assumimos que uma “opinião social” sobre o assunto em questão não existe, ou que existe mas é muito difícil de ser descoberta.  No primeiro caso, introduzir uma legislação implica ser essa uma alternativa correta para suprir a falta de uma “opinião social”; no outro, introduzir uma legislação implica saberem os legisladores como descobrir a “opinião social” que seria, de outra forma, irrevelável.  Em ambos os casos, uma ou outra dessas afirmativas deve ser cuidadosamente comprovada antes da introdução da legislação, mas é simplesmente óbvio demais que ninguém, pelo menos dentre todos os legisladores, tente fazer isso.  A adequação, ou mesmo a necessidade da alternativa — isto é, legislação —, parece simplesmente ser tomada como certa, mesmo por teóricos que deveriam ser menos simplistas.  Eles gostam de afirmar que “aquilo que já pôde uma vez ser considerado uma legislação mais ou menos técnica formulada por advogados, pode hoje ser uma questão de política econômica e social urgente”, ou seja, de regulamentações estatutárias[3].  Contudo, tanto a maneira de se determinar o que é “urgente” quanto os critérios requeridos para decidir sua urgência, incluída a referência à “opinião social” a esse respeito, continuam obscuros, enquanto a possibilidade de se chegar a uma conclusão satisfatória através de um código é simplesmente tida como algo absoluto.  Parece ser apenas uma questão de se aprovar um código — e mais nada.

Aqueles que hoje advogam a legislação inchada seguiram o pressuposto razoável de que nenhuma sociedade está centrada exatamente nas mesmas convicções e sentimentos de outras, e de que, além disso, muitas convicções e sentimentos não são facilmente identificáveis dentro de uma mesma sociedade; de onde se conclui que, assim sendo, o que as pessoas decidem ou não decidem, em uma sociedade, deveria ser deixado de lado e substituído pelo que um punhado qualquer de legisladores possa vir a decidir por eles amanhã ou depois.

Assim, a legislação é concebida como um meio garantido de se introduzir homogeneidade e regulamentos onde não havia.  Desse modo, a legislação vem a ser “racional”, ou, como teria dito Max Weber, “um dos componentes característicos de um processo de racionalização (…) que penetra todas as esferas da ação comunal”.  Mas, como o próprio Max Weber cuidou de enfatizar, pode-se alcançar apenas um sucesso limitado, através da extensão da legislação e da ameaça de coerção que a sustenta.  Isso se deve não só ao fato de que, como Weber mais uma vez observou, “os meios de coerção e punição mais drásticos estão destinados a falhar, quando os sujeitos continuam recalcitrantes”, e de que “o poder da lei sobre a conduta econômica tornou-se, em muitos aspectos, mais fraco do que forte, se comparado às condições de antigamente”.  A legislação pode ter, e na verdade tem, em muitos casos, hoje em dia, um efeito negativo sobre a eficácia dos regulamentos e sobre a homogeneidade dos sentimentos e convicções já prevalecentesem uma dada sociedade.  Pois a legislação pode também romper, deliberada ou acidentalmente, a homogeneidade, ao destruir regras estabelecidas e anular convenções e acordos existentes que até então eram voluntariamente aceitos e mantidos.  Maior ruptura ainda é causada pelo fato de que a possibilidade de se anular acordos e convenções através de uma legislação interventora tende, a longo prazo, a induzir as pessoas a deixarem de se apoiar em qualquer convenção existente, ou de honrar qualquer dos acordos aceitos.  Por outro lado, a mudança contínua das regras, ocasionada pela legislação inchada, a impede de substituir, com sucesso e de forma duradoura, o conjunto de regras não legislativas — costumes, convenções, acordos — destruídas ao longo do processo.  Dessa forma, aquilo que se acreditava ser um processo “racional” demonstra ser, no final, autodestrutivo.

Esse fato não pode ser ignorado dizendo-se simplesmente que a ideia de uma esfera “limitada” das normas de estado “perdeu agora sua validade e sentido, na sociedade altamente industrializada e articulada de nossos tempos”.[4]

Pode-se muito bem dizer que a crítica de von Savigny, no início do século passado, à tendência à codificação e ao registro escrito da legislação em geral parece ter sido esquecida entre as névoas da história.  Pode-se observar também que, no início deste século, uma crítica semelhante sobreveio à confiança de Eugen Ehrlich na “lei viva do povo”, assim como contra a legislação aprovada pelos “representantes” do povo.  Entretanto, não apenas as críticas de Savigny e Ehrlich à legislação continuam irrefutadas até hoje, como igualmente os sérios problemas que elas levantaram em sua época, longe de terem sido eliminados, estão se mostrando mais e mais difíceis de serem solucionados ou mesmo ignorados, no presente.

Isso certamente se deve, entre outras coisas, à fé convencional de nosso tempo nas virtudes da democracia “representativa”, não obstante o fato de que a “representação” vem a ser um processo muito dúbio mesmo para aqueles especialistas em política, que não chegariam a dizer, como Schumpeter, que a democracia representativa é, hoje, um “logro”.  Essa fé pode impedir que se reconheça que, quanto mais numerosas forem as pessoas a serem “representadas” através do processo legislativo, e quanto mais numerosos forem os pontos sobre os quais se tentar representá-las, menos a palavra “representação” se reportará ao verdadeiro desejo das outras pessoas que não aquelas nomeadas como seus “representantes”.

A demonstração — já apresentada no início da década de 1920 por economistas como Max Weber, B. Brutzkus e, mais completamente, pelo professor Ludwig von Mises — de que uma economia centralizada gerida por um comitê de diretores comprimindo os preços e procedendo a sua revelia não funciona, uma vez que os diretores não podem saber, sem a contínua revelação do mercado, qual será a oferta e a demanda, não foi até hoje desafiada por qualquer argumento aceitável desenvolvido por seus adversários, como Oskar Lange, Fred M. Taylor, H. D. Dickinson e outros defensores de uma solução pseudocompetitiva para o problema.  De fato, essa demonstração pode ser julgada a contribuição mais importante e mais duradoura feita por economistas à causa da liberdade individual em nossos tempos.  No entanto, suas conclusões podem ser consideradas apenas como um caso especial de uma compreensão mais geral de que nenhum legislador seria capaz de estabelecer sozinho, sem qualquer tipo de colaboração contínua por parte de todas as pessoas envolvidas, as regras que iriam governar o real comportamento de todos, na infinita relação que cada um tem com os outros.  Nenhum levantamento de opinião pública, nenhum referendum, nenhuma consulta poderiam realmente colocar os legisladores em posição de determinar essas regras, não mais do que um procedimento semelhante poderia colocar os diretores de uma economia planejada em posição de descobrir a total demanda e oferta de todas as mercadorias e serviços.  O verdadeiro comportamento das pessoas está continuamente se adaptando a condições que se transformam.  Mais do que isso, o comportamento verdadeiro não deve ser confundido com expressões de opiniões como as que emergem das pesquisas de opinião pública e semelhantes, não mais do que a expressão verbal dos anseios e desejos deve ser confundida com a “efetiva” demanda no mercado.

A conclusão inevitável é a de que, para devolver à palavra “representação” seu significado original e racional, seria necessária uma redução drástica do número de “representados”, ou do número de matérias nas quais são supostamente representados, ou de ambos.

E difícil admitir, porém, que uma redução no número desses representados fosse compatível com a liberdade individual, se assumimos que eles têm o direito de expressar sua própria vontade, pelo menos enquanto eleitores.  Por outro lado, uma redução no número de questões acerca das quais as pessoas sejam representadas não resulta, definitivamente, no correspondente aumento do número de questões em relação às quais as pessoas podem decidir livremente como indivíduos não “representados”.  A última redução, deste modo, parece ser o único caminho para a liberdade individual, no presente.  Não nego que aqueles acostumados a tirar vantagem do processo de representação, quer como representantes, quer como membros de grupos representados, tenham algo a perder com uma redução dessas.  Porém, é óbvio que eles também têm muito a ganhar com isso em todos aqueles casos em que venham a ser “vítimas” de um processo legislativo irrestrito.  O resultado deveria ser, finalmente, tão favorável, para a causa da liberdade individual, quanto, de acordo com Hobbes, é positivo para os seres humanos serem, no final das contas, impedidos de interferir nas vidas e propriedade uns dos outros, de forma que possam emergir do triste estágio que descreve como “a guerra de todos contra todos”.

De fato, nos confrontamos hoje, frequentemente, com nada menos do que uma potencial guerra legal de todos contra todos, mantida através da legislação e da representação.  A única alternativa seria um estado de coisas no qual essa guerra legal não pudesse mais acontecer, ou pelo menos não tão ampla nem perigosamente como ameaça hoje acontecer.

É claro que uma simples limitação da área coberta pela legislação hoje não poderia solucionar mais completamente o problema da organização jurídica de nossa sociedade, preservando a liberdade individual, do que a legislação o soluciona, atualmente, através de uma verdadeira supressão, passo a passo, dessa liberdade.

Costumes, acordos tácitos, a implicação de convenções, critérios gerais ligados a soluções adequadas para problemas legais específicos, também com referência a possíveis mudanças de opiniões das pessoas a qualquer momento e à justificativa material dessas opiniões — tudo isso ainda está por ser descoberto.  Pode-se muito bem dizer que esse é um processo inegavelmente difícil, às vezes doloroso e geralmente muito longo.  Sempre foi.  Segundo a experiência de nossos ancestrais, a forma usual de viver essa dificuldade — como já colocamos — não só nos países anglo-saxões, mas em todo o Ocidente, era confiar o processo a pessoas especialmente treinadas, como advogados e juízes.  A natureza essencial da atividade destes e a extensão de sua iniciativa pessoal de encontrar soluções legais são questões ainda em aberto.  Não se pode negar que advogados e juízes são homens como quaisquer outros, e que seus recursos são limitados; tampouco se pode negar que eles possam estar sujeitos à tentação de substituir por seu próprio arbítrio pessoal a atitude imparcial de um cientista, quando o caso for obscuro, e suas convicções profundamente enraizadas estiverem em jogo.  Além disso, pode-se argumentar que a atividade desses tipos de honoratiores na sociedade contemporânea parece estar tão destituída de real aprovação quanto a dos legisladores, no tocante a uma verdadeira interpretação da vontade do povo.

Entretanto, a posição dos advogados e juízes, nos países do Ocidente, assim como a de outros honoratioresem sociedades semelhantes no passado, é fundamentalmente diferente daquela dos legisladores, pelo menos em três aspectos muito importantes.  Primeiro, juízes, advogados ou outros em posição semelhante só podem intervir quando convidados a isso pelas pessoas envolvidas, e sua decisão deve ser tomada e se tornar efetiva, pelo menos em questões civis, apenas através de uma colaboração contínua das próprias partes e dentro de seus limites.  Segundo, a decisão de um juiz deve ser efetivada principalmente no interesse das partes da disputa, apenas ocasionalmente no interesse de terceiros e praticamente nunca no interesse de pessoas sem qualquer conexão com as partes envolvidas.  Terceiro, essas decisões da parte de juízes e advogados muito raramente são atingidas sem referência às decisões de outros juízes e advogados em casos semelhantes, estando assim em colaboração indireta com todas as outras partes envolvidas, presentes e passadas.

Tudo isso significa que os autores dessas decisões não têm nenhum poder real, sobre os outros cidadãos, além daquele que esses próprios cidadãos estão preparados para lhes conferir em função de pedirem uma decisão sobre um caso específico.

Isso significa também que o próprio poder fica limitado, ainda, pela inevitável referência de cada decisão a decisões tomadas em casos semelhantes por outros juízes[5].  Finalmente, significa que o processo inteiro pode ser descrito como uma espécie de colaboração ampla, contínua e, principalmente, espontânea entre os juízes e o julgado, para se descobrir qual é a vontade do povo em uma série de situações definidas — colaboração essa que, em muitos aspectos, pode ser comparada àquela existente entre todos os participantes de um mercado livre.

Se contrastamos a posição de juízes e advogados com a posição dos legisladores, na sociedade contemporânea, podemos facilmente entender quanto poder mais estes têm sobre os cidadãos e o quão menos precisas, imparciais e confiáveis são suas tentativas, se é que há alguma, de “interpretar” a vontade do povo.

Nesses aspectos, um sistema legal centrado na legislação se parece, por sua vez — como observamos —, com uma economia centralizada na qual todas as decisões relevantes são tomadas por um punhado de diretores, cujo conhecimento da situação geral é fatalmente limitado e cujo respeito, se é que o há, pelos desejos do povo, fica sujeito a essa limitação. 

Nenhum título solene, nenhuma cerimônia pomposa, nenhum entusiasmo, da parte das massas, podem dissimular o fato nu e cru de que tanto os legisladores quanto os dirigentes de uma economia centralizada são apenas indivíduos como você e eu, que ignoram 99 por cento do que está acontecendo a sua volta no tocante às verdadeiras transações, acordos, atitudes, sentimentos e convicções das pessoas.  Um dos paradoxos de nossa era é o contínuo retraimento da tradicional fé religiosa ante o avanço da ciência e da tecnologia, sob a exigência implícita de uma atitude factual e prosaica e de um raciocínio desapaixonado, acompanhados de um não menos contínuo retraimento da mesma atitude e raciocínio em relação a questões legais e políticas.  A mitologia de nossa época não é religiosa, mas política, e seus principais mitos parecem ser a “representação” do povo, por um lado, e por outro a carismática pretensão de líderes políticos de estarem em poder da verdade e de agirem de acordo com ela.

Outro paradoxo é que os economistas que defendem o mercado livre, no presente, não parecem se importar em considerar se um mercado livre poderia realmente durar, em um sistema legal centrado na legislação.  O fato é que os economistas raramente são advogados e vice-versa, e isso provavelmente explica por que os sistemas econômicos, por um lado, e os sistemas jurídicos, por outro, geralmente são analisados em separado e raramente relacionados um ao outro.  Essa é, provavelmente, a razão pela qual a exata relação entre a economia de mercado e um sistema jurídico centrado em juízes e/ou advogados, em vez de na legislação, é muito menos claramente percebida do que deveria ser, apesar de a relação igualmente rigorosa entre uma economia planejada e a legislação ser óbvia demais para ser ignorada por intelectuais e pelas pessoas em geral.

A não ser que eu esteja errado, há mais do que uma analogia entre a economia de mercado e uma lei judiciária ou de advogados, assim como existe muito mais do que uma analogia entre uma economia planejada e a legislação.  Se consideramos que a economia de mercado era mais bem-sucedida, tanto em Roma quanto nos países anglo-saxões, dentro de estruturas, respectivamente, de lei judiciária e de lei de advogados, é razoável concluir que isso não foi mera coincidência.

Tudo isso não significa, é claro, que a legislação não seja útil — fora aquelas instâncias nas quais é uma questão de se determinar o que “não deve ser feito”, de acordo com os sentimentos e convicções compartilhados por todas as pessoas — nos casos em que possa haver interesse generalizado em se ter alguma regra definida de comportamento, mesmo quando as pessoas envolvidas ainda não chegaram a qualquer conclusão sobre qual deve ser o conteúdo dessas regras.  É sabido que as pessoas às vezes preferem ter uma lei qualquer do que nenhuma.  Isso pode acontecer em vários casos contingentes.  A própria necessidade de uma regra definida foi provavelmente a razão por que, como disse Karl Hildebrand sobre as regras legais romanas arcaicas, ou como Eugen Ehrlich disse a respeito do Corpus Júris Justiniano na Idade Média, as pessoas parecem inclinadas a aceitar, às vezes, uma regra rígida ou obsoleta, ou de qualquer forma insatisfatória, até encontrarem uma mais adequada.

O problema de nosso tempo, no entanto, parece ser justamente o contrário: não é o de nos contentarmos com regras inadequadas, por uma escassez fundamental e uma “fome de regras”, mas o de nos livrarmos de um bando de regras prejudiciais, ou, no mínimo, inúteis, em razão de sua tremenda abundância e, por assim dizer, “má digestão”.

Por outro lado, não se pode negar que as leis dos advogados ou a lei do judiciário possam tender a adquirir as características — inclusive as indesejáveis — da legislação, sempre que juristas ou juízes forem designados a decidir sobre um caso.  Algo do tipo parece ter ocorrido durante o período pós-clássico da lei romana, quando os imperadores conferiram a certos jurisconsultos o poder de emitirem pareceres jurídicos — jus respondendi —, que se tornaram, por fim, vinculados aos juízes em dadas circunstâncias.  No presente, o mecanismo do Judiciário, em certos países com “tribunais supremos” estabelecidos, resulta na imposição das visões pessoais dos membros desses tribunais — ou de uma maioria deles — sobre todas as outras pessoas envolvidas, sempre que há uma grande discordância entre a opinião dos primeiros e as convicções das últimas.  Mas, como tento salientar no capítulo 8 deste livro, essa possibilidade, longe de estar necessariamente implícita na natureza das leis dos advogados ou da lei judiciária, é mais um desvio desta e uma introdução um tanto contraditória do processo legislativo, sob o rótulo ilusório da lei formulada por um advogado ou da lei judiciária em seu estágio mais elevado.  Mas esse desvio pode ser evitado e por isso mesmo não constitui obstáculo intransponível para o desempenho satisfatório da função judicial de determinar qual é o desejo do povo.  Por fim, mecanismos de controle do exercício do poder bem podem ser aplicados dentro da esfera destinada ao exercício da função judiciária, a saber, em seus estágios mais altos, exatamente como são aplicados entre as várias funções e poderes de nossa sociedade política.

Uma observação final precisa ser feita.  Estou lidando, aqui, principalmente com princípios gerais.  Não ofereço soluções específicas para problemas específicos.  Estou convencido, entretanto, de que essas soluções podem ser encontradas muito mais facilmente de acordo com os princípios gerais que propus do que através da aplicação de outros.

Por outro lado, nenhum princípio abstrato irá funcionar efetivamente por si próprio; as pessoas precisam sempre fazer alguma coisa para que funcione.  Isso se aplica aos princípios que desenvolvi neste livro não menos do que a quaisquer outros.  Não procuro mudar o mundo, mas apenas submeter algumas ideias modestas que, a não ser que eu me engane, deveriam ser cuidadosa e justamente consideradas antes de se concluir, como o fazem os advogados da legislação inchada, que as coisas são imutáveis, e, apesar de não serem a melhor resposta, são a resposta inevitável a nossas necessidades na sociedade contemporânea.

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[1] Parece razoável crer que o sufrágio universal, por exemplo, originou tantos problemas — senão mais — quanto a tecnologia, embora bem se possa conceber que há várias relações entre o desenvolvimento da tecnologia e o sufrágio universal.

[2] W. Friedmann, Law in a changing society (Londres: Stevens & Sons, 1959), p.7.

[3] Ibid., p.30.

[4] Ibid, p.4.

[5] A posição especial das cortes supremas a esse respeito é apenas uma qualificação do princípio geral sublinhado antes; voltaremos ao assunto mais tarde.

 

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