Libertários, Maquiavel e o poder do estado

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maquiavel (1)À medida que o movimento libertário e as ideias associadas a ele vão ganhando maior proeminência ao redor do mundo, o surgimento de ataques, calúnias e caricaturas passa a ser inevitável. Libertários, dizem nossos críticos, são antissociais e preferem o isolamento à interação com terceiros. São gananciosos e indiferentes para com os pobres. São ingênuos quanto a terroristas e inimigos externos, e se recusam a apoiar invasões de “países perigosos” (e a subsequente chacina de populações inocentes).
Estas caricaturas e concepções errôneas podem ser refutadas pela simples definição do próprio conceito de libertarianismo. Todo o ideal libertário se baseia em um princípio moral fundamental: a não-agressão de inocentes. Ninguém deve iniciar força física contra um inocente. Muito radical.

É óbvio que, não apenas não há nada de antissocial nesta ideia, como também ela representa a própria negação de tudo o que é antissocial, pois a interação pacífica é justamente o cerne de uma sociedade civilizada.

À primeira vista, praticamente ninguém pode se opor ao princípio da não-agressão. São poucas as pessoas que abertamente defendem atos de agressão contra pessoas pacíficas e inocentes. A diferença é que os libertários são francos e eloquentes quanto a isso, e aplicam este princípio em todas as esferas da vida, para todas as pessoas. Nossa visão vai muito além de meramente sugerir que o estado não pode incorrer em violações grosseiras das leis morais. Nós afirmamos que o estado não pode efetuar nenhum ato que seria proibido a qualquer indivíduo. Não há meio termo para as normas morais: ou elas existem ou não existem.

Exatamente por isso não podemos defender o sequestro estatal apenas porque o governo rotula esta prática de “alistamento militar obrigatório”. Não podemos defender o encarceramento de pessoas que ingeriram as substâncias erradas apenas porque o governo rotula esta prática de “guerra contra as drogas”. Não podemos defender o roubo e a espoliação apenas porque o governo rotula esta prática de “tributação”. Não podemos defender homicídios em massa só porque o governo rotula esta prática de “política externa”. Não podemos defender privilégios para grandes empresas só porque o governo rotula esta prática de “políticas de proteção à indústria”. Não podemos defender a destruição do poder de compra da moeda só porque o estado rotula esta prática de “política monetária”. Não podemos defender restrições à liberdade de empreendimento só porque o governo rotula esta prática de “regulamentação”. E não podemos defender o parasitismo só porque o governo rotula esta prática de “políticas de bem-estar social”.

Murray Rothbard, que era Ph.D. pela Universidade de Columbia, NY, dizia que você pode descobrir qual é a posição libertária a respeito de qualquer questão ao simplesmente imaginar uma quadrilha de criminosos efetuando a ação analisada.

Em outras palavras, o libertarianismo pega certos critérios morais e políticos que são defendidos por todas as pessoas decentes, e simplesmente os aplica de forma consistente e inflexível.

Por exemplo, as pessoas se opõem a monopólios porque temem o aumento de preços, a redução na qualidade dos produtos e serviços, e toda a centralização de poder decorrentes deste arranjo. O libertário apenas aplica esta preocupação em relação a monopólios ao próprio estado. Afinal, empresas privadas operando no mercado — um arranjo que supostamente devemos temer — não podem simplesmente sair cobrando o quanto quiserem por bens e serviços. Os consumidores podem simplesmente trocar de ofertante, ou deixar de usar um determinado produto e passar a usar um substituto mais próximo. Da mesma maneira, empresas não podem reduzir a qualidade de seus produtos sem perder consumidores, os quais poderão encontrar concorrentes ofertando bens e serviços mais satisfatórios.

Já o estado pode, por definição, cobrar do público o quanto ele quiser pelos “serviços” que ele oferta. Os cidadãos — os súditos do estado — têm de aceitar qualquer nível de qualidade que o estado se digne a ofertar. E jamais pode existir, por definição, qualquer concorrente ao estado, uma vez que o estado é definido como o detentor do monopólio da compulsão e da coerção em seu território.

Com suas guerras, seus genocídios, suas atrocidades totalitárias e toda a miséria criada por suas políticas intervencionistas, o estado já demonstrou ser, de longe, a mais letal instituição da história. Seus crimes menores incluem todo o seu endividamento, cujo pagamento dos juros ele impôs à população; as burocracias que se auto-perpetuam e se alimentam da fatia produtiva da população; e todo o desperdício de recursos escassos — os quais poderiam ter sido utilizados para melhorar o padrão de vida da população por meio da formação de capital — em obras e projetos arbitrários e de motivação política.

No entanto, o estado, apesar de todos os seus fracassos, consistentemente usufrui aquele benefício da dúvida que ninguém concederia a pessoas e empresas no setor privado. Por exemplo, a educação estatal produziu resultados que, na mais complacente das hipóteses, podem ser classificados de deploráveis, não obstante o crescente volume de dinheiro direcionado para este setor. Houvesse o setor privado gerado um desastre semelhante, a gritaria e as denúncias contra “os empresários ricos que estão tornando nossas crianças ignorantes” jamais acabariam. Porém, quando é o setor público quem gera resultados medonhos, tudo o que ouvimos é o silêncio. E o silêncio só é interrompido pelas demandas de que os pagadores de impostos deem ainda mais dinheiro e recursos para o estado. Se uma empresa privada fracassa, ela vai à falência. Se o estado fracassa, ele pede (e ganha) mais dinheiro.

Se uma empresa privada comete um erro grave, o mundo vem abaixo. Investigações aprofundadas, reportagens histéricas da mídia e indignações públicas parecem não ter fim. Já quando o estado faz lambança, não há absolutamente nenhum interesse na história, e quase ninguém ouve nada a respeito.

Da mesma forma, quando os tribunais estatais obrigam pessoas inocentes a ter de tolerar atrasos intermináveis e a arcar com gastos infindáveis, não há investigações, não há denúncias e não há apelos por justiça. Quando os ricos e famosos são obviamente favorecidos pelo sistema, as pessoas resignadamente aceitam o fato como corriqueiro, uma inevitabilidade. Enquanto isso, empresas de arbitragem privada, rápidas e eficientes, prosperam na surdina, silenciosamente preenchendo o vazio criado pelo péssimo sistema estatal — e dificilmente alguém nota ou se importa, muito menos aprecia estas melhoras geradas em nosso bem-estar.

Quando o estado fracassa abjetamente em cumprir com a mais mínima qualidade aceitável algum serviço que ele se propôs a fazer — como a segurança —, as pessoas veem isso como algo rotineiro. Se pessoas morrem em decorrência da falta de segurança — inclusive na área de infraestrutura — gerada pelo estado, são apenas coisas da vida. Mas quando uma empresa privada oferece um serviço que deixa a desejar, todos os tipos de impropérios e ameaças judiciais são proferidos por seus desapontados clientes.

No fundo, esta assombrosa diferença entre os padrões morais e éticos exigidos do estado e do setor privado tem suas raízes não apenas nos homens que compõem o aparato estatal, mas também naqueles que lhes dão sustentação intelectual e ideológica.

Os moralistas romanos da antiguidade, e os humanistas da Renascença que vieram depois, preconizavam abertamente que os governantes tinham de possuir um arranjo especial de virtudes morais. Tais virtudes eram, acima de tudo, as quatro virtudes cardinais (cardinal vem do latim e significa “essencial”; logo, todas as outras virtudes dependiam destas quatro): coragem, justiça, temperança e sabedoria. Embora todos os homens fossem exortados a cultivar estas virtudes, os príncipes, em particular, deveriam ir além e apresentar outras mais, como nobreza e generosidade. Estes temas foram desenvolvidos por Cícero em seu ensaio De Officiis e por Sêneca em seus ensaios Sobre a Clemência e Sobre Benefícios.

Os humanistas anteciparam a tese que futuramente viria a ser defendida por Maquiavel: a de que tem de haver uma divisão entre, de um lado, a moralidade e, do outro, qualquer postura e atitude que seja conveniente para o príncipe. Os humanistas responderam a esta tese alertando que, mesmo que a perversidade principesca não fosse punida em vida, a punição divina na próxima vida seria certa e cruel.

O que fez com que Maquiavel se destacasse tão incisivamente foi o seu radical rompimento com esta visão tradicional das obrigações morais do príncipe. Como afirmou Quentin Skinner, o grande estudioso de Maquiavel, “É só quando analisamos detidamente O Príncipe que descobrimos como estes tradicionais aspectos da moralidade humanista foram violentamente subvertidos”.

O príncipe, diz Maquiavel, tem sempre de “estar preparado para agir imoralmente sempre que for necessário”. E “para manter seu poder”, ele — não apenas algumas vezes, mas sim frequentemente — será obrigado a “agir traiçoeiramente, cruelmente e impiedosamente”.

Dado que a maioria das pessoas jamais irá interagir pessoalmente com o príncipe, Maquiavel forneceu o seguinte conselho ao governante: “Todo mundo vê aquilo que você aparenta ser”, mas “poucos sabem diretamente quem você realmente é”. “Um habilidoso enganador”, continuou Maquiavel, “sempre encontrará uma multidão de pessoas que se deixarão ser enganadas”.

Já dá para imaginar que tipo de pessoa o príncipe será.

A visão de Maquiavel frequentemente é resumida como “os fins justificam os meios”. Embora tal destilação não capture todos os aspectos do pensamento de Maquiavel, é fato que esta concisa descrição irrita os professores de teoria política. Ademais, se o fim em questão é a preservação do poder do príncipe, então “os fins justificam os meios” não é uma caracterização injusta do conselho de Maquiavel.

E é exatamente a este princípio que o estado e seus ideólogos recorrem para justificar seu não cumprimento de todas aquelas práticas que as pessoas decentes consideram morais e boas. Friedrich Hayek certa vez escreveu que,

Na ética individualista, o princípio de que o fim justifica os meios é considerado a negação de toda a moral. Na ética coletivista, ele se torna a regra suprema; não há literalmente nada que o coletivista coerente não deva estar pronto para fazer, desde que contribua para o “bem da comunidade”, porque o “bem da comunidade” é para ele o único critério que justifica a ação. A ética coletivista não conhece outros limites que não os da conveniência — a adequação do ato particular ao objetivo que se tem em vista.

Praticamente todas as pessoas hoje aceitam, ao menos implicitamente, a alegação de que o estado opera em uma dimensão moral paralela, na qual as regras morais tradicionais não são aplicáveis. Outros vão além e afirmam que o estado está acima da moralidade que conhecemos. Mesmo que tais pessoas não utilizem as formulações verbais de Maquiavel, de alguma forma elas creem ser desarrazoado exigir que o estado e seus funcionários se comportem da mesma maneira que o resto de nós. O estado pode se defender e se preservar recorrendo a métodos que nenhuma empresa privada, nenhuma organização, nenhuma família e nenhum indivíduo poderiam utilizar para sua própria preservação. E aceitamos isso como algo normal.

Esta é simplesmente uma formulação mais geral do fenômeno descrito anteriormente, que diz que poucas pessoas se espantam quando o estado incorre em um comportamento que seria considerado uma monstruosidade moral caso fosse efetuado por qualquer indivíduo ou entidade.

Por fim, algumas pessoas poderão discordar e contra-argumentar dizendo que o aparato coercivo do estado é essencial para manter a ordem na sociedade, de modo que não podemos insistir fortemente no purismo libertário ao analisarmos seu comportamento. Afinal, algumas vezes o estado tem de fazer aquilo que ele tem de fazer.

Só que absolutamente todos os “serviços” que estado fornece já foram no passado ofertados de maneira não-coerciva. A questão é que nós simplesmente não somos estimulados a estudar e a aprender esta história, e a estrutura de ensino que involuntariamente adotamos desde os nossos primeiros dias na escola tornou nossa imaginação estreita e tacanha demais para conceber essa possibilidade.

Maquiavel lançou uma revolução em prol do estado. A nossa revolução é contra, mas sempre a favor da paz, da liberdade e da prosperidade.

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