O início do período moderno testemunhou uma das transformações mais profundas no pensamento político: o surgimento do absolutismo e da ideia da raison d’état – a “razão de estado”. Como Murray Rothbard enfatiza, essa mudança implicou uma transmutação sutil, mas poderosa: o que antes era justificado como o melhor para o governante passou a ser retratado como sinônimo do bem-estar do povo. Nas mãos de pensadores de Maquiavel a Jean Bodin e, finalmente, na prática de monarcas como Luís XIV, o interesse privado do soberano foi elevado à própria personificação do bem comum.
Do humanismo renascentista a Maquiavel
No capítulo seis do volume um de seu essencial História do Pensamento Econômico – Uma Perspectiva Austríaca, Rothbard traça as raízes do absolutismo no humanismo italiano. A tradição republicana das cidades-estado italianas – onde as elites oligárquicas empregavam podestà para administrar as coisas – fornecia uma vertente. No entanto, ao lado do republicanismo, surgiu uma doutrina mais sombria: que a expansão e preservação do estado constituía o bem maior. Nicolau Maquiavel é o seu arquétipo. Tanto em O Príncipe quanto em Discursos sobre Tito Lívio, observa Rothbard, Maquiavel “pregou a manutenção e expansão do poder do estado como o bem supremo”, subordinando todas as considerações de moralidade a esse fim.
Este era o germe da razão de estado: a ideia de que os governantes podiam e deveriam se afastar da ética comum por uma questão de necessidade política. Como Rothbard coloca, Maquiavel insistiu que “nenhuma consideração de justiça ou injustiça, humanidade ou crueldade, nem de glória ou vergonha, deveria prevalecer” quando a segurança do estado estivesse em jogo.
Bodin e o ápice francês da teoria absolutista
Enquanto Maquiavel lançou as bases do pensamento absolutista, Rothbard identifica o teórico francês Jean Bodin como o ápice desse pensamento. Escrevendo no final do século XVI, Bodin fundiu teoria jurídica, direito divino e política prática em uma doutrina de soberania irrestrita. Para Bodin, o rei era o único e perpétuo legislador, “que respondia apenas perante Deus”. Na narrativa de Rothbard, o trabalho de Bodin marca a cristalização de uma tradição na qual os monarcas eram retratados não apenas como governantes, mas como encarnações do bem público.
Luís XIV e a apoteose do estado
Essa tradição atingiu sua expressão política mais completa sob Luís XIV. Rothbard é inequívoco: “Ainda mais do que Colbert, ele identificou totalmente seu próprio interesse privado como monarca com os interesses do estado e com o ‘bem público'”. Quer o Rei Sol tenha ou não pronunciado as famosas palavras “O estado sou eu”, Rothbard enfatiza, ele certamente acreditava nelas e agia de acordo com elas.
Luís tratou a justiça como “minha justiça” e reivindicou o direito de tributar seus súditos como e o quanto quisesse. Em contraste com os governantes medievais anteriores – que reconheciam direitos de súditos independentes de seu próprio poder e autoridade – para absolutistas como Luís, uma vez que o reino era sua propriedade, por que ele não deveria dispor dele como quisesse? Os propagandistas da corte reforçaram essa lógica. Daniel de Priezac descreveu a monarquia como uma luz divina escondida dos mortais, enquanto o cínico Samuel Sorbière argumentou que apenas a submissão absoluta ao monarca poderia resolver a corrupção humana.
O próprio Luís comparou seu papel ao do sol, “o mais nobre de todos … produzindo vida, alegria e atividade em todos os lugares”. Dom Bossuet, teólogo da corte, foi ainda mais longe: “Todo o estado está na pessoa do príncipe… Majestade é a imagem da grandeza de Deus no príncipe.” Aqui, observa Rothbard, o rei deixou de ser um indivíduo; ele se tornou uma “pessoa pública”, a própria personificação do estado.
A lógica do estatismo
O que ligou esses pontos foi a doutrina da razão de estado. Se o interesse privado do monarca era o interesse público, então qualquer medida tomada para preservar seu poder era justificada como servindo ao bem comum. O enriquecimento do governante tornou-se glória nacional; sua supressão da dissidência tornou-se a restauração da ordem. Como Rothbard observa ironicamente em sua discussão sobre Colbert, “Aparentemente, apenas os interesses de mercadores e cidadãos individuais eram estreitos e ‘mesquinhos’. Colbert teve pouca dificuldade em identificar a lucrativa plumagem de seu próprio ninho com o ‘interesse público’, a glória nacional e o bem-estar comum.”
Nessa transmutação, o absolutismo alcançou uma vitória ideológica duradoura. Enquanto o monarca pudesse retratar suas próprias prerrogativas como inseparáveis das da sociedade, a resistência era lançada não apenas como rebelião contra um governante, mas como traição contra o próprio estado.
Veredicto de Rothbard
Para Rothbard, a ascensão do absolutismo marcou uma traição decisiva às tradições anteriores que enfatizavam a lei, o costume e a liberdade das instituições intermediárias. A razão do estado não era o triunfo do governo racional, mas do poder nu envolto em retórica divina e patriótica. A França de Luís XIV, nesse sentido, não era apenas um regime absolutista, mas o protótipo do estatismo moderno.
Conclusão
O relato de Rothbard sobre o absolutismo e a raison d’état não é apenas um esboço histórico, mas um conto de advertência. Ao misturar o interesse privado do governante com o bem público, pensadores e monarcas absolutistas lançaram as bases intelectuais para formas posteriores de poder centralizado e coercitivo. Como o reinado de Luís XIV demonstrou, uma vez que o governante é o estado, não há limites além de sua vontade. Para Rothbard, entender essa genealogia é essencial para qualquer um que abomine o poder centralizado e busque recuperar os ideais de liberdade eclipsados pela ascensão do estado moderno.
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