O futuro do liberalismo – um apelo para um novo radicalismo

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O liberalismo clássico está em declínio há mais de um século.  A partir de algum momento da segunda metade do século XIX, as questões públicas começaram a ser crescentemente moldadas por ideias socialistas: comunismo, fascismo, nacional-socialismo e, de modo ainda mais duradouro, pela social democracia.

Com efeito, tão completa foi a vitória socialista, que os conservadores em sua versão reformada — os neoconservadores — deram-se a falar sobre o “Fim da História” e a consequente chegada do “Último Homem”, ou seja, o milênio em que haverá a predominância da social democracia global — com a supervisão americana, é claro.

Nessa situação, os liberais podem reagir de duas maneiras: eles podem continuar dizendo que o liberalismo é uma doutrina sólida, mas que é inexplicavelmente rejeitada pelo público apesar de sua solidez; ou — e é isso que irei fazer aqui — eles podem considerar que tal rejeição é indicativa de algum erro dessa doutrina.

O erro central do liberalismo jaz em sua teoria sobre o governo.

O liberalismo — como foi personificado por John Locke e exibido na Declaração da Independência americana escrita por Thomas Jefferson — baseava-se nas noções de soberania individual, apropriação original de recursos naturais que ainda não possuíam donos legítimos, respeito à propriedade privada e à santidade dos contratos.  Esses eram os direitos humanos universais.  Em relação a príncipes e reis, essa ênfase na universalidade dos direitos deixou os liberais como radicais opositores a todos os governos estabelecidos na terra.  Para um liberal, todo e qualquer homem, fosse ele um rei ou um camponês, deveria estar sujeito aos mesmos princípios universais de justiça, e um governo poderia justificar sua existência apenas caso houvesse um contrato entre ele e os donos legítimos de propriedade privada.  Sem esse contrato, nenhum governo poderia ser justificável.  Ou poderia?

A resposta liberal partiu da afirmação (verdadeira) de que assassinos, assaltantes, ladrões, marginais, charlatães, trapaceiros etc. sempre irão existir, e a vida em sociedade seria impossível se estes indivíduos não fossem ameaçados com punições físicas.  Para manter uma ordem liberal, seria necessário obrigar — por meio da ameaça da aplicação de violência — todos a respeitarem a vida e a propriedade de terceiros.  Partindo dessa premissa, os liberais concluíram que essa tarefa de manter a lei e a ordem era única função legítima de um governo.

Se essa conclusão está correta ou não, vai depender da definição de governo.  Ela vai estar correta se ‘governo’ significar simplesmente qualquer indivíduo ou empresa que forneça serviços de proteção para uma clientela que o contrate voluntariamente.  Mas essa não é a definição adotada pelos liberais.  Para um liberal, o governo não é uma empresa especializada.  O governo possui duas características únicas: ele possui o monopólio compulsório da jurisdição de seu território (o tomador supremo de decisões) e possui o direito de tributar.  Assim, quando se assume essa definição de governo, a conclusão liberal é claramente falsa.

Com efeito, é inconcebível imaginar donos legítimos de propriedade assinando contratos que deem a outro agente o direito de obrigar todos dentro de um território a irem exclusivamente a ele em busca de proteção e de tomadas de decisões judiciais.  Tal contrato de concessão de monopólio implicaria que absolutamente todos os donos de propriedade abriram mão de seu direito de decisão suprema em relação à sua pessoa e à sua propriedade, entregando esse direito a um terceiro qualquer.  Na prática, quem assim agisse estaria se entregando voluntariamente à escravidão.

Mas ninguém em seu perfeito juízo concordaria em deixar sua pessoa e propriedade permanentemente indefesas contra as ações de um terceiro.  Similarmente, é inconcebível imaginar que proprietários legítimos dessem a seu protetor monopolista o direito de tributá-los.  Ninguém assumiria um contrato que permitisse ao seu protetor determinar unilateralmente, sem o consentimento do protegido, a quantia que o protegido deve pagar por proteção.

Os liberais tentaram solucionar essa contradição interna por meio de paliativos e improvisações, como constituições e acordos “implícitos” ou “conceituais”.  Entretanto, todas essas tentativas apenas exacerbaram a mesma e inevitável conclusão: é impossível extrair uma justificativa para a existência de um governo por meio de contratos explícitos.  Estes simplesmente não existem.

Foi essa errônea aceitação por parte dos liberais de que o governo é consistente com os princípios da soberania individual, da propriedade privada e da santidade dos contratos que levou à destruição do liberalismo.

Primeiro, desse erro inicial conclui-se que a solução liberal para o problema da segurança — um governo constitucionalmente limitado — é um ideal contraditório.

Tão logo o princípio da existência do governo é aceito, qualquer noção de restrição aos poderes do governo é totalmente ilusória.  Ainda que — como os liberais propuseram — um governo que limitasse suas atividades à proteção dos direitos de propriedade, inevitavelmente surgiria a questão: “Quanto de segurança o governo deve produzir?”  Motivado pelo interesse próprio e pelo fato de que o trabalho sempre representa uma redução na utilidade do agente econômico, porém munido do poder de tributar, a resposta de qualquer funcionário do governo invariavelmente será a mesma: maximizar os gastos e minimizar a produção.  Quanto mais dinheiro um indivíduo puder gastar e quanto menos ele tiver de trabalhar, melhor será a sua situação.

Ademais, um monopólio judicial irá reduzir a qualidade do serviço de proteção prestado.  Se ninguém puder apelar a uma justiça que não seja aquela fornecida pelo governo, então a justiça será corrompida e desvirtuada em favor do governo, não obstante a existência de constituições.  Afinal, constituições e cortes supremas são documentos e agências governamentais, e quaisquer limitações que elas porventura imponham são limitações decididas pelos funcionários da própria instituição que está sob consideração.  Previsivelmente, as definições de propriedade e proteção serão constantemente alteradas, e a abrangência da jurisdição será ampliada em benefício do governo.

Segundo, do erro em relação ao status moral do governo conclui-se que a preferência do velho liberalismo por governos locais — descentralizados e pequenos — é inconsistente.

Uma vez que se admite que, para impor e zelar pela cooperação pacífica entre dois indivíduos — A e B — é justificável haver um monopolista judicial X, então é possível se extrair daí duas conclusões.  Se houver mais de um monopolista, — X, Y e Z —, então, assim como não pode existir paz entre A e B sem X, também não poderá haver paz entre os monopolistas X, Y e Z enquanto estes também estiverem em um “estado de anarquia” entre si.  Logo, para se atingir a aspiração liberal da paz universal, seria necessário não apenas uma total centralização política, como também, em última instância, teríamos de ter um governo mundial.

Por fim, do erro de se aceitar a existência do governo, conclui-se que a antiga ideia da universalidade dos direitos humanos é obscura, e, sob o intuito de se criar a “igualdade perante a lei”, é transformada em um veículo de imposição do igualitarismo.

Tão logo se assume a ideia de que um governo é justo, e monarcas hereditários são abolidos por serem incompatíveis com a ideia de direitos humanos universais, surge a questão: “Como conciliar o governo com a ideia da universalidade dos direitos humanos?”  A resposta liberal seria abrir as portas, em termos iguais, para todos aqueles que quiserem fazer parte do governo, via democracia.  Todos — não apenas a classe hereditária de nobres — devem poder exercer qualquer função governamental.

Entretanto, essa igualdade democrática é bastante diferente da ideia de se ter uma lei universal, igualmente aplicável a todos, em qualquer lugar, e em qualquer época.  Com efeito, a velha e repreensível divisão entre a alta casta de monarcas que tudo pode versus os súditos complacentes que pouco podem é mantida sob a democracia, em que há a separação entre as leis válidas para o que é público e as leis válidas para o que é privado, com a supremacia daquela sobre esta.

Em uma democracia, em teoria, não podem existir privilégios pessoais ou pessoas privilegiadas.  Entretanto, privilégios funcionais e funções privilegiadas existem abundantemente.  Enquanto estiverem agindo sob o manto do funcionalismo estatal, os funcionários públicos são governados e protegidos pelas leis válidas para o que é público e, com isso, ocupam uma posição privilegiada em relação às pessoas que vivem sob a autoridade das leis válidas para o que é privado.  Privilégios e discriminação não desaparecem sob a democracia.  Muito pelo contrário.  Ao invés de estarem restritos a nobres e monarcas, os privilégios, o protecionismo e a discriminação legitimada estarão disponíveis para todos.

Previsivelmente, sob condições democráticas, a tendência de cada monopólio de aumentar seus preços e reduzir a qualidade de seus serviços será ainda mais pronunciada.  Ao invés de um monarca que considera o país sua propriedade privada, coloca-se um zelador temporário no comando do país.  Ele não é o proprietário do país, porém, enquanto ele estiver no poder, ele poderá utilizá-lo legalmente para benefício seu e de seus favoritos.  Ele está no comando, podendo usufruir o poder, mas ele não é o dono do estoque de capital do país.  Isso não vai, logicamente, eliminar a exploração.  Pelo contrário: fará com que a exploração seja menos calculista e executada com pouca ou nenhuma consideração para com o estoque de capital (riqueza) do país — ou seja, os regentes inevitavelmente terão uma visão imediatista das coisas.

Ademais, a depravação da justiça dar-se-á em um ritmo ainda maior agora.  Ao invés de proteger os direitos de propriedade pré-existentes, o governo democrático se torna uma máquina de redistribuição dos direitos de propriedade em nome de um ilusório “bem-estar social”.

À luz disso tudo, podemos procurar uma resposta para a questão do futuro do liberalismo.

Por causa do seu erro em relação ao status moral do governo, o liberalismo na verdade contribuiu para a destruição de tudo aquilo que ele havia proposto preservar e proteger: liberdade e propriedade.  O liberalismo, portanto, em sua forma atual, não tem futuro nenhum.  Ou melhor, tem sim: seu futuro é a social-democracia.

Se o liberalismo quiser ter algum futuro, ele precisa antes de tudo corrigir seus erros.  Os liberais precisam reconhecer que nenhum governo pode ser justificado em termos contratuais, e que todos os governos são destruidores daquilo que eles, os liberais, querem preservar.  Ou seja, o liberalismo terá de se transformar no anarquismo (ausência de governo) baseado na propriedade privada (ou em uma sociedade de leis privadas), como foi delineado há 150 anos por Gustave de Molinari e, na época atual, elaborado por Murray Rothbard.

Isso teria um efeito duplo.  Primeiro, levaria à purificação do movimento liberal.  Social-democratas em roupagem liberal, bem como vários agentes que trabalham no governo, iriam se desassociar desse novo movimento.  Por outro lado, a transformação levaria à radicalização desse movimento.  Para aqueles velhos liberais que ainda estão apegados à noção clássica de direitos humanos universais, e que consideram que soberania individual e propriedade privada são coisas anteriores ao governo, a transição será apenas um pequeno passo.  O anarquismo baseado na propriedade privada é totalmente consistente com o liberalismo; trata-se do liberalismo restaurado ao seu objetivo original.  Entretanto, esse pequeno passo teria implicações significativas.

Ao tomá-lo, os liberais teriam de denunciar governos democráticos como sendo ilegítimos, e requerer seu direito à autoproteção.  Politicamente, eles iriam retornar aos primórdios do liberalismo como um credo revolucionário.  Ao negarem a validade dos privilégios hereditários, os liberais-clássicos situaram-se em oposição fundamental a todos os governos estabelecidos.  O maior triunfo do liberalismo — a Revolução Americana — foi o resultado de uma guerra secessionista.  E, na Declaração de Independência, Jefferson afirmou que “sempre que qualquer forma de governo se torna destrutiva para a vida, para a liberdade e para a busca da felicidade, as pessoas têm o direito de alterá-lo ou aboli-lo”.  Os anarquistas defensores da propriedade privada estariam apenas reafirmando o direito liberal-clássico de “livrar-se de tal governo e providenciar novos defensores para sua segurança futura.”

É claro que, sozinho, esse renovado radicalismo do movimento liberal não teria quase nenhuma consequência.  Porém, é a inspiradora visão de uma alternativa para a ordem presente, visão essa que flui desse novo radicalismo, que irá, se muito, quebrar a máquina social-democrática. Ao invés de integração política supranacional, governo mundial, constituições, tribunais, bancos e moeda de curso forçado, os anarquistas liberais propõem a decomposição do estado-nação.  Como seus antepassados clássicos, os novos liberais não buscam a tomada do governo.  Eles o ignoram e querem que ele os deixe em paz.  Mais ainda: querem se seceder de sua jurisdição para poderem organizar sua própria proteção.

Ao contrário de seus predecessores, que apenas tentaram substituir um governo grande por um menor, os novos liberais levam a lógica da secessão até seu extremo.  Eles propõem secessão ilimitada, isto é, a proliferação irrestrita de territórios livres e independentes, até que o alcance da jurisdição do estado se esvaeça.  Para este fim — e em completo contraste com projetos estatizantes como “Integração Europeia”, ALCA, NAFTA, “Nova Ordem Mundial” —, eles promovem a visão de um mundo com dezenas de milhares de países, regiões e cantões livres, de centenas de milhares de cidades livres — como as atuais e singulares Mônaco, Andorra, San Marino, Liechtenstein, Hong Kong e Cingapura.  Ou, para serem ainda mais livres, distritos e vizinhanças completamente autônomos e integrados economicamente por meio do livre comércio (quanto menor o território, maior a pressão econômica para se aceitar o livre comércio) e um padrão monetário baseado em alguma commodity, muito provavelmente o ouro.

Se e quando essa visão ganhar proeminência na opinião pública, o fim do consenso social-democrata terá chegado, e uma era de renascimento do liberalismo terá começado.

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