A cada quatro anos, à medida que a eleição presidencial se aproxima, eu tenho o mesmo sonho: eu não sei ou não me importo em saber quem seja o presidente. Mais importante: eu não preciso saber, nem me preocupar com isso. Eu não tenho que votar ou prestar atenção em debates. Eu posso ignorar todas as propagandas políticas. Não existem riscos em jogo, seja para o meu país ou para minha família. Minha liberdade e minha propriedade estão tão asseguradas que, francamente, não faz diferença quem vença. Eu nem preciso saber seu nome.
Nesse meu devaneio, o presidente é apenas uma figura representativa, sem autoridade real; um símbolo, que é quase invisível para mim e para minha comunidade. Ele não tem a riqueza pública à sua disposição. Ele não administra ministérios reguladores. Ele não pode nos taxar, nem mandar nossos filhos para guerras no estrangeiro, nem dar subsídios aos ricos ou aos pobres, nem indicar juízes que irão retirar nosso direito à autonomia, nem controlar um banco central que inflaciona a oferta monetária e provoca os ciclos econômicos, e nem mudar as leis autoritariamente — seja para agradar aos interesses especiais daqueles de quem ele gosta, seja para punir aqueles que o desagradam.
A Função do Presidente
Sua função é simplesmente supervisionar um governo minúsculo, virtualmente sem poder, exceto para arbitrar disputas entre estados, que são as principais unidades governamentais. Ele é o líder do estado, mas nunca o líder do governo. Sua posição, na verdade, é de constante subordinação aos funcionários ao redor dele e aos milhares de políticos em nível estadual e municipal. Ele adere às rigorosas regras da lei e está sempre ciente de que, no momento em que ele cometer uma transgressão e tentar expandir seu poder, será impedido e deposto como um criminoso.
Mas um impeachment não é algo provável, pois a sua simples ameaça basta para lembrar o presidente de qual é o seu lugar. Esse presidente é também um homem de caráter excepcional, bem respeitado pelas elites naturais da sociedade, uma pessoa cuja integridade é inquestionável e confiada por todos que o conhecem, uma pessoa que representa o melhor daquilo que o país é.
O presidente pode ser um herdeiro rico, um empresário de sucesso, um intelectual altamente preparado, ou um fazendeiro proeminente. Independente disso, seus poderes são mínimos. A sua equipe é minúscula, e está quase sempre ocupada com assuntos cerimoniais, como a assinatura de proclamações e o agendamento de encontros com outros chefes de estado.
A presidência não é uma posição a ser avidamente perseguida, mas, sim, concedida como honorária e temporária. Para garantir que isso ocorra, a pessoa escolhida para vice-presidente é o principal adversário político do presidente. O vice-presidente, portanto, serve como uma lembrança constante de que o presidente é eminentemente substituível. Dessa maneira, o cargo de vice-presidente é muito poderoso — não em relação ao povo, mas para manter o executivo sob estrita vigilância.
Mas para pessoas como eu, que têm outras preocupações que não políticas, pouco importa quem seja o presidente. Ele e toda a sua equipe não afetam minha vida de maneira alguma. Sua autoridade é principalmente social, e deriva da respeitabilidade que ele tem perante as elites naturais da sociedade. Essa autoridade se perde tão facilmente quanto se ganha, portanto é improvável que ela seja abusada.
Esse homem é eleito indiretamente, sendo os membros dos colégios eleitorais escolhidos de acordo com critérios estaduais, com uma única ressalva: nenhum desses membros pode ser funcionário público federal. Nos estados que escolhem seus membros através do voto majoritário, não são todos os cidadão ou residentes que podem participar. Os que podem realmente votar, uma pequena porcentagem da população, são aqueles que verdadeiramente têm em mente os melhores interesses da sociedade. Esses indivíduos são aqueles que são donos de propriedades, chefes de famílias, e os realmente instruídos. Eles escolherão um homem cuja função é pensar somente na segurança, na estabilidade e na liberdade desse país.
O Governo Invisível
Aqueles que não votam e não ligam para política têm sua liberdade garantida. Eles não têm direitos especiais, contudo seus direitos à individualidade, à propriedade e à autonomia nunca são postos em dúvida. Por essa razão, e por todos os propósitos práticos, eles podem se esquecer do presidente e, consequentemente, do resto do governo federal. Não faz diferença se ele existe ou não. As pessoas não pagam impostos diretamente a ele. Ele não diz às pessoas como elas devem conduzir suas vidas. Ele não as manda para guerras, não controla suas escolas, não paga suas aposentadorias, e muito menos as emprega para espionar e extorquir seus concidadãos. O governo é praticamente invisível.
As controvérsias políticas que me envolvem tendem a ser em nível comunitário, municipal ou, no máximo, estadual. E isso ocorre para todos os assuntos, incluindo impostos, educação, crime, assistencialismo, e até imigração. A única exceção é a defesa geral da nação, embora o exército de prontidão seja bem pequeno e com várias milícias baseadas nos estados, em caso de necessidade. O presidente é o comandante-em-chefe das forças armadas federais, mas essa é uma posição secundária a menos que o congresso declare guerra. Essa função requer não mais do que garantir a impenetrabilidade das fronteiras por agressores estrangeiros, uma tarefa relativamente fácil considerando a nossa geografia e o oceano que nos separa daquele mundo velho e em incessante animosidade.
No meu sonho, há dois tipos de representantes públicos em Washington: membros da Câmara dos Deputados, um enorme corpo de políticos que cresce junto com a população, e um Senado eleito por legislaturas estaduais. A Câmara trabalha para manter o Senado federal sob controle, e o Senado trabalha para manter o executivo sob controle.
O poder legislativo sobre o público praticamente não existe. Os congressistas têm poucos incentivos para aumentar seu poder porque eles próprios são cidadãos reais. Meu deputado mora a menos de um quilômetro da minha casa. Ele é meu vizinho e meu amigo. Eu não conheço meu senador federal, e não preciso conhecer, porque ele se reporta aos legisladores estaduais que eu conheço.
Assim, no meu sonho, não há praticamente nada em jogo na próxima eleição presidencial. Não importa qual seja o resultado, eu mantenho minha liberdade e minha propriedade.
Extrema Descentralização
A política desse país é extremamente descentralizada, mas a população é unida por uma economia que é perfeitamente livre e por um sistema de comércio que permite às pessoas se associarem voluntariamente, inovarem, pouparem, e trabalharem baseando-se em benefícios mútuos. A economia não é controlada, estorvada ou mesmo influenciada por qualquer comando central.
As pessoas são permitidas de ficar com aquilo que ganham. A moeda que elas usam para comerciar é sólida, estável, e lastreada por ouro. Capitalistas podem abrir e fechar seus negócios à vontade. Trabalhadores são livres para aceitar qualquer trabalho que quiserem, sob qualquer salário e na idade que quiserem. Os negócios têm apenas dois objetivos: servir o consumidor e obter lucros.
Não existem controles trabalhistas, benefícios compulsórios, impostos sobre folhas de pagamento, ou outras regulamentações. Por essa razão, cada um se especializa naquilo em que é melhor, e as trocas pacíficas entre os empreendimentos voluntários causam crescentes ondas de prosperidade por todo o país.
O formato que a economia vai tomar — seja agrícola, industrial, ou de alta tecnologia — não interessa ao governo federal. Permite-se que o comércio aconteça livre e naturalmente, e todos compreendem que ele deve ser gerenciado por proprietários, não por funcionários públicos. O governo federal não poderia criar impostos quando quisesse, muito menos taxar a renda, e o comércio com nações estrangeiras seria competitivo e livre.
Se por algum motivo esse sistema de liberdade começar a se decompor, a minha própria comunidade — o estado no qual eu moro — tem uma opção: se separar do governo federal, formar um novo governo, e se juntar a outros estados nesse esforço. A constituição, como é do conhecimento pleno, permite a secessão. Essa foi parte da garantia requerida para tornar possível que o país fosse uma federação. E, de tempos em tempos, os estados ameaçam uma secessão, apenas como forma de mostrar ao governo federal quem está no comando.
Esse sistema reforça o fato de que o presidente não é o presidente do povo americano, muito menos seu comandante-em-chefe, mas meramente o presidente dos Estados Unidos. Ele serve apenas com sua permissão e somente como líder simbólico dessa união voluntária de comunidades políticas mais importantes. Esse presidente jamais poderia fazer pouco caso dos direitos dos estados, muito menos violá-los na prática, porque assim ele estaria traindo seu juramento e arriscando ser expelido do cargo.
Nessa sociedade sem administração central, uma vasta rede de associações privadas serve como a autoridade social dominante. Comunidades religiosas exercem vasta influência sobre a vida pública e privada, assim como o fazem também entidades civis e líderes comunitários de todos os tipos. Eles criam uma enorme miscelânea de associações e uma verdadeira diversidade na qual cada indivíduo e grupo encontra um lugar.
Essa combinação de descentralização política, liberdade econômica, livre comércio, e autonomia cria, dia após dia, a mais próspera, diversa, pacífica e justa sociedade que o mundo jamais conheceu.
Sem Utopia
Seria isso uma utopia? Na verdade, nada mais é do que o resultado da minha premissa inicial: que o presidente dos EUA é tão restringido que não é nem importante saber quem ele é. Isso significa uma sociedade livre que não é controlada por ninguém, exceto por seus membros em suas qualidades de cidadãos, pais, trabalhadores e empreendedores.
Como vocês já devem ter percebido, meu devaneio consiste naquilo que nosso sistema foi concebido para ser em cada detalhe. Ele foi criado pela Constituição dos EUA, ou, pelo menos, pelo sistema que a vasta maioria dos americanos acreditava que teria com a Constituição americana. Esta era a mais grandiosa e mais livre república do mundo, por mais irreconhecível que isso seja hoje.
Esse era o país onde as pessoas deveriam governar a si mesmo e a planejar sua própria economia, e não tê-la planejada por Washington, D.C. O presidente nunca se interessaria pelo bem-estar do povo americano porque o governo federal não teria voz nesse assunto. Isso seria deixado para as comunidades políticas populares decidirem.
Antes de a Constituição ser ratificada, havia alguns céticos chamados de anti-federalistas. Eles estavam insatisfeitos com qualquer movimento que se afastasse da extrema descentralização proposta pelos Artigos da Confederação. Para aplacar seus temores, e para garantir que o governo federal fosse mantido sob controle, os autores restringiram ainda mais seus poderes com a Declaração de Direitos (Bill of Rights). Essa lista não foi feita para restringir os direitos dos estados. Ela nem mesmo se aplicava a eles. Ela limitava ao máximo tudo aquilo que o governo central poderia fazer aos indivíduos e às suas comunidades.
Como Tocqueville havia observado a respeito da América, mesmo já nos idos de 1830, “em alguns países existe um poder que, mesmo que ele esteja em um grau externo ao corpo social, ainda assim é capaz de dirigi-lo e forçá-lo a se manter em uma certa conduta. Em outros, a força dominante está dividida, estando parcialmente dentro e parcialmente fora do grupo do povo. Mas nada desse tipo é observado nos EUA; lá, a sociedade governa a si própria e para si própria” e “raramente se encontra um indivíduo que se aventuraria a conceber, ou, menos ainda, expressar a idéia” de qualquer outro sistema.
Quanto à presidência, Tocqueville escreveu que, “o poder daquele ofício é temporário, limitado e subordinado” e “nenhum candidato foi ainda capaz de incitar o perigoso entusiasmo ou a simpatia passional do povo a seu favor, pela simples razão de que quando ele está na chefia do governo, ele tem pouco poder, pouca riqueza, e pouca glória para compartilhar com seus amigos; e sua influência no estado é muito pequena para que o sucesso ou a ruína de uma facção dependa de sua elevação ao poder”.
Aquela América jamais teria tolerado uma atrocidade como o Americans With Disabilities Act — ADA (ato em prol dos americanos deficientes). Eis uma lei que governa o modo como cada prédio nos EUA deve ser estruturado. Ela tem um poder de veto sobre cada decisão de emprego no país. Ela ordena que as pessoas não levem em consideração as habilidades das outras pessoas nas relações econômicas diárias. Tudo isso é impingido arbitrariamente por um exército de burocratas permanente trabalhando conjuntamente com advogados que se enriquecem rapidamente se souberem manipular o sistema.
A ADA é meramente um exemplo, dentre dezenas de milhares, que teria sido considerado pavoroso e, de fato, inimaginável, pelos autores. Não é porque eles não gostassem de pessoas deficientes ou que pensassem que as pessoas devessem ser discriminadas a favor ou contra. É porque eles se apegaram a uma filosofia de governo e de vida pública que excluía até mesmo a possibilidade de tal lei. Essa filosofia era chamada de liberalismo.
Liberalismo
Nos séculos XVIII e XIX, o termo liberalismo geralmente se referia a uma filosofia de vida pública que afirmava o seguinte princípio: sociedades e todas as suas partes não necessitam de um controle central administrador porque as sociedades normalmente se administram através da interação voluntária de seus membros para seus benefícios mútuos. Hoje não podemos chamar de liberalismo essa filosofia porque esse termo foi apropriado por democratas totalitários. Em uma tentativa de recuperar essa filosofia ainda em nosso tempo, damos a ela um novo nome: liberalismo clássico.
Liberalismo clássico significa uma sociedade na qual meu sonho é uma realidade. Não precisamos saber o nome do presidente. O resultado das eleições é altamente irrelevante porque a sociedade é regida por leis e não por homens. Não tememos o governo porque ele não nos tira nada, não nos dá nada, e nos deixa em paz para moldarmos nossas vidas, comunidades e futuros.
Essa visão do governo e da vida pública foi destruída em nosso século e em quase todos os países do mundo. No nosso caso, o presidente dos EUA não é apenas extremamente poderoso, especialmente se levarmos em conta todas as agências executivas que ele controla; ele é provavelmente o homem mais poderoso da terra — excetuando-se, é claro, o presidente do conselho do Federal Reserve. (O presidente do Banco Central).
Há um mito popular nesse país de que o cargo de presidente santifica o homem. Apesar de toda a intimidação e severidade com a qual Richard Nixon foi tratado durante sua presidência, e da humilhação de sua renúncia, os testemunhos e tributos em seu funeral falavam de um homem que havia ascendido a um status divino, como algum imperador romano. Mesmo com todos os problemas de Clinton, não tenho dúvidas de que ele teria sido tratado da mesma maneira. Esse processo de santificação se aplica até mesmo a nomeados para cargos públicos: Ron Brown, um corrupto “solucionador de problemas”, ascendeu a um status divino apesar do fato de que seus problemas legais estavam prontos para varrê-lo pra cadeia.
Anti-Governo?
Claro, meus comentários podem ser denunciados como anti-governo. Dizem-nos diariamente que as pessoas que são anti-governo são uma ameaça pública. Mas, como Jefferson escreveu nas Resoluções de Kentucky (Kentucky Resolutions), um governo livre é fundamentado na desconfiança, e não na confiança. “Em questões de poder, portanto, não mais deixemos que se ouça sobre confiança no homem, mas retenha-o da injúria usando as correntes da Constituição”. Ou como Madison disse no Federalist, “Todos os homens que têm poder devem ser desconfiados até um certo grau”. Podemos adicionar dizendo que qualquer governo que empregue três milhões de pessoas, a maioria delas armadas até os dentes, deve ser desconfiado até um enorme grau. Essa é uma atitude cultivada pela mente liberal-clássica, que premia e incentiva a liberdade dos indivíduos e das comunidades para controlarem suas próprias vidas.
Poderíamos multiplicar infinitamente as declarações “anti-governo” feitas pelos autores. Eles tiveram que explicar nos mínimos detalhes a sua teoria a respeito dos negócios públicos — a teoria do liberalismo clássico — porque em meados e fins do século XVIII essa teoria estava sob fogo cerrado, sendo atacada por um novo tipo de absolutismo, e Rousseau era seu profeta. Em sua visão, um governo democrático incorporava a vontade geral do povo, essa vontade era sempre certa, e, assim, o governo deveria ter poder centralizado e absoluto sobre uma nação-estado militarizada, unificada e igualitária.
O século XX foi o século de Rousseau. E com a ajuda das doutrinas estatistas de Marx e Keynes este foi também o mais sanguinário dos séculos da história humana. A idéia de governo que esses autores tinham era exatamente oposta à do pensamento liberal-clássico. Eles alegam que a sociedade não pode governar a si mesma; ao invés da vontade geral, os interesses do proletariado ou os planos econômicos das pessoas precisam ser organizados e incorporados na nação e naqueles que a controlam. Essa é uma visão de governo que os autores corretamente viram como despótica, e tentaram impedir que criassem raízes por aqui.
É óbvio, eles não obtiveram um sucesso completo. Dois séculos de guerras, crises econômicas, emendas constitucionais despropositadas, usurpações feitas pelo executivo, rendição do congresso, e imperialismo judicial suscitaram uma forma de governo que é exatamente o contrário da imaginada pelos autores, e oposta ao liberalismo clássico. A habilidade do governo federal, com o presidente como seu chefe principal, de taxar, regulamentar, controlar e dominar completamente a vida nacional está praticamente sem limite nos dias atuais.
O Presidente Não-Liberal
Quando a constituição foi escrita, Washington, D.C, era um pantanoso pasto para vacas com apenas algumas construções, e a sociedade americana era a mais livre do mundo. Hoje, a área metropolitana de D.C é a mais rica da face da terra porque é a sede do maior governo do mundo.
O governo dos EUA tem mais pessoas, recursos e poder à sua disposição do que qualquer outro. Ele regulamenta mais, e com maior fineza de detalhes, do que qualquer governo no planeta. Seu império militar é o mais vasto e de maior presença internacional da história do mundo. Sua carga tributária anual faz com que a produção total da velha União Soviética seja insignificante.
Quanto ao sistema federal, trata-se mais de um slogan do que de uma realidade. De tempos em tempos, ouvimos algo sobre retornar o poder aos estados ou banir ordens judiciárias infundadas. Bob Dole[1] diz carregar em seu bolso uma cópia da décima emenda[2]. Mas não leve sua retórica muito a sério. Os estados são meros anexos do poder nacional, em virtude dos mandados aos quais são submetidos, das propinas que aceitam, e dos programas que gerenciam.
O indivíduo, a família, e a comunidade — as unidades essenciais da sociedade na era pré-estatista — não só foram reduzidos a servos federais, tendo apenas a liberdade que o governo os permite ter, como também foram obrigados a agir como parte de uma ordem nacional coletivista que está por toda parte.Nenhuma grande figura política nacional propõe mudar isso.
Descontentamento Público
A realidade, no entanto, é que as pessoas não estão satisfeitas com esse arranjo. Durante a Guerra Fria, o público foi persuadido a ceder uma quantidade surpreendente de sua liberdade pelo bem da missão maior de afastar o comunismo. Antes disso, foi a Segunda Guerra Mundial, e antes foi a Depressão, e antes a Primeira Guerra Mundial. Pela — e apenas — segunda vez nesse século, vivemos na ausência de qualquer crise que o governo possa usar para suprimir os direitos que os autores quiseram garantir [3].
Como resultado, a opinião pública hoje é esmagadoramente a favor de reduções no poder governamental. Praticamente todo político desse país que vence uma eleição promete fazer algo a respeito. Isso vale para os dois maiores partidos. Este ano, tanto Clinton quanto Dole irão concorrer com programas que prometem, de um jeito ou de outro, reduzir o tamanho e o alcance do poder federal.
Se relembrarmos novembro de 1994, ouvimos naquela época uma das mais radicais retóricas anti-Washington vinda dos políticos desde 1776. Diferentemente da mídia, achei que isso foi uma coisa maravilhosa. Os resultados, no entanto, foram menos do que impressivos. Impostos e gastos estão maiores desde que os Republicanos conquistaram a maioria no Congresso. O orçamento para ajudas ao exterior está maior. O estado regulador está mais invasivo do que nunca. As peças centrais da agenda legislativa republicana — incluindo os projetos de lei para a agricultura, adoção e áreas médicas —expandem o tamanho do governo, ao invés de encolhê-lo.
Existem muitas razões para isso, sendo as principais a duplicidade da liderança do Congresso e o talento de seus aliados na imprensa conservadora, que dá a eles uma cobertura ideológica. Não obstante, os novatos que foram eleitos — a quem a mídia descreve como agitadores políticos e ativistas ideológicos –merecem parte da culpa, pois careceram de uma lógica filosófica consistente para se opor ao monstro que encontraram.
Considere por exemplo a questão do equilíbrio orçamentário. Todo político alega que quer um. Todos os novatos prometeram que votariam por um. Mas eles foram imediatamente ludibriados pela classe política. Quando eles quiseram cortar impostos, as elites se atiraram sobre eles dizendo que isso iria aumentar o déficit. Imediatamente, eles foram confrontados com um problema: como conciliar seu conservadorismo fiscal com seu desejo por menos impostos?
Essa confusão resulta de um erro intelectual. A prioridade é encolher o governo. Isso significa que os impostos devem ser cortados em todo e qualquer lugar. E liberais clássicos bem escolados sabem que os governos podem usar o embuste do equilíbrio orçamentário para se manter inchados e em expansão contínua. Sabemos que impostos maiores tipicamente não diminuem o déficit, e, mesmo que o fizessem, essa não seria uma maneira honrosa de proceder. O orçamento federal não é um orçamento doméstico em maior escala; ele é uma gigantesca extorsão redistributivista.
Esse fato suscita uma compreensão central da tradição intelectual liberal-clássica. O governo não tem nenhum poder ou recurso que antes não tenha tomado das pessoas. Ao contrário das empresas privadas, ele não pode produzir nada. O que quer que ele tenha, ele deve extrair da iniciativa privada. Embora isso tenha sido bem compreendido no século XVIII, bem como em grande parte do século XIX, tudo foi quase que totalmente esquecido no século do socialismo e do estatismo, do Nazismo, do Comunismo, do New Deal, do assistencialismo, e das guerras.
Lições Aprendidas
À medida que nos aproximamos do século XXI, quais as lições que aprendemos do século que fica? A mais importante refutação do socialismo veio de Ludwig von Mises, em 1922. Seu tratado chamadoSocialismo afastou pessoas boas de doutrinas ruins, e jamais foi refutado por qualquer um dos milhares de marxistas e estatistas que o atacaram. Por causa desse livro, hoje ele é reverenciado como um profeta, mesmo por social-democratas vitalícios que passaram anos atacando e difamando-o.
Bem menos conhecido é um outro tratado que surgiu três anos depois. Era seu grande livro Liberalismo. Tendo já atacado por completo o estatismo, ele viu ser necessário explicar detalhadamente a alternativa. Foi o primeiro renascimento maciço do programa liberal-clássico em muitas décadas, dessa vez vindo do principal economista político do continente.
Em sua introdução, Mises observava que a versão do liberalismo dos séculos XVIII e XIX havia cometido um erro. Ela havia tentado falar não apenas de coisas materiais, mas também de assuntos espirituais. Tipicamente, os liberais haviam se posicionado contra a igreja, o que teve o desastroso efeito de influenciar e jogar a igreja contra o livre mercado e o livre comércio.
Para tentar evitar esse efeito polarizador, Mises deixou claro que o liberalismo “é uma doutrina que se dirige inteiramente ao comportamento dos homens nesse mundo. Ela não tem nada mais em vista que não a promoção do bem-estar material deles, e não se preocupa com suas necessidades interiores, espirituais e metafísicas”.
É claro que a vida dos homens é mais importante do que comer, beber e obter avanços materiais. É por isso que o liberalismo não pretende ser uma teoria completamente desenvolvida sobre a vida. Assim, a teoria liberal não pode ser repreendida por teólogos e conservadores como sendo uma teoria puramente secular. Ela é secular apenas no sentido em que ela lida com assuntos que são próprios do mundo político, e nada mais. Não há nada no liberalismo de Mises que alguma pessoa religiosa deva contestar, desde que ela concorde que o avanço material da sociedade não é moralmente censurável.
Outra mudança que Mises fez na tradicional doutrina liberal foi vinculá-la diretamente à ordem econômica capitalista. Com bastante freqüência o liberalismo mais antigo oferecia uma magnífica defesa da liberdade de expressão e de imprensa, mas negligenciava a dimensão econômica, que é de total importância.
Esse vínculo direto que Mises fez entre o liberalismo e o capitalismo também ajudou a separar a posição liberal das outras formas fraudulentas que estavam emergindo na Europa e nas Américas. Esse falso liberalismo alegava que havia uma maneira de favorecer tanto a liberdade civil quanto o socialismo, assim como a ACLU[4] dizia ontem e hoje.
Mas como Mises argumentava, a liberdade é uma peça única. Se o governo é grande e poderoso o suficiente para aniquilar a liberdade de comércio, para inflacionar a moeda, ou para financiar serviços públicos maciços, não se precisa de muito mais para também se controlar a imprensa e todas as formas de expressão, e para se envolver em aventuras militares no estrangeiro.
Propriedade
Daí surge a mais famosa frase de Mises deste livro, a frase que alarmou e inspirou intelectuais por todo o mundo: “O programa do liberalismo”, se “condensado em uma única palavra, seria: propriedade.” Por propriedade, Mises se referia não apenas à propriedade privada em todos os níveis da sociedade, mas também ao controle da mesma por seus próprios proprietários.
Com essa única demanda, que a propriedade e seu controle sejam mantidos em mãos privadas, podemos ver como o estado deve necessariamente ser radicalmente limitado. Se o governo pode somente trabalhar com os recursos que ele toma de outros, e se todos os recursos pertencem e são controlados por entidades privadas, o governo está restringido.
Se a propriedade privada está segura, podemos contar com todos os outros aspectos da sociedade para sermos livres e prósperos. A sociedade não pode se administrar a si própria a menos que seus membros sejam donos da sua propriedade e controlem-na; inversamente, se a propriedade está nas mãos do estado, ele vai controlar a sociedade originando os resultados catastróficos que conhecemos tão bem.
Se os direitos de propriedades são estritamente protegidos, o estado não pode usar crises sociais para obter vantagens e, consequentemente, poder — como fez durante guerras, depressões e desastres naturais. Os limites sobre o governo se aplicam, independentemente de ocorrências. Não há exceções.Assim, uma sociedade liberal-clássica não teria construído uma TVA[5], não salvaria — utilizando dinheiro do contribuinte — fazendeiros texanos durante uma seca, não mandaria homens em missões espaciais, e não teria taxado os americanos em seis trilhões de dólares e despejado tudo em uma fracassada guerra contra a pobreza.
Liberdade
O segundo pilar de uma sociedade liberal, Mises dizia, é a liberdade. Isso significa que as pessoas não são escravas umas das outras, e nem do governo; mas, sim, donas de si próprias, sendo livres para perseguirem livremente seus interesses, contanto que não violem os direitos de propriedades de outros. Mais importante, todos os trabalhadores são livres para trabalhar na profissão de sua escolha, estabelecendo contratos livres e voluntários com seus empregadores, ou se tornando empregadores eles próprios.
A combinação de liberdade e propriedade torna as pessoas capazes de exercitar o importantíssimo direito da exclusão. Eu posso manter você fora da minha propriedade. Você pode me manter fora da sua. Você não tem que comerciar comigo. Eu não tenho que comerciar com você. O direito a exclusão, juntamente com o direito de comerciar largamente, é a chave de uma sociedade pacífica. Se não podemos escolher a forma e o estilo das nossas associações, então não somos livres em qualquer sentido.
O colapso da liberdade de associação, especialmente na forma de leis anti-discriminação, é uma das principais razões de a acrimônia social ter aumentado tanto em nossa época. Apesar de serem raramente questionadas, as leis anti-discriminação não podem se harmonizar com uma visão liberal-clássica da sociedade. Uma associação que é forçada jamais pode ser boa para as partes envolvidas, e nem para a sociedade em geral.
Qualquer discussão sobre esse assunto invariavelmente levanta a questão da igualdade. E aqui encontramos outro aperfeiçoamento que Mises fez sobre modelos anteriores de liberalismo. Eles estavam excessivamente apaixonados pela idéia de igualdade: não apenas como uma construção legítima, mas também como algo a ser atingido pela criação de uma sociedade sem classes, o que é totalmente ilógico.
Como Mises disse, “todo o poder humano seria insuficiente para tornar todos os homens iguais. Os homens são e para sempre permanecerão desiguais”. Ele argumentava que às pessoas não poderia ser dada uma quantidade igual de riqueza ou mesmo oportunidades iguais para se tornarem ricas. O melhor que a sociedade pode fazer para seus membros é estabelecer regras que se apliquem a todos, de todas as classes. Essas regras não isentariam ninguém, incluindo os regentes que estão no governo.
Os muito ricos estarão sempre com a gente, ainda bem, assim como também estarão os muito pobres. Esses conceitos estão estreitamente ligados a sociedades e arranjos particulares, é claro, mas do ponto de vista da política, é melhor que sejam ignorados. É função da caridade particular, e não do governo, cuidar dos pobres, e protegê-los de serem arrastados para campanhas políticas demagógicas que ameacem as liberdades essenciais.
Em uma sociedade liberal o governo não protege os indivíduos contra eles mesmos, não luta por algum tipo de distribuição de riqueza, não promove uma região em particular, ou uma tecnologia, ou um grupo, e não determina a distinção entre vícios pacíficos e virtudes. O governo central não controla a sociedade ou a economia sob qualquer aspecto.
Paz
O terceiro pilar do liberalismo clássico é a paz. Isso significa que não pode haver amor à guerra, e, quando ela ocorrer, não pode ser vista como algo heróico, mas apenas como uma tragédia para todos. Ainda assim, continuamos a ouvir que guerras são boas para a economia, mesmo que elas, sempre e em todo lugar, desviem recursos, alocando-os mal e destruindo-os. Mesmo o vitorioso, Mises mostrou, perde.A guerra, disse Randolph Bourne, “é o alimento do estado”.
O mesmo vale para o império. Os americanos se opuseram a uma presença hostil soviética em nosso hemisfério. Entretanto, nunca consideramos como as pessoas no Japão, para ficar com apenas um exemplo, podem se sentir a respeito do grande número de tropas americanas em seu país. De longe, a maior causa de ocorrências criminais em Okinawa e no resto do Japão são as tropas americanas. Mas será que as nossas tropas, nossos aviões, nossos navios e armas nucleares “defendem” o Japão? Contra quem? Não, continuamos a ocupar o país 51 anos após o fim da Segunda Guerra Mundial com o propósito único de controlar.
Se você quer descobrir o verdadeiro caráter de um homem, esqueça o que ele diz sobre si mesmo, e vejacomo ele lida com outras pessoas. O mesmo se aplica ao governo. Podemos esquecer suas afirmações; simplesmente observe como ele trata os outros. O estado liberal-clássico é aquele que protege os direitos dos cidadãos comercializarem com povos estrangeiros. Ele não anseia por conflitos externos de qualquer tipo. Ele não demanda, por exemplo, que outros países comprem produtos produzidos por indústrias americanas influentes, da maneira que a Kodak está exigindo, apoiada pelo poderio militar americano, que o Japão compre seus filmes.
Tampouco uma sociedade verdadeiramente liberal envia ajuda governamental para países estrangeiros, suborna, prende ou mata seus regentes, diz a outros governos que tipo de país eles devem ter, ou se envolve em esquemas globais para impor direitos assistencialistas sobre o mundo. Entretanto, essas são atitudes que os EUA têm empreendido como sua política padrão desde os anos 1930. Nossos dirigentes parecem pensar que eles sempre têm que estar subornando alguém, bombardeando alguém, ou ambos. De outra maneira, corremos o risco de cairmos no temível “isolacionismo”.
Jonathan Kwitney[6] ilustrou a política externa americana da seguinte maneira: imaginemos que, em intervalos mensais regulares, damos uma volta pelo quarteirão, batendo de porta em porta. Em uma casa, anunciamos para nosso vizinho: “Eu gosto de você, eu aprovo você, aqui estão $1.000”. Na próxima casa, fazemos a mesma coisa. Mas na terceira casa, dizemos: “Eu não gosto de você, eu não aprovo você”. Então levamos a mão para baixo do casaco, sacamos uma espingarda serrada calibre 12, e o trucidamos, junto com toda sua família.
E assim vamos nós, andando pelo quarteirão, de tempos em tempos, dando dinheiro para alguns, matando outros, e tomando decisões baseadas em interesses que temos naquele momento, sem regras claras.
Meu palpite é que não seríamos muito populares. Pense nisso na próxima vez que vir um comício “anti-EUA” na televisão. Essas pessoas podem estar recebendo nossa ajuda externa, mas elas também podem estar pensando que serão o próximo Iraque, Haiti, Somália, ou Panamá. Uma política externa liberal-clássica não é política externa alguma, exceto, como George Washington disse, se for para comercializar com todos e não ser beligerante com ninguém.
Restauração
Esses três elementos — propriedade, liberdade, e paz — são a base do programa liberal. Eles são o âmago de uma filosofia que pode restaurar nossa prosperidade perdida e nossa estabilidade social. Contudo, apenas comecei a arranhar a superfície do programa liberal. Ainda há muito a ser dito sobre política monetária, tratados de comércio, esquemas de seguridade social, e muito mais. No entanto, se nossa classe política pudesse entender esse núcleo de liberdade, propriedade, e paz, estaríamos muito melhores, e eu me sentiria mais confiante de que a próxima leva de novatos que mandarmos paraWashington iria ficar de olho no prêmio, que não é a redistribuição ou a concessão de direitos especiais, mas a liberdade.
“O liberalismo”, escreveu Mises, “procura dar aos homens apenas uma coisa: o desenvolvimento pacífico e imperturbável do bem-estar material para todos, para que, por meio disso, possa protegê-los das causas externas de dor e sofrimento, desde que essas causas estejam apenas em poder de instituições sociais, e não do estado. Diminuir o sofrimento, aumentar a felicidade: esse é o objetivo”.
O liberalismo clássico funcionaria nos dias de hoje? Pense nas questões litigiosas da sociedade atual. Cada uma certamente envolve uma área que está relacionada com alguma forma de intervenção governamental. Os conflitos atuais giram em torno do desejo de apoderar-se da propriedade de terceiros usando para esse fim o aparato político de coerção que é o estado. A nossa sociedade seria mais pacífica e próspera se tivesse seguido o programa liberal? A pergunta carrega sua própria resposta.
Agora, de volta ao meu devaneio. Eu não conheço e nem me preocupo em conhecer as políticas presidenciais porque elas não importam de maneira alguma. Minha liberdade e propriedade estão tão asseguradas que, francamente, não faz diferença quem vença as eleições. Mas, para atingir esse objetivo, nenhum de nós pode abster-se das batalhas políticas e intelectuais de nossa época. Mesmo quando a visão liberal-clássica tiver sido restaurada nesse país, como acredito que pode e será, não podemos nos dar ao luxo de descansar.
O Prometeus, de Goethe, brada:
Por acaso imaginaste, num delírio,
que eu iria odiar a vida e retirar-me para o ermo
por alguns dos meus sonhos se haverem
frustrado?
E Fausto responde com sua “última palavra de sabedoria”:
Só merece a liberdade e a vida
aquele que tem de conquistá-las todos os dias.
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[1] Candidato republicano à presidência dos EUA em 1996. [N. do T.]
[2] A décima emenda da Constituição americana diz que os estados e o seu povo são soberanos, independentes e livres para criar seus próprios poderes quando a Constituição não os proibir de fazer isso. [N. do T.]
[3] Ausência essa que já se foi com o advento do 11 de setembro e a “guerra ao terror” que se originou ali. [N. do T.]
[4] A American Civil Liberties Union (União Americana pelas Liberdades Civis) é uma ONG cuja função auto-arrogada seria a de defender as liberdades individuais dos cidadãos. No entanto, o que ela faz mesmo é defender apenas causas politicamente corretíssimas. [N. do T.]
[5] Tennessee Valley Authority — estatal criada em 1933, durante o New Deal, para controlar a geração de eletricidade, a navegação no rio Tennessee, a manufatura de fertilizantes, e fomentar o desenvolvimento econômico do Vale do Tennessee, uma região que foi mais fortemente impactada durante a Grande Depressão. A intenção era ter a TVA como uma agência de desenvolvimento, utilizando verbas federais e a geração de eletricidade para modernizar rapidamente a economia da região. [N. do T.]
[6] Ex-jornalista do Wall Street Journal. [N. do T.]