O Zimbábue apareceu nas manchetes durante toda a década de 2000 devido à sua extraordinária taxa de inflação, a qual chegou a 79,6 bilhões por cento ao mês em Novembro de 2008, o que significava uma taxa de inflação de 98% ao dia.
A hiperinflação foi o resultado da desmesurada impressão de dinheiro pelo governo de Robert Mugabe para financiar a corrupção governamental e o envolvimento do país na República Democrática do Congo.
Como era de se esperar, o Zimbábue se tornou um dos assuntos favoritos entre os economistas monetários devido a essa sua extraordinária taxa de inflação.
Entretanto, mais recentemente, o Zimbábue se tornou um fascinante exemplo de uma economia operando com várias moedas concorrentes, mas não tem recebido praticamente nenhuma atenção dos economistas acadêmicos.
O PIB do país, que encolhia ano após ano, apresentou um salto impressionante tão logo a concorrência monetária foi estabelecida em no início de 2009:
Gráfico 1: evolução do PIB do Zimbábue em dólares.
Para um país que vive sob uma longeva ditadura e cujas instituições estão esfareladas, um aumento de quase 3 vezes no PIB mensurado em dólares em apenas 5 anos é um feito notável.
A taxa de inflação de preços, por sua vez, desabou:
Gráfico 2: taxa de inflação anual de preços no Zimbábue desde 2011
Uma Mistura de Moedas
A situação monetária no Zimbábue é bastante complexa e parece ainda mais peculiar quando vemos que o estado tem não apenas uma, mas nove moedas em sua lista de “moedas de curso legal”, sendo que a sua própria moeda não está na lista. Ou seja, nenhum do cidadão do Zimbábue é legalmente obrigado a aceitar a moeda nacional em uma transação.
Inicialmente, as moedas mais utilizadas eram o dólar americano e o rand sul-africano; entretanto, o pulade Botswana, a libra britânica e o euro também estão encontrando grande aceitação. Todas essas cinco moedas já circulam legalmente dentro do país.
Recentemente, o governo do Zimbábue concedeu o status de curso legal a mais quatro moedas; o dólar australiano, o renminbi chinês, o iene japonês e a rúpia indiana.
Embora este não seja exatamente o sistema monetário ideal defendido pelos economistas seguidores da Escola Austríaca (que preferem um padrão-ouro ou a concorrência de moedas privadas sem curso forçado), trata-se de um cenário instigante. No passado, a criação do curso legal quase sempre se comprovava um impedimento à concorrência entre as moedas; porém, neste aspecto, o regime monetário no Zimbábue é, em várias formas, singular na história recente.
Para ilustrar melhor esse efeito, é necessário fazer duas considerações importantes: os efeitos de rede e a Lei de Gresham.
Efeitos de Rede
Um efeito de rede ocorre quando a desejabilidade de um item depende da quantidade de pessoas que o utilizam. Quanto mais pessoas utilizam um determinado item, mais as outras pessoas estarão inclinadas a também utilizá-lo. O dinheiro é o exemplo perfeito de um bem que exibe efeitos de rede.
Dado que a demanda voluntária por uma determinada moeda ocorre de acordo com o seu grau de aceitação entre terceiros — quanto maior a aceitação, maior a facilidade de se fazer pagamentos presentes e futuros —, pode-se dizer que o dinheiro exibe efeitos de rede.
Caso não haja leis que impõem o curso legal, quanto maior for o número de pessoas que utilizam um determinado meio de troca, maior a facilidade de se realizar transações com essa moeda. Adicionalmente, quanto maior for a facilidade de se fazer transações com uma determinada moeda, mais desejável essa moeda se torna para todos os indivíduos.
Em outras palavras, aceitar uma determinada moeda aumenta sua desejabilidade e assim estimula os outros à também aceitá-la, aumentando ainda mais sua desejabilidade.
Essencialmente, essa é a visão que Carl Menger discute ao descrever a origem do dinheiro a partir de um sistema de escambo.
Uma vez que uma determinada moeda adquire aceitação generalizada, o sistema tende a favorecer essa moeda — que a passa a ser vista como a moeda do status quo — em vez de alternativas em potencial. Portanto, no contexto dos efeitos de rede de uma moeda, os usuários do dinheiro têm em mente o tamanho e a localização da rede que utiliza essa moeda, e o dinheiro se torna aceito tendo essas variáveis em mente.
Sob tais circunstâncias, uma alternativa supostamente superior pode não conseguir substituir uma moeda que já usufrui circulação generalizada.
Entretanto, os problemas que os efeitos de rede ocasionam para moedas alternativas deixam de existir quando a moeda alternativa adquire o status de curso legal. Se uma moeda ganhou status de curso legal, isso significa que ela tem necessariamente de ser aceita caso seja oferecida em transações comerciais ou na quitação de dívidas.
Consequentemente, se uma nova moeda alternativa adquire o status de curso legal, os indivíduos não mais terão preocupações quanto ao tamanho ou à localização de sua rede de aceitação, permitindo que ela substitua a antiga alternativa que não desfruta o status de cunho legal.
Entretanto, além dos efeitos de rede, quando se fala de moedas concorrentes também é importante considerar a Lei de Gresham.
Lei de Gresham
A Lei de Gresham diz que, se o governo estipular uma taxa de câmbio fixa entre duas moedas concorrentes, a moeda ruim irá retirar de circulação a moeda boa. Isso ocorre porque a moeda ruim, em decorrência da imposição artificial de uma taxa de câmbio, se torna sobrevalorizada, ao passo que a moeda boa, também por causa dessa taxa de câmbio artificial, se torna subvalorizada.
[N. do E: na prática, é como se o governo da Suíça decretasse uma taxa de câmbio fixa entre o franco e o real, e o real se tornasse moeda de curso legal na Suíça. Os suíços passariam a entesourar o franco e utilizariam o real para transações correntes e corriqueiras].
Em sua forma mais pura, a Lei de Gresham é inaplicável no caso de Zimbábue. A razão é que, ao contrário do que ocorreu em séculos atrás ao redor do globo, o regime de Zimbábue não determinou taxas de câmbio fixas entre as várias moedas. Em vez disso, os comerciantes têm de verificar as taxas de câmbio do mercado diariamente.
Entretanto, fazendo alguns pequenos ajustes à teoria original, uma variante da Lei de Gresham pode ser construída para ser aplicada ao Zimbábue. E as consequências dessa teoria modificada são semelhantes à lei original. Uma moeda que esteja sendo mais inflacionada do que suas moedas concorrentes tenderão a ser utilizadas com mais frequência no comércio e nas pequenas transações comerciais. E há dois motivos para isso: primeiro, o dono dessa moeda ruim irá preferir utilizá-la no comércio e, com isso, manter as outras moedas mais estáveis e robustas em sua posse; segundo, um indivíduo em posse de uma moeda que perde valor iria correr para trocá-la por bens que perdem valor menos rapidamente do que a dita moeda.
Mas é importante ressaltar que uma moeda só seria vista como ruim caso estivesse perdendo poder de compraem relação a todas as outras moedas da economia. No que mais, se tal moeda continuasse a perder valor, seu efeito destrutivo sobre a economia eventualmente chegaria ao fim, já que, no final, ela se tornaria uma moeda praticamente inútil, tendo seu uso restrito às transações mais triviais.
O curso legal impede a concorrência
Entretanto, quando modelamos uma economia utilizando tanto as leis de curso legal quanto a Lei de Gresham, criamos um novo problema.
Não é provável que alguma nova moeda substitua uma moeda já constituída, a menos que a essa moeda já constituída sofra uma grande perda de valor, fazendo com que as grandes transações nessa moeda se tornem impossíveis. Isso porque a Lei de Gresham garante que moedas inferiores serão as primeiras a serem utilizadas (as pessoas querem se livrar delas), e leis de curso legal obrigam que qualquer moeda com o status de curso legal sejam aceitas.
Porém, mesmo em casos em que a moeda mais popular utilizada para o comércio sofra um declínio maciço em seu poder de compra, ela não será substituída pela moeda mais robusta. Ela será substituída pela segunda pior.
Além disso, o Zimbábue ainda oferece outra distorção que tende a favorecer moedas inferiores. Um fato peculiar sobre o Zimbábue — e um fato que terá consequências importantes para qualquer escolha de moeda a ser utilizada mais frequentemente no Zimbábue — é que, por ser um país pobre devastado por anos de altíssima inflação, qualquer nota estrangeira, por menor que seja o seu valor de face, é vista como uma pequena fortuna para os nativos.
Consequentemente, o comércio tem sido afetado por causa desse valor relativamente alto de até mesmo as cédulas mais baixas das moedas estrangeiras que usufruem curso legal.
Há uma escassez de moedinhas metálicas no Zimbábue devido a seu alto custo de envio. Quando se usa o dólar americano, por exemplo, a nota de 1 dólar é a nota mais popular por causa das restrições do orçamento das famílias. Para um zimbabuano médio, US$ 1 é muito dinheiro e, devido à escassez de moedinhas metálicas, as pessoas geralmente são forçadas a comprar mais bens do que querem ou precisam. Ironicamente, moedas inferiores podem, na verdade, ser favorecidas por uma questão de conveniência.
Conclusão
Embora as moedas mais fortes (aqueles que se depreciam mais vagarosamente) tendem a ser utilizadas para poupança, o sistema monetário de Zimbábue incentiva o uso das moedas menos estáveis para as transações diárias.
Ao passo que as leis de curso legal removem o problema dos efeitos de rede, elas criam um novo problema: uma situação que permite que moedas inferiores dominem o comércio.
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Para ler sobre o sistema de moedas concorrenciais implantados no Peru, e como isso poderia ser feito no Brasil, veja este artigo:
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