Parte I – Contribuições Teóricas de F. A. Hayek à Economia e à Ciência Política

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A Escola Austríaca e Friedrich August von Hayek

 

É absolutamente notório o fato de que a maioria dos economistas “estudados” da atualidade tende a rejeitar com fervor a Escola Austríaca de Economia. Certamente, não em função, porém, da sua defesa intransigente dos princípios básicos do liberalismo, uma vez que não são poucos os economistas “estudados” que contemporaneamente se põem à sustentação da superioridade do mercado livre em relação ao regulamentado, mas em função de a Escola Austríaca inferir os seus axiomas dedutivamente e não mediante a consecução continuada de experiências e de observações, suportando simultaneamente a ideia de que o método científico de estilo cartesiano é inteiramente inadequado ao estabelecimento de quaisquer leis econômicas; o que acaba por contraditar frontalmente os intentos planificadores da maioria dos “economistas”, levando consequentemente muitos deles à rejeição da Escola Austríaca enquanto escola de pensamento econômico relevante.

Muito tem a se discutir com referência ao método austríaco e ao porquê de o mesmo frustrar amargamente as intenções intervencionistas de muitos governos, principalmente as baseadas em previsões de caráter econométrico, mas não se pode negar que Hayek, indubitavelmente, aparenta ser a contestação mais cabal da rejeição à Escola Austríaca dos economistas “estudados” da contemporaneidade, já que obteve o Prêmio Nobel de Economia em 1974 sustentando os princípios econômicos austríacos. Vale indagar, em decorrência disso: o que levou Hayek a ganhar o Prêmio Nobel de Economia? Além disso, o que o levou a destacar-se dos demais teóricos austríacos?

Da Natureza Autorreguladora do Mercado

Muitas pessoas são levadas ao estudo da economia não por meros interesses despretensiosos, mas, normalmente, pela ânsia de resolução de problemas concretos. Afinal, qual pessoa não gostaria de prover uma solução infalível ao problema do desemprego? Qual pessoa não gostaria de findar a escassez material dos bens?

Os políticos costumam discursar acerca de economia justamente porque precisam justificar de alguma forma as suas respectivas autocracias, e, desse modo, acabam por justificá-las dissimulando o emprego de programas distributivos e de projetos centralizados que “embora não solucionem terminantemente as necessidades mais improteláveis da nossa rica nação”, dizem os seus partidários, “as amenizam”.  Contrariamente, todavia, à defesa da provisão de soluções político-construtivistas aos dilemas concretos típicos da economia, os austríacos são mais fundamentalmente caracterizados pela defesa de soluções espontaneamente geradas aos dilemas referidos, sem a necessidade de uma entidade ordenadora central, como o estado. “Estão brincando estes austríacos?! Como pode-se solucionar os inumeráveis problemas relativamente ao desemprego e à escassez senão pela aplicação coativa de leis [“leis”] por parte da burocracia administrativa estatal? Estão os homens a ponto de conseguirem um nível de altruísmo supremo nunca antes visto?

Dificilmente!”, versam alguns. Iremos, então, ao elemento comum das teorias liberalclássicas [austríacas/libertárias].

Em A Riqueza das Nações, de Adam Smith, este versa que todos os fatores produtivos da economia se ajustam uns aos outros naturalmente conforme a lei da oferta e procura, desde que nada intervenha na naturalidade do ajuste dessas duas forças ao ponto de equilíbrio.

Smith afirmava também que a manutenção dessa naturalidade configura essencialmente o elemento primário comum de todas as resoluções plausíveis que possam ter os problemas econômicos mais ordinários.

Por exemplo, Smith certamente argumentaria que o problema do desemprego pode ser solucionado pela eliminação de condições políticas que dificultem o equilíbrio natural entre oferta e demanda de trabalho e de capital humano, e, muito provavelmente, frisaria o seguinte: “Quando a oferta de mão-de-obra (capital humano) excede a sua demanda, o seu preço tende a ser relativamente baixo, o que espontaneamente há de estimular a sua procura, seja pela vinda de investidores estrangeiros que requisitem fatores de produção (inclui-se: mão-de-obra) mais baratos para aplicá-los aos seus empreendimentos com maior viabilidade, seja pela especulação de empresários que desejam aproveitar o preço baixo do capital humano para empregá-lo produtivamente e auferirem lucro da disparidade ocasional entre o valor do custo do emprego e o valor do adicional produtivo resultante do custeio do emprego. Assim, um excesso da oferta de trabalho, por pressupor mão-de-obra barata, naturalmente forçaria o aumento da sua demanda, desde que a liberdade de especulação e de imigração esteja, nesse contexto, efetivamente mantida, uma vez que, p. ex., uma imposição de regulamentos desfavoráveis à imigração reduziria demasiadamente a possibilidade de investidores estrangeiros acrescerem a demanda doméstica de capital humano e uma vez que, p. ex., empecilhos burocrático-tributários postos impeditivamente à especulação empresarial por um governo autocrático central desestimularia a demanda doméstica de capital de humano, já que, ao empresário, o custo da transposição de tais empecilhos muito provavelmente superaria o lucro relativo ao aproveitamento do preço baixo da mão-de-obra, sendo, portanto, prognosticável o desemprego.”. Este argumento, senhores, indubitavelmente é um que se enquadra perfeitamente aos princípios liberalclássicos; e perceba que não houve a defesa de política governamental alguma, porém tãosó a descrição de um processo voluntário e puramente mercadológico através do qual o problema do desemprego poderia ser, com efeito, solucionado, sem a necessidade de uma entidade planificadora metafisicamente dada.

Além disso, Smith, em seu livro, atribui à divisão do trabalho – cooperação em liberdade – o título de fator originador da abundância de bens da qual desfrutamos:

“Tomemos, pois, um exemplo, tirado de uma manufatura muito pequena, mas na qual a divisão do trabalho muitas vezes tem sido notada: a fabricação de alfinetes. Um operário não treinado para essa atividade (que a divisão do trabalho transformou em uma indústria específica) nem familiarizado com a utilização das máquinas ali empregadas (cuja invenção provavelmente também se deveu à mesma divisão do trabalho), dificilmente poderia talvez fabricar um único alfinete em um dia, empenhando o máximo de trabalho; de qualquer forma, certamente não conseguirá fabricar vinte. Entretanto, da forma como essa atividade é hoje executada, não somente o trabalho todo constitui uma indústria específica, mas ele está dividido em uma série de setores, dos quais, por sua vez, a maior parte também constitui provavelmente um ofício especial. Um operário desenrola o arame, um outro o endireita, um terceiro o corta, um quarto faz as pontas, um quinto o afia nas pontas para a colocação da cabeça do alfinete; para fazer uma cabeça de alfinete requeremse 3 ou 4 operações diferentes; montar a cabeça já é uma atividade diferente, e alvejar os alfinetes é outra; a própria embalagem dos alfinetes também constitui uma atividade independente. Assim, a importante atividade de fabricar um alfinete está dividida em aproximadamente 18 operações distintas, as quais, em algumas manufaturas são executadas por pessoas diferentes, ao passo que, em outras, o mesmo operário às vezes executa 2 ou 3 delas. Vi uma pequena manufatura desse tipo, com apenas 10 empregados, e na qual alguns desses executavam 2 ou 3 operações diferentes. Mas, embora não fossem muito hábeis, e, portanto, não estivessem particularmente treinados para o uso das máquinas, conseguiam, quando se esforçavam, fabricar em torno de 12 libras de alfinetes por dia. Ora, 1 libra contém mais do que 4 mil alfinetes de tamanho médio. Por conseguinte, essas 10 pessoas conseguiam produzir entre elas mais do que 48 mil alfinetes por dia. Assim, já que cada pessoa conseguia fazer 1/10 de 48 mil alfinetes por dia, pode-se considerar que cada uma produzia 4 800 alfinetes diariamente. Se, porém, tivessem trabalhado independentemente um do outro, e sem que nenhum deles tivesse sido treinado para esse ramo de atividade, certamente cada um deles não teria conseguido fabricar 20 alfinetes por dia, e talvez nem mesmo 1, ou seja: com certeza não conseguiria produzir a 240ª parte, e talvez nem mesmo a 4 800ª parte daquilo que hoje são capazes de produzir, em virtude de uma adequada divisão do trabalho e combinação de suas diferentes operações.

Em qualquer outro ofício e manufatura, os efeitos da divisão do trabalho são semelhantes aos que se verificam nessa fábrica insignificante embora em muitas delas o trabalho não possa ser tão subdividido, nem reduzido a uma simplicidade tão grande de operações. A divisão do trabalho, na medida em que pode ser introduzida, gera, em cada ofício, um aumento proporcional das forças produtivas do trabalho. A diferenciação das ocupações e empregos parece haver-se efetuado em decorrência dessa vantagem. Essa diferenciação, aliás, geralmente atinge o máximo nos países que se caracterizam pelo mais alto grau da evolução, no tocante ao trabalho e aprimoramento; o que, em uma sociedade em estágio primitivo, é o trabalho de uma única pessoa, é o de várias em uma sociedade mais evoluída. Em toda sociedade desenvolvida, o agricultor geralmente é apenas agricultor, e o operário de indústria somente isso. Também o trabalho que é necessário para fabricar um produto completo quase sempre é dividido entre grande número de operários. Quantas são as atividades e empregos em cada setor da manufatura do linho e da lã, desde os cultivadores até os branqueadores e os polidores do linho, ou os tingidores e preparadores do tecido! A natureza da agricultura não comporta tantas subdivisões do trabalho, nem uma diferenciação tão grande de uma atividade para outra, quanto ocorre nas manufaturas. É impossível separar com tanta nitidez a atividade do pastoreador da do cultivador de trigo quanto a atividade do carpinteiro geralmente se diferencia da do ferreiro. Quase sempre o fiandeiro é uma pessoa, o tecelão, outra, ao passo que o arador, o gradador, o semeador e o que faz a colheita do trigo muitas vezes são a mesma pessoa. Já que as oportunidades para esses diversos tipos de trabalho só retornam com as diferentes estações do ano, é impossível empregar constantemente um único homem em cada uma delas. Essa impossibilidade de fazer uma diferenciação tão completa e plena de todos os diversos setores de trabalho empregados na agricultura constitui talvez a razão por que o aprimoramento das forças produtivas do trabalho nesse setor nem sempre acompanha os aprimoramentos alcançados nas manufaturas.”

“A liberdade, todavia, serve à supressão dos dilemas relativamente à escassez?”, argumentam alguns.

O aspecto mais elementar da defesa da liberdade no tocante ao problema da escassez é o que se relaciona diretamente com o problema da insustentabilidade de um sistema econômico planificado centralmente, acerca do qual Mises versou em seu livro Socialismo.

Ora, podemos elucidar o dilema da impossibilidade de um planejamento central resolutivo à escassez por intermédio do esclarecimento teórico do fator que impede o funcionamento duradouro de todo e qualquer sistema social submisso à tirania dirigista de um estado.

Trademos do assunto no seguinte cenário: em dada localidade, o bem A é extremamente caro (ou seja, tem um preço muito alto) em decorrência da sua escassez. “Configura dever do estado ofertá-lo pública e gratuitamente àqueles incapazes de comprá-lo!”, afirmam os socialistas. Entretanto, demandar do estado a oferta gratuita do bem A, alegadamente de forma a amenizar tanto quanto possível a sua escassez, apenas terminaria por aumentar a escassez doutros bens, pois através de quais recursos o estado amplificaria a oferta do referido bem A senão através dos que retira tributariamente dos bolsos privados? A amplificação da oferta do bem A de maneira pública e “gratuita”, custeada via taxação governamental, somente faria ampliar, talvez mais que simetricamente, a escassez doutros bens, e nos enviaria à entrada de um ciclo insolúvel e notoriamente problemático.

Além disso, H. H. Hoppe, em seu livro Democracia, pontua o fenômeno da preferência temporal e clarifica o motivo de a taxação governamental (socialização dos bens econômicos privados) constituir substancialmente a premonição da escassez generalizada.

Primeiramente, descreve a importância da poupança ao encetar do processo civilizatório humano:

“[…] não importando qual seja o grau original de preferência temporal de uma pessoa ou qual seja a distribuição original de tais taxas dentro em uma determinada população, uma vez que isso for baixo o suficiente para que se permita a formação de qualquer nível de poupança, de capital e de bens de consumo duráveis, põe-se em movimento uma tendência à queda da taxa de preferência temporal, a qual é acompanhada por um “processo de civilização”.

O poupador troca bens presentes (de consumo) por bens futuros (de capital) com a expectativa de que estes ajudarão a produzir uma oferta maior de bens presentes no futuro. Se ele tivesse uma expectativa contrária, ele não teria poupado. Se essa expectativa se revelar correta e se todo o resto continuar a ser o mesmo, cairá a utilidade marginal dos bens presentes em relação à utilidade marginal dos bens futuros. A sua taxa de preferência temporal será menor. Ele poupará e investirá mais do que no passado, e a sua renda futura será ainda maior, levando a mais uma redução em sua taxa de preferência temporal. Passo a passo, a taxa de preferência temporal aproxima-se do zero, sem, contudo, jamais alcançá-lo. Em uma economia monetária, como resultado da sua entrega de dinheiro presente, o poupador espera receber mais tarde um rendimento maior em termos reais. Com uma renda mais elevada, a utilidade marginal do dinheiro presente cai em relação à do dinheiro futuro; a proporção de poupança sobe; e o futuro rendimento monetário será ainda maior.

Além disso, em uma economia de trocas, o poupador/investidor contribui também para a redução da taxa de preferência temporal dos não poupadores. Com a acumulação de bens de capital, a relativa escassez de mão-de-obra aumenta, e os salários, ceteris paribus, aumentarão. Maiores taxas de salários implicam uma oferta crescente de bens presentes para os antigos não poupadores. Portanto, até mesmo os indivíduos que eram anteriormente não poupadores verão as suas taxas pessoais de preferência temporal caírem.

Ademais, como resultado indireto do aumento dos rendimentos reais provocado pela poupança, a nutrição e a saúde melhoram, e a expectativa de vida tende a aumentar. Em um desenvolvimento semelhante à transformação da infância para a idade adulta, com uma maior expectativa de vida objetivos mais distantes são adicionados à escala de valores presentes do indivíduo. A utilidade marginal dos bens futuros em relação à dos bens presentes aumenta, declinando também a taxa de preferência temporal.

Simultaneamente, o poupador/investidor dá início a um “processo de civilização”. Ao gerar uma tendência à queda da taxa de preferência temporal, ele – bem como todos aqueles que, direta ou indiretamente, estão conectados a esse indivíduo através de uma rede de trocas – desenvolve-se e amadurece: ocorre a transição da infância à fase adulta e da barbárie à civilização.

Ao construir uma estrutura de capital e de bens de consumo duráveis em expansão, o poupador/investidor também expande constantemente o alcance e o horizonte dos seus planos. Cresce o número de variáveis que estão sob o seu controle e que são tomadas em consideração em suas ações do presente. Portanto, isso aumenta o número e o horizonte de tempo das suas predições sobre eventos futuros. A partir disso, o poupador/investidor fica interessado em adquirir e melhorar constantemente o seu conhecimento relativo a um número cada vez maior de variáveis e de interrelações entre essas variáveis. Contudo, uma vez que tenha adquirido ou melhorado o seu próprio conhecimento e o verbalizado ou demonstrado em suas ações, esse tipo de conhecimento se torna um “bem livre” (abundante; não escasso), disponível à imitação e à utilização por outros para os seus próprios fins. Então, em virtude das ações do poupador, até mesmo as pessoas de visão de curto prazo, orientadas para o presente, serão gradualmente transformadas, passando da condição de bárbaras para a condição de civilizadas. A vida deixa de ser curta, bruta e desagradável, tornando-se mais longa e cada vez mais refinada e confortável.”

Posteriormente, clarifica o motivo de a taxação ser anticivilizacional:

“[…] caso ocorram violações dos direitos de propriedade e os bens apropriados ou produzidos por A sejam roubados, danificados ou expropriados por B; ou caso B restrinja, de alguma forma, os usos que A está autorizado a fazer dos seus bens (além de não ser permitido a A causar qualquer dano físico à propriedade de B), então a tendência à queda da taxa de preferência temporal será perturbada, interrompida ou até mesmo invertida.

As violações dos direitos de propriedade – e o efeito que elas engendram sobre o processo de civilização – podem ser de dois tipos. Elas podem assumir a forma de atividades criminosas (incluindo negligência); ou podem assumir a forma de interferência governamental ou institucional.

A característica marcante das invasões criminosas dos direitos de propriedade é que tais atividades são consideradas ilegítimas ou injustas não só pela vítima, mas também pelos proprietários em geral (e, possivelmente, até mesmo pelos próprios criminosos). Portanto, considera-se que a vítima tem o direito de defender-se caso seja necessário (através da retaliação) e de punir e/ou exigir uma compensação do agressor.

O impacto do crime é duplo. Por um lado, a criminalidade diminui a oferta de bens da vítima (o apropriador/produtor/comerciante), sendo elevada, assim, a sua taxa efetiva de preferência temporal (supondo-se dado o seu padrão de preferência temporal). Por outro lado, à medida que as pessoas percebem o risco de danos futuros, elas realocarão os seus recursos. Elas construirão muros e cercas; instalarão fechaduras e sistemas de alarme; construirão ou comprarão armas; e contratarão serviços de proteção e de seguro. A existência do crime, portanto, implica um retrocesso no processo que conduz à queda da taxa de preferência temporal em relação às vítimas em questão, ocasionando gastos que, na perspectiva das vítimas reais e potenciais, poderiam ser considerados um desperdício caso não houvesse crime.

Dessa maneira, o crime – ou uma mudança em sua taxa – tem o mesmo tipo de efeito na preferência temporal que a ocorrência – ou a frequência – de catástrofes “naturais”. As inundações, as tempestades, as ondas de calor e os terremotos também reduzem a oferta de bens presentes das suas vítimas, aumentando, assim, a sua taxa efetiva de preferência temporal. E a percepção da alteração dos riscos de catástrofes naturais também conduz a realocações de recursos e a caros ajustes – como a construção de barragens, de sistemas de irrigação, de diques de contenção, de abrigos; ou como a compra de seguros por danos de um terremoto. Tais ajustes e realocações seriam desnecessários caso não existissem tais riscos naturais.

No entanto, mais importante do que isso, uma vez que as vítimas reais e potenciais estão autorizadas a se defenderem, a se protegerem e a se garantirem contra ambos os desastres sociais – os crimes e as catástrofes naturais –, o efeito destes sobre a preferência temporal são temporários e não sistemáticos. As vítimas reais pouparão ou investirão uma quantidade menor de bens em função do fato de estarem mais pobres. E as diferentes percepções dos riscos entre vítimas reais e potenciais moldam a direção (o sentido) das suas ações futuras. Porém, enquanto a proteção física e a defesa forem permitidas, a existência de desastres sociais ou de catástrofes naturais não implica que o grau de preferência temporal das vítimas reais ou potenciais – o grau da sua visão de longo prazo, da sua orientação para o futuro – será sistematicamente alterado. Depois de os prejuízos serem verificados e depois de as atividades serem redirecionadas, a tendência à queda da taxa de preferência temporal e o processo civilizatório retomarão o seu percurso anterior. Nesse ínterim, pode-se esperar que a proteção contra o crime e contra os desastres naturais receberá contínuo aperfeiçoamento.

As coisas, entretanto, mudam radicalmente – comprometendo permanentemente o processo de civilização – sempre que as violações dos direitos de propriedade assumem a forma de interferência governamental. A marca distintiva das violações governamentais do direito de propriedade privada é que, ao contrário das atividades criminosas, elas são consideradas legítimas não apenas pelos agentes do governo que se dedicam a elas, mas também pelo público em geral (e, em casos raros, até mesmo pela vítima). Assim, nessa situação, a vítima não pode legitimamente defender-se de tais violações.

A instituição de um imposto governamental sobre os bens ou os rendimentos viola os direitos de propriedade do produtor tanto quanto o roubo. Em ambos os casos, a oferta de bens do apropriador/produtor é diminuída contra a sua vontade e sem o seu consentimento. A moeda governamental – i.e., a criação de “liquidez” – não menos significa uma expropriação fraudulenta dos donos de propriedade do que as operações de uma gangue criminosa de falsificadores. Ademais, as regulações do governo acerca do que um proprietário pode ou não pode fazer com a sua propriedade – para além da regra de que ninguém pode causar danos físicos à propriedade dos outros e de que todas as trocas (comércio) uns com os outros devem ser voluntárias e contratuais – implicam uma “apropriação” da propriedade de alguém da mesma forma como o fazem os atos de extorsão, de roubo ou de destruição. Mas a tributação, a criação de “liquidez” perpetrada pelo governo e as regulações governamentais, ao contrário dos seus homólogos penais, são consideradas legítimas; e a vítima da interferência do governo, ao contrário da vítima de um crime, não tem o direito à defesa física e à proteção da sua propriedade.

Graças, então, à sua legitimidade, as violações governamentais dos direitos de propriedade afetam sistematicamente as preferências temporais individuais de forma diferente – e muito mais profunda – do que a criminalidade. Assim como a criminalidade, a interferência governamental nos direitos de propriedade privada reduz a oferta de bens presentes de uma pessoa, aumentando, assim, a sua efetiva taxa de preferência temporal. As agressões governamentais, em contraste com os crimes, ao mesmo tempo aumentam o grau de preferência temporal das vítimas reais e potenciais porque elas implicam também uma redução da oferta de bens futuros (uma redução da taxa de retorno sobre o investimento). O crime, por ser ilegítimo, ocorre apenas intermitentemente – o assaltante desaparece da cena com o seu saque e deixa a sua vítima sozinha, livre e em paz. Portanto, pode-se lidar com o crime através do aumento da demanda por produtos e serviços de proteção (em relação ao aumento da demanda por produtos e serviços que não sejam de proteção) a fim de restaurar ou até mesmo aumentar a futura taxa de retorno de investimento e fazer com que seja menos provável que o mesmo ou um outro assaltante possam ser bem-sucedidos uma segunda vez com a mesma ou com uma outra vítima. Em contraste, por serem legítimas, as violações governamentais dos direitos de propriedade são contínuas. O agressor não desaparece na clandestinidade, mas permanece ao redor; e a vítima não pode se armar contra ele, mas deve permanecer indefesa (pelo menos é o que, geralmente, dela se espera). Em consequência disso, futuras violações de direitos de propriedade, ao invés de se tornarem menos frequentes, institucionalizam-se. A taxa, a regularidade e a duração das futuras agressões aumentam. Ao invés de promoverem e melhorarem a sua proteção, as vítimas reais e potenciais das violações governamentais dos direitos de propriedade – como demonstrado pela sua contínua desproteção vis-à-vis os seus agressores – reagem a isso associando um risco permanentemente maior à totalidade da sua produção futura e ajustando sistematicamente para baixo as suas expectativas em relação à taxa de retorno de todos os investimentos futuros.

Competindo com a tendência à queda da taxa de preferência temporal, uma tendência oposta passa a surgir com a existência do governo. Ao reduzir simultaneamente a oferta de bens presentes e de (esperados) bens futuros, as violações governamentais dos direitos de propriedade não apenas elevam as taxas de preferência temporal (supondo-se dados os padrões), como também aumentam os padrões de preferência temporal. Em função de os apropriadores/produtores estarem (e virem a si próprios assim) indefesos contra futuras agressões por parte dos agentes do governo, a sua esperada taxa de retorno de ações produtivas e orientadas para o futuro (visão de longo prazo) é reduzida em todos os aspectos; em decorrência disso, as vítimas reais e potenciais tornam-se mais orientadas para o presente (visão de curto prazo).”

Como complemento elucidativo aos dizeres de Hoppe, no meu artigo ¡Pobres hermanos!:

Por que a Argentina está em crise?, frisei:

“[…] a extorsão é a antítese suma da civilização, visto que corrói predatoriamente o aparato produtivo capitalístico reduzindo a quantidade de bens presentes dispostos à poupança. A extorsão (principalmente a de natureza institucional (governamental/estatal)), portanto, por conta de muitas vezes vir a repetir-se ciclicamente, tende a aumentar a preferência temporal do indivíduo, visto que o mesmo, prevendo uma subtração forçosa dos seus bens, decidirá invariavelmente consumi-los o mais rápido possível de modo a aproveitar o valor presente dos seus bens referidos, uma vez que o valor futuro dos mesmos será, prevê, nulo, já que não possuem absolutamente nenhum valor os bens expropriados (despossuídos).

A extorsão, enquanto ato antieconômico, atrapalha o curso da civilização não tão-só por reduzir a quantidade de bens presentemente dispostos à poupança, mas, também, por inserir no homem uma tendência ao consumo imediatista e não à poupança.”

No meu artigo Por que no socialismo todos morrem de fome?, esclareço isto mais pontualmente, como segue:

“Ora, ninguém há de negar que um bem (um objeto útil, mais especificamente) é somente produzido porque o trabalhador que despendeu energia física e tempo na sua confecção espera extrair do seu uso ganhos suficientemente compensatórios aos custos envolvidos no processo. O indivíduo, portanto, apenas manterá o seu trabalho enquanto os lucros decorrentes dele forem apreciavelmente superiores aos custos. O que implica que o mesmo indivíduo cessará o seu trabalho a partir do momento em que o esforço necessário ao seu dispêndio exceder os ganhos oriundos da sua consecução.

Por conclusão, quando um indivíduo espera sempre ter seus bens coercitivamente expropriados por outrem, se sente desestimulado ao trabalho (ou seja, à produção) já que o ganho que extrairia do uso deles será, espera-se, anulados via força expropriatória.

A expropriação (estatal), assim, enquanto forma tipicamente soviética de socialização dos bens, incrementa custos totalmente artificiais aos custos naturais do trabalho (entre os quais está a possibilidade de morte, caracteristicamente inerente ao desentendimento quase inescusável das demandas do expropriador, e, com evidência, a necessidade de burlar os braços fiscalizatórios deste para manter um padrão de vida minimamente satisfatório ao atendimento das exigências fisiológicas humanas mais básicas).

Tal expropriação, nota-se, reduz os lucros da produção, uma vez que o produtor, ao qual atribui-se originalmente o logro dos referidos lucros, é, sob conjunturas socialistas, obrigado via coação a reparti-los com um que não participou em absolutamente nada com relação à obtenção dos mesmos (por indução, um não produtor).

O produtor, desse modo, é coativamente compelido a repartir os ganhos provenientes do seu trabalho com um não produtor enquanto tem de arcar com custos artificialmente elevados na proporção das demandas expropriatórias do agente coativo. A expropriação, em vista disso, por acrescer custos totalmente artificiais ao montante natural de custos relativos ao trabalho, e por reduzir forçadamente os lucros da produção com referência ao esforço necessário, desmotiva o produtor a prosseguir com seus ofícios. Ao curso do tempo, sob o socialismo, a produção de qualquer coisa cessará por inteiro, inevitavelmente, posto que os ganhos da produção são expropriados (socializados) muito para além do ponto no qual a atividade não produtiva (parasítica) se torna comparavelmente mais preferível que a produtiva (não parasítica).

Por conseguinte, a longo prazo, se tornará irrevogavelmente inviável até mesmo a existência parasitária do agente expropriador, já que se, afinal, os ganhos da produção são expropriados (socializados) até que a mesma cesse definitivamente por apresentar mais riscos judiciais que resultados reais compensatórios, donde o expropriador extrairá, então, o seu sustento? Em suma: como viverá o parasita ante a ausência do hospedeiro? É o ponto fundamental.

Trocando “expropriador” por “estado” ou “estatal” a conclusão torna-se ainda mais reveladora.

[…]

Ora, se uma pessoa que meramente finge estar trabalhando, sob o socialismo, tem as mesmíssimas condições de uma que trabalha arduamente, por que esta se manterá produtiva se pode simplesmente não trabalhar e ainda assim subsistir como se estivesse suando em labor? Se, em virtude do ideal igualitarista, se apagam compulsivamente as disparidades econômicas entre quem trabalha de modo árduo e quem finge trabalhar, aquele que antes trabalhava arduamente passará a fingir trabalhar. Se, de fato, absolutamente ninguém se impele à produção em função da nulificação dos seus frutos privativos, quais serão, afinal, os recursos socializados pelo estado? O estado não é o que se mantém pela predação das posses dos que produzem? Se ninguém produz, quais recursos o estado destinará à alimentação do povo? A resposta é um bombástico “nenhum!”.

A fome nada é se não o fruto mais cabal do socialismo.”

Claramente, requisitar do estado um fornecimento gratuito e público de bens, sempre procedente de uma socialização parcial ou total de lucros privados, contraditaria arrebatadoramente os esforços resolutivos de todo homem no tangente ao problema da escassez material. Qualquer intervenção socializadora que advenha do aparato coativo estatal, à vista disso, é inteiramente ilógica, porém como prognosticar de modo direto a superioridade resolutiva da instituição da liberdade especificamente acerca do dilema da escassez?

Voltemos à exemplar localidade na qual o bem A é escasso. Nessa localidade, é inegável que o preço do bem A seria demasiadamente alto, por ser escasso. O seu preço alto indicaria aos capitalistas uma rentabilidade relativa à sua oferta, e tal rentabilidade espontaneamente os compeliria a empregar maquinarias e capital humano na produção do bem A, pois, por ser alto o seu valor, vendê-lo a um preço comparavelmente menor que o que vigora no mercado seria compensatório às potenciais atividades capitalísticas de um ofertante totalmente novo, já que vender a um preço relativamente mais baixo que o de mercado aumentaria o número de unidades vendidas, porque é comparativamente mais preferível ao consumidor comprar bens baratos que comprar caros, de forma que uma diminuição do preço exigido pelo capitalista em troca da oferta adicionada seria mais que proporcionalmente compensada por um aumento do número de compradores efetivos; e o segundo ofertante/capitalista que ingressasse no mercado somente poderia, com efeito, lucrar se exigisse pela troca dos seus produtos um valor monetário comparavelmente menor que o que exige o primeiro (ou se pudesse vender a um preço igual, porém com um valor qualitativo superior), e o faria, uma vez que, novamente, um aumento do número de compradores efetivos compensaria mais que suficientemente tanto uma redução relativa do preço de venda quanto um aumento do custo de produção decorrente do aumento da qualidade/utilidade do produto. Notadamente, a redução do preço do bem A seria inversamente proporcional ao montante de oferta adicional proporcionada pela entrada de ofertantes/produtores/capitalistas totalmente novos no mercado; e novos produtores/ofertantes/capitalistas ingressariam e forçariam progressivamente a tendência à diminuição do preço e ao aumento da qualidade do bem A até que uma produção adicional deste não mais lhe proporcionassem renda monetária (lucro), isto é, até que a oferta disponível esteja equiparada à demandada.

Como obstruir a tendência à redução do preço, ao aumento da qualidade e à suplantação da escassez de qualquer bem? Segundo Mises, a forma máxima de obstrução a essa tendência configura elementarmente a abolição da propriedade privada, uma das premissas fundamentadoras do ideal socialista, posto que ninguém consideraria minimamente aceitável cobrar por algo que não é seu ou ter de pagar pela aquisição de algo que não pertence a absolutamente ninguém, o que implica que a abolição da propriedade privada pressupõe inerentemente a abolição do comércio e, por conseguinte, das trocas (de modo mais específico, trocas de títulos de propriedade) e a consequente abolição da moeda e do sistema de preços, uma vez que a existência do instrumento moeda funciona somente à facilitação dos processos de troca, e sendo, então, completamente abolida a troca, a moeda se aboliria juntamente.

Mas, quê dificuldade insolúvel traz a abolição do sistema de preços à economia?

Eis, então, o brilhantismo de F. A. Hayek em matéria econômica.

Note: o sistema de preços, na economia, mais que simbolizar custos e lucros, manifesta as valorações intersubjetivas dos indivíduos, mediante a análise das quais o empresário aloca produtivamente o seu capital.

Se os indivíduos não valorassem o bem A, ele não seria efetivamente passível de precificação; portanto, o seu preço alto faz com que o empresário/capitalista especule do seguinte modo: “As pessoas necessitam do bem A, mas elas não têm as suas necessidades relativas ao consumo do bem A plenamente satisfeitas, posto que, do contrário, qualquer montante de oferta adicionada à disponível não traria absolutamente nenhuma renda ao seu produtor, e o porquê de a sua produção ser lucrativa, por isso, se encontra exatamente no fato de que a sua demanda presente é comparativamente superior à oferta disponível. Então, o que há de me impedir de ofertar?”. De fato, o empresário não conhece os residentes da localidade na qual o bem A é escasso; jamais propositou saber algo acerca das suas preferências e dos seus gostos; e tampouco os analisou profundamente, mas o sistema de preços mercadológico o faz tomar as decisões mais corretas com referência à alocação do seu capital, o faz saber que, naquela localidade especificamente, os residentes valoram o bem A de tal maneira que faz com que o seu preço seja alto, e o faz sintetizar de maneira variavelmente correta esses dados em forma de escolhas especulativas rentáveis, mesmo sem portar o total das informações mais importantes relativamente à vivência cotidiana dos residentes da localidade averiguada.

Hayek, em Economia e Conhecimento e em A Pretensão do Conhecimento, clarifica a importância do sistema de preços para uma alocação racional de recursos e esclarece a sua capacidade de sintetizar as valorações intersubjetivas dos indivíduos em forma de grandezas monetárias respeitantes à lei da oferta e procura.

Ora, temos de notar que a grandeza demanda, enquanto dado econômico, é a sintetização de determinadas preferências valorativas intersubjetivas de um grande montante de indivíduos, e o resultado visível dessa sintetização (preços) é apenas uma faceta da realidade referente às múltiplas interações sociais, para além do qual o empresário é um ignorante. Numa economia livre, o padeiro, por exemplo, não necessita de saber o motivo de o consumidor comprar o seu pão, tampouco necessita de saber o fim que atribuirá o consumidor ao pão comprado, mas apenas necessita de saber se os seus pães são valorados pelos consumidores.

Ademais, como as preferências valorativas dos indivíduos mudam quase ininterruptamente, os preços não são dados fixos, o que implica que o empresário deve atentar-se continuamente quanto às variações espaciais e temporais da demanda para ajustar a sua produção à mesma. Em vista disso, à função empresarial é inegavelmente indispensável o mecanismo lucro-prejuízo, sendo este a causa suma das correções da incompatibilidade da produção à demanda, uma vez que caso, por exemplo, um empresário oferte 100 unidades de A frente a uma demanda de apenas 20 unidades, ele arcará privativamente com os prejuízos financeiros decorrentes do desperdício de bens de capital no processo de produção de 80 unidades não vendáveis, buscando amenizá-los reduzindo o preço do excedente de A produzido de modo a torná-lo mais atrativo e a lhe conferir saída consequentemente, sendo impelido por tais prejuízos a produzir uma menor quantidade na próxima oportunidade, se ajustando continuadamente às preferências dos consumidores até que o seu processo de produção se alinhe perfeitamente ao que é requerido pelos demandantes, e uma vez que caso, por exemplo, o empresário oferte 100 unidades de A diante de uma oferta de 200 unidades, o ligeiríssimo exaurimento do seu estoque o impelirá a produzir uma maior quantidade de unidades na próxima oportunidade ou a aumentar o preço de A proporcionalmente à disparidade da demanda em relação à oferta disponível de modo a selecionar, entre os demandantes do bem A, os que mais estiverem dispostos a adquiri-lo (isto é, os que mais necessitarem do bem em questão), e, obviamente, este aumento momentâneo de preços há de motivar espontaneamente a entrada de novos produtores no setor, o que acabará por fazer medrar a oferta de A crescentemente até que a mesma se iguale pontualmente à sua demanda, isto é, até que a incompatibilidade entre oferta e demanda esteja maximamente suplantada. Dar-se-ia, dessa forma, os esquemas resolutivos dos dilemas mais brutais da escassez.

Afirma Hayek, também, porém, que o ponto de equilíbrio econômico, no qual todos os processos produtivos da econômicos estão mais que perfeitamente ajustados aos demandados, é meramente imaginário, já que a competitividade empresarial sempre está a submeter-se a processos produtivos totalmente novos e tecnologicamente mais sofisticados e a demanda a inumeráveis variações normalmente bastante imprevisíveis.

O sistema de preços e o mecanismo de lucro-prejuízo, conforme pensava Hayek, eram as ferramentas espontaneamente geradas das quais dispunha o mercado para corrigir-se e autorregular-se.

Numa economia totalmente planificada, sob a qual é abolida a instituição da propriedade e de todos os elementos que derivam dela (lucros (incentivadores do trabalho (produção)), moeda, contabilidade, sistema de preços), de quais mecanismos disporá o autocrata na tomada das suas decisões? Como o autocrata alocará eficazmente os fatores de produção não podendo saber qual localidade necessita mais deles? Como incentivará a produção pela nulificação expropriatória dos seus frutos? Quais recursos despenderá à sustentação dos seus projetos senão os que procedem da extorsão (“socialização”)? E quais recursos extorque senão os que são produzidos pelos indivíduos? E como tais indivíduos se motivarão à produção estando preventivamente socializados (expropriados/tributados) todos os lucros que dela se fazem resultantes? Como o autocrata sintetizará as valorações e as preferências dos indivíduos não tendo por guia um sistema de preços livre? Como saberá o autocrata se está ou não está direcionando os recursos da nação exageradamente a uma localidade em detrimento doutra? Como o autocrata captará corretamente as variações espaciais e temporais da demanda senão mediante uma análise temporal-espacial das variações dos preços? Como saberá o autocrata se dada oferta é quantitativamente insuficiente à supressão integral da demanda não tendo por base um sistema de preços livre ou métodos contábeis sólidos (lucro-prejuízo)? O autocrata pode dispensar saber das finalidades que os indivíduos atribuem aos diferentes e diversos bens disponíveis no mercado? Pode o autocrata, realmente, saber o grau de importância (valor) atribuído a inumeráveis bens econômicos por inumeráveis indivíduos? Não é tal grau de importância tácito, isto é, não articulável? Suponhamos que o autocrata possa, realmente, abstrair no interior da sua consciência o grau de importância que cada indivíduo atribui subjetivamente a cada bem econômico e abstrair as suas variações, ignorando, apenas para fins proposicionais, o modo pelo qual o fará. Inobstante, pode o autocrata escalar os graus de importância valorativa que abstrai? Pode o autocrata compará-los e interpô-los uns aos outros? Se sim, como? Estimá-los ou compará-los uns aos outros não exigiria impreterivelmente do autocrata um princípio ordenador mediante o estabelecimento do qual pudesse eleger os comparavelmente mais relevantes à teleologia social? E se é absolutamente factível a existência de tal princípio ordenador, qual é? É o autocrata o único capaz à sua clarificação? Melhor: não é o autocrata um completo ignorante em relação à sintetização das valorações intersubjetivas dos agentes sociais? Conhecer absolutamente todas as valorações intersubjetivas dos agentes sociais, as suas variações espaciais e temporais, os graus de importância que tem cada bem econômico a cada indivíduo e a forma de escalá-los infalivelmente não exigiria do autocrata onisciências e onipresenças inexistentes?

Hayek diria, seguramente, que um planejador central, como um autocrata, possui uma arrogância fatal, não somente por alegar poder fazer algo incapaz fazer, no entanto, idem, por considerar o seu conhecimento particular superior à somatória de todos conhecimentos individuais. Ora, pode o autocrata saber o que tu queres melhor que tu mesmo? Pode o autocrata saber o fim ao qual deve rumar a sociedade melhor que a forma maximamente livre e espontânea da mesma? Ora, se o fim que o autocrata atribui à sociedade é realmente benéfico à mesma, a sociedade não rumaria a ele espontaneamente, sem a necessidade das suas interferências? É a sociedade insoluvelmente ignorante no tocante à escolha do seu melhor fim? Se sim, o autocrata, enquanto membro da sociedade, não seria demasiadamente ignorante tanto quanto um homem comum no que tange à eleição da finalidade à qual a sociedade deve orientar-se?

Cabe pensar acerca destas indagações.

Resumo das Contribuições Teoréticas de F. A. Hayek à Economia e à Ciência Política

O homem é essencialmente dotado de uma criatividade inigualável, com a qual sempre esteve a transpor os obstáculos da natureza rumando a uma crescente satisfação material mediante a transformação propositada das suas condições presentes em prol de condições futuras melhores.

O homem atribui subjetivamente à sua vida uma dada finalidade, a partir da análise prática da qual infere o grau de efetividade que tem o emprego de certos meios ao alcance do estado de coisas que considera situacionalmente mais satisfatório. A função empresarial de um homem, enquanto forma visível da vontade particular deste, configura substancialmente o uso dos meios ex ante considerados comparavelmente mais efetivos à consecução da finalidade que ao seu vigor delegou. No entanto, o conjunto de informações necessário à descoberta dos meios comparativamente mais efetivos à consecução dos fins particulares do homem é de caráter tácito, disperso e alterável, no sentido de que a sabedoria do homem acerca das suas potencialidades não é inata ao mesmo, porém cada dia da sua vida tende a acrescer a ele saberes práticos multiplamente, sempre determinantes ao conhecimento das suas potencialidades.

Por essa razão, podemos asseverar que os preços, na economia, jamais serão fixos, posto que são originais de relações de troca sujeitas à particularidade dos agentes que as praticam. Obviamente, a extensa rede de relações de troca que constitui fundamentalmente o fator originador dos preços dos objetos (meios), na economia, é variável, já que o homem, por não ser comportamentalmente numênico, abstrai, sempre particularmente, da sua vivência prática cotidiana uma série extensível e não inalterável de conhecimentos modificadores das suas ações; o que implica que a natureza comportamental do homem não é passível de universalização, já que as potencialidades do homem relativamente às suas finalidades  não são metafisicamente dadas ou inatas, porém extremamente particulares.

Do esclarecimento do fato de que a natureza comportamental do homem relativamente ao seu fim não é generalizável, deduz-se disso a impossibilidade de todo e qualquer planejamento central, especialmente de um baseado em dados econômicos históricos. Pois, ora, seria absolutamente não razoável supor que o homem não difere comportamentalmente dos demais em função da sua particularidade enquanto agente, já que o homem é, sempre, temporalmente distinto (e essa questão está intimamente relacionada ao motivo de a Escola Austríaca rechaçar o emprego de métodos estatísticos e econométricos para o estabelecimento de princípios gerais e de relações econômicas constantemente operantes, uma vez que o homem, enquanto ator, é inconstante e age de modo particular, o que implica que, sendo as relações econômicas determinadas pelas inter-ações  de inúmeros indivíduos, e sendo tais inúmeros indivíduos comportamentalmente particulares, não pode-se extrair da coleta dos dados relativos à historicidade dessas relações princípios gerais universalmente válidos, posto que os fatores que as originam não somente são, com frequência, não identificáveis, mas extremamente particulares (inconstantes)).

Supor o homem como um ser comportamentalmente numênico certamente há de trazernos dificuldades, especialmente as relativas ao suposto elemento condicionante do planejamento central: o conhecimento absolutissimamente infalibilíssimo do “grande economista da sociedade” (noutros termos, o autocrata). Mais exemplarmente, no meu artigo Sobre a Superioridade Teórico-metodológica da Escola Austríaca, friso:

“Muitos argumentos econômicos, especialmente os de natureza econométrica, típicos da corrente intelectual econômica dominante, são equivocados não por serem supostamente superficiais, mas porque são construídos por intermédio de métodos analíticos não respeitáveis ao caráter ontologicamente mais substantivo do objeto de estudo da ciência econômica e das ciências sociais: o agente homem.

[…]

Carl Menger publicou, no século XIX, Investigations into the Methods of the Social Sciences no qual verificava brilhantemente que os métodos experimentais das ciências naturais eram completamente inadequados à economia, já que esta tem por objeto de estudo o homem enquanto agente, dotado de preferências espacial e temporalmente

distintas e inconstantes. Isto é, Menger frisava que a experimentação é totalmente cabível ao conhecimento da natureza dos constituintes orgânicos da matéria, uma vez que a mesma é imutável no tempo e no espaço, o que, porém, não é o caso do homem enquanto agente detentor de preferências casuais, extremamente particulares e inconstantes. Presume-me, em decorrência disso, a possibilidade de se efetuar previsões detalhadas e empiricamente verificáveis acerca de eventos futuros relativamente à água, por exemplo, já que também se presume a sua inalterabilidade espacial-temporal. Porém, o que dizer das preferências humanas? O que dizer das preferências dos australianos, dos mexicanos, dos espanhóis, dos russos, dos peruanos? Elas são constantes? Se algum economista registra estatisticamente, na

Nova Zelândia, uma queda de 40% no consumo de geladeiras após um aumento de 79,41% na oferta monetária, o mesmo economista poderá supor logicamente disso que o fator causal que estimulou tal queda no consumo de geladeiras na Nova Zelândia será conservado no Brasil? Pode tal economista supor que tal queda será constante? Pode tal economista supor que se a oferta monetária aumentasse apenas 50% a queda no consumo de geladeiras seria de apenas 25,18% em função da proporção anteriormente averiguada? São as preferências humanas inalteráveis? São previsíveis? O uso de experimentações, nas ciências sociais e econômicas, não seria efetivamente nada mais que uma forma rechaçável e redondamente irracional de ciganismo metodológico? Além disso, se o economista pode possivelmente prever que certa porção de dada população agirá de determinada maneira, por que não poderia prever a ação de cada pessoa individualmente? Se o economista pode prever, por exemplo, as escolhas de um grande número de pessoas relativamente ao consumo, o que efetivamente o impediria de ler a mão de um indivíduo e esclarecer o seu futuro ao mesmo? Seria isto científico?

Podemos derivar leis físico-químicas constantemente imperantes da água (H2O), por exemplo, por ser, se puro, um elemento químico cujas propriedades são imutáveis e constantes. Se algum químico efetuar um experimento relativamente à água e apontar resultados não compatíveis com os que apontou outro químico no mesmo experimento, sabe-se de antemão que um dos dois químicos se equivocou, ou por ter descrevido incorretamente o experimento efetuado não notando todas as variáveis atuantes, ou por não ter descrevido muito corretamente os resultados totais obtidos. Mas, perante isso, como identificar todas as variáveis atuantes na decisão de uma pessoa? Como poder asseverar incontestavelmente que tais variáveis não são inconstantes?”

Da suposição do homem como um ser comportamentalmente numênico emana a ânsia do autocrata de organizar coativamente a sociedade, alegadamente de modo a adequá-la à sua essência, à sua forma mais acabada, implicitamente presumindo poder abstrair as potencialidades particulares de cada indivíduo e, conseguintemente, a forma mais fundamental da realização dos desígnios últimos – ontologicamente definíveis, supõe-se – de todos os membros da sociedade.

Sobre isto, no mesmo artigo, está escrito:

Quanto à invalidação da econometria estatística, temos algo a esclarecer. Não é correto afirmar que a Escola Austríaca rechaça intransigentemente a utilização de estatísticas. A Escola Austríaca admite que elas são extremamente úteis à elucidação de dados históricos relativamente à economia de uma nação ou ao marketing empresarial, entretanto é evidente que são completamente inaptas ao estabelecimento de teorias econômicas gerais. Os dados estatísticos descrevem exclusivamente uma situação singular num tempo e lugar específicos na qual diversos indivíduos atuaram intersubjetivamente de modo que cada faceta do resultado visível dessas ações e interações corresponde a um dado estatístico, necessariamente inconstante já que os indivíduos agem geralmente de maneira não prognosticável ou previsível. Além disso, cabe notar que não se pode isolar os fenômenos econômicos. Como poder isolar inúmeros indivíduos para analisá-los? Como mantê-los inalteráveis de forma que sejam constantes as inumeráveis variáveis que os fazem valorar e agir? Como?!

Os dados estatísticos, portanto, carecem substantivamente de capacidades preditivas porque as circunstâncias conjunturais que descrevem e as valorações dos indivíduos acerca destas circunstâncias mesmas modificam-se continuamente. Ao contrário das ciências naturais, não podemos assumir em matéria econômica uma uniformidade invariável na concatenação e na sucessão dos fenômenos econômicos. Por essa razão, os modelos econométricos fundados em dados estatísticos são descartados teoricamente pelos economistas austríacos.

[…]

Em muitas ocasiões encontramos modelos econômicos procedentes de estatísticas ou de formalismos matemáticos que, teoricamente, são ilógicos, e que, preocupantemente, não possuem implicações apenas teoréticas, porém, também, políticas e legais, já que tratam a economia meramente como um jogo de experimentos de prova e erro.

Quantas milhões de pessoas foram mortas pelos planificadores que, por arrogância fatal, como diria Hayek, testaram na economia os seus modelos de miséria ignorantemente à natureza da ação humana?

Muitos “economistas” reduzem a ação humana a um emaranhado tacanho de equações convenientemente propondo como solução aos dilemas econômicos uma distopia totalitária que cada vez [mais] se mostra como uma.

Em razão disso, diz-se que a suposição do homem como um ser de comportamento ontologicamente invariável (numênico, nesse sentido) constitui o preâmbulo do socialismo – sistema do planejamento central.

Jesus Huerta de Soto, em Socialismo, Cálculo Econômico e Função Empresarial, definiu socialismo, assim, como “[…] toda coerção ou agressão sistemática ou institucional que reprime o livre exercício da função empresarial em uma determinada área social e que é exercida por um órgão planejador que se encarga das tarefas necessárias à coordenação social nessa área.”. À vista disso, novamente, como funcionará o socialismo sendo absolutamente impossível ao “órgão planejador” coordenar a sociedade em função de não poder ter por guia um elemento numênico-ontológico comum a todo comportamento humano, já que é o homem um ser extremamente particular enquanto agente?

A fim de explicar-se mais sucintamente, Soto reduz esse tema a quatro dificuldades fundamentais, sobre as quais Hayek dissertou em Direito, Legislação e Liberdade e em Fundamentos da Liberdade:

  1. Da quantidade praticamente incomensurável de informações a serem processadas pelo planejador central.
  2. Do caráter tácito, intransferível e não objetivo do conhecimento prático do homem.
  3. Da transformação quase ininterrupta das informações relativamente às valorações individuais e às conjunturas sociais que destas decorrem.
  4. Dos obstáculos gerados pela coação central ao processo praxeológico de adequação de um estado de coisas insatisfatório a um estado de coisas satisfatório.

E o planejador central – autocrata – que almejar estabilizar-se deve inexoravelmente superálas.

Acerca da dificuldade (1) podemos asseverar muito corretamente que é inegável o alto nível das adversidades metodológicas inerentes à coleta de um grupo praticamente imensurável de informações. Suponhamos que o planejador central, com a finalidade de suplantar as necessidades comparativamente mais relevantes – importantes – da sociedade, interrogasse todos os indivíduos no tocante aos seus desejos e à importância relativa que a consecução de tais desejos possui à sociedade, por uma perspectiva teleológica (ignorando o fato de que é absolutamente impossível ao planejador central poder saber o fim ao qual a sociedade deve inexoravelmente direcionar-se). Ora, pode-se determinar objetivamente o grau de relevância (importância) que a consecução de um dado desejo possui à sociedade? Ademais, pode-se saber realmente quais são os desejos genuínos dos indivíduos mediante a efetuação de um mero interrogatório (dificuldade (2))? Além do mais, como saber se tais desejos o serão permanentemente? Isto é, como saber o ponto no qual os desejos individuais verificados cederão espaço a um montante de outros ainda não sabido? Esta indagação expressa mais que claramente a dificuldade (3). Quanto à dificuldade (4), Mises, em Socialismo, tem algo a dizer:

“Onde o mercado é ausente não se pode formar preços, e sem formação de preços não há cálculo econômico.

O paradoxo da “planificação” está em que, ao impossibilitar o cálculo econômico, impede qualquer planejamento.

A chamada “economia planificada” pode ser tudo, menos economia. É impossível que nela se averigue quais, dentre os múltiplos meios, são os mais idôneos ao alcance dos objetivos desejados.”

Um exemplo seguramente ilustrará.

Suponhamos que dado estado promulgue a nacionalização total da produção e da distribuição de leite, por ser um bem de propriedades utilitariamente sobremaneira essenciais, julga.

Ocorre que o montante de informações necessário a uma alocação racional e utilitária do leite e dos seus fatores de produção é gigantesco, de modo que a impossibilita completamente, já que o planejador central, presume-se, deveria analisar conjuntura por conjuntura, interrogando todos os indivíduos da sociedade acerca das suas finalidades relativas ao uso do leite de modo a atribuir à consecução de cada uma (por um critério totalmente arbitrário, obviamente) um grau supostamente objetivo de importância social, a partir da qual julgaria quais as finalidades são merecedoras de consecução e quais não são merecedoras de consecução.

 

 

Ademais, a demanda de leite se modifica continuamente. Por essa razão, o planejador central necessitaria irrevogavelmente de parâmetros pelos quais pudesse averiguar as variações temporais e espaciais da demanda e, não podendo ter como parâmetros os catalácticos, é muitissimamente provável que recorreria a métodos analíticos improfícuos e rudimentares, o que inviabilizaria a alocação mais eficaz dos recursos. Além de tudo, o planejador central, ao monopolizar coercitivamente a produção e a distribuição de leite, impede que os indivíduos na sociedade usufruem dos seus saberes relativamente às variações temporais e espaciais da demanda de leite, sendo, então, o nível de eficácia da produção e da distribuição do leite, sob o socialismo, limitado ao conhecimento do planejador central, sempre inferior com referência ao conhecimento de todos os componentes da sociedade.

Adicionalmente, como o estado bloqueia violentamente ao indivíduo o usufruto livre dos seus conhecimentos relativamente às formas momentaneamente mais eficazes de alocação dos bens econômicos, tais conhecimentos passarão a ser, aos indivíduos, inaproveitáveis seletivamente, o que naturalmente os motivará a atribuir ao planejador central o suposto dever de saber absolutamente tudo acerca do estado das necessidades coletivas da população em detrimento da geração descentralizada de conhecimento; isto é, ao curso do tempo, os indivíduos, por consequência dos bloqueios estatais postos proibitivamente à fruição livre e utilitária dos seus saberes relativos ao estado, sempre temporalmente e especialmente variável, das necessidades diversas dos seus concidadãos, irão gradativamente desaprender o modo pelo qual podem prosperar pacificamente (acrescendo à vida dos seus irmãos o valor concernente à suplantação das suas necessidades, do qual extrairão as suas remunerações, através das quais poderão florescer enquanto homens, suprindo as suas necessidades pessoais e alcançando os seus objetivos particulares com consistência) e, conseguintemente, passarão a favorecer a nutrição das suas habilidades civilmente mais retrógradas (i. e., as que dizem respeito à mentira, à demagogia e à manipulação) de modo a extrair do uso dos meios tributários

(expropriatórios) os recursos com os quais se sustentarão, ao invés de extrai-los do uso dos meios comerciais (voluntários/cooperativos), o que implica que a gestão central da coordenação social, necessariamente procedente da monopolização estatal das ações pela consecução das quais a sociedade se fundamenta com solidez, não produz somente uma miséria econômica, mas civilizacional e moral.

H.H. Hoppe, em Democracia – O Deus que Falhou, sobre a degradação civilizatória decorrente do planejamento central de estilo democrático (democracia (uma variante popular do socialismo/comunismo)), diz:

“Em todas as sociedades, sendo a humanidade o que ela é, sempre existem indivíduos que cobiçam a propriedade de outros. Algumas pessoas são mais atingidas por esse sentimento do que outras; mas elas normalmente aprendem a não agir de acordo com tal sentimento – ou até mesmo chegam a se sentir envergonhadas por possuí-lo. Em geral, apenas alguns indivíduos não conseguem suprimir os seus desejos pelas propriedades dos outros; e eles são tratados como criminosos pelos seus semelhantes, sendo reprimidos através do castigo físico. Sob o governo monárquico, apenas uma única pessoa – o príncipe – pode agir movida pelo seu desejo de tomar a propriedade de outro homem; e é isso que faz dela uma ameaça em potencial, um “mal”. Entretanto, além dos desincentivos econômicos e lógicos já delineados, o príncipe também é restringido em seus desejos redistributivos pela circunstância de que todos os membros da sociedade aprenderam a considerar a tomada à força e a redistribuição da propriedade de um outro homem como atos vergonhosos e imorais; portanto, de acordo com isso, eles veem cada ação do príncipe com a maior suspeita. Em distinto contraste, com a liberdade de entrada no governo, qualquer pessoa tem o direito de expressar abertamente o seu desejo pelas propriedades dos demais. O que era anteriormente considerado imoral (e, em função disso, reprimido) é atualmente considerado um sentimento legítimo. Na medida em que recorram à democracia, todos podem abertamente cobiçar as propriedades de todos os outros; e, desde que se obtenha o ingresso no governo, todos podem agir movidos pelos seus desejos pelas propriedades dos demais. Assim, sob a democracia, todos se tornam uma ameaça.

Então, sob condições democráticas, o desejo popular – e também imoral e antissocial – pelas propriedades dos outros homens é sistematicamente reforçado. Toda demanda é legítima se for expressa publicamente sob a proteção especial da “liberdade de expressão”. Tudo pode ser dito, reivindicado e alegado; e tudo pode ser obtido. Nem até mesmo o direito de propriedade privada aparentemente mais seguro e garantido está imune das demandas redistributivas. Pior ainda: submetidos a eleições de massa, aqueles membros da sociedade com pouca ou nenhuma inibição moral contra o roubo da propriedade de outrem – os amoralistas habituais que são os mais talentosos em reunir maiorias de uma multitude de demandas populares moralmente desinibidas e mutuamente incompatíveis; enfim, os eficientes demagogos – tendem a obter o ingresso no governo e a subir ao topo da hierarquia governamental. Assim, uma situação ruim torna-se ainda pior.

Historicamente, a seleção do príncipe acontecia por intermédio da casualidade do seu nobre nascimento; e a sua única qualificação pessoal era a sua educação e a sua criação voltadas para torná-lo um futuro regente, um preservador da dinastia (do seu status e das suas posses). Isso, obviamente, não assegurava que o futuro rei não seria mau e perigoso. No entanto, vale a pena lembrar que todo príncipe que falhou em seu dever de preservar a dinastia – que destruiu ou arruinou o país; que provocou agitação civil, tumulto e discórdia; ou que, de qualquer outra forma, colocou em perigo a posição da dinastia – enfrentou o risco imediato de ser neutralizado ou assassinado por um outro membro da sua própria família. Em todo caso, contudo, mesmo que a casualidade do seu nascimento e a sua educação não pudessem impedir que um príncipe se tornasse mau e perigoso, ao mesmo tempo a casualidade de um nobre nascimento e a educação principesca não impediam que ele pudesse se tornar um diletante inofensivo ou até mesmo uma pessoa boa, decente e moral. Em contraste, a seleção dos governantes através de eleições populares faz com que seja praticamente impossível que qualquer pessoa boa ou inofensiva possa ascender ao topo. Os primeiros-ministros e os presidentes são selecionados graças à sua comprovada eficiência como demagogos moralmente desinibidos. Assim, a democracia praticamente assegura que somente indivíduos maus e perigosos alcançarão o topo da hierarquia governamental; na verdade, em decorrência da livre concorrência política, aqueles que ascendem se tornarão cada vez mais indivíduos ruins e perigosos; e, na condição de zeladores temporários e intercambiáveis, eles só raramente serão assassinados.”

Acrescenta:

“Paralelamente a essa evolução do estado de coisas, haverá um crescimento gradual – mas constante – da criminalidade e do comportamento criminoso. Sob auspícios monopolísticos, a lei invariavelmente se transformará em legislação. Em consequência de um interminável processo de redistribuição de renda e de riqueza em nome da justiça racial, social e/ou sexual, a própria ideia da justiça como princípios universais e imutáveis de conduta e de cooperação será corroída e finalmente destruída. Ao invés de ser considerada algo pré-existente (algo, portanto, a ser descoberto), a lei é cada vez mais considerada legislação governamental. Assim, não só se agrava a insegurança jurídica, mas também, em resposta a isso, aumenta a taxa social de preferência temporal – i.e., as pessoas, em geral, se tornarão mais orientadas para o presente, promovendo um horizonte de planejamento cada vez mais curto (visão de curto prazo). O relativismo moral também será promovido – pois, se não existe um padrão absoluto (firme, imutável, constante) do que é certo, então, da mesma forma, não há um padrão absoluto do que é errado. Na verdade, o que se considera certo hoje pode ser considerado errado amanhã – e vice-versa. Portanto, as preferências temporais crescentes, em conjunto com o relativismo moral, fornecem o terreno fértil perfeito para os criminosos e os crimes – uma tendência particularmente evidente nas grandes cidades. É nelas que a dissolução familiar encontra-se mais avançada; que existe a maior concentração de destinatários do assistencialismo; que o processo de empobrecimento genético se revela mais adiantado; e que as tensões raciais e tribais em decorrência da integração forçada se mostram mais virulentas. Ao invés de serem centros de civilização, as cidades tornaram-se centros de desintegração social e sarjetas de decadência moral, de corrupção, de brutalidade e de crime.”

E, brilhantemente, sintetiza:

“Além disso, em função de a Constituição explicitamente conceder a “livre entrada” no estado/governo – qualquer pessoa pode se tornar um membro do Congresso, um juiz do Supremo Tribunal ou o presidente –, foi diminuída a resistência contra as invasões de propriedade pelo estado; e, como resultado da “livre competição política”, toda a estrutura moral da sociedade foi distorcida, e mais e mais indivíduos maus ascenderam ao topo. Pois liberdade de entrada e livre competição nem sempre são coisas boas. Liberdade de entrada e livre concorrência na produção de bens é algo positivo, mas livre concorrência na produção de males é algo negativo. Por exemplo, liberdade de entrada no ramo de assassinatos, de roubos, de falsificações e de mentiras não é algo bom; é algo pior do que ruim. Entretanto, é exatamente isso que é instituído pela livre competição política, i.e., pela democracia.

Em todas as sociedades, existem pessoas que cobiçam a propriedade de outros; mas elas, na maioria dos casos, normalmente aprendem a não agir de acordo com tal sentimento – ou até mesmo chegam a se sentir envergonhadas por possuí-lo. Em uma sociedade anarcocapitalista em particular, qualquer indivíduo que aja movido por esse desejo é considerado um criminoso e é reprimido com o uso da violência física. Em um governo monárquico, pelo contrário, apenas uma única pessoa – o rei – pode agir movida pelo seu desejo de tomar a propriedade de outro homem; e é isso que faz dela uma ameaça em potencial. Porém, já que só ele pode expropriar, enquanto todos os outros estão proibidos de proceder da mesma forma, cada ação do rei será vista com a maior suspeita. Adicionalmente, a seleção de um soberano se dá em decorrência do acaso de este ter nascido na nobreza. A sua única qualificação pessoal é a sua educação e a sua criação voltadas para torná-lo um futuro regente, um preservador da dinastia e das suas posses. Isso, obviamente, não assegura que o futuro rei não será mau e perigoso. Todavia, ao mesmo tempo, isso não impede que ele venha a se tornar um inofensivo indivíduo medíocre ou até mesmo uma pessoa decente, boa e moral.

Em distinto contraste, ao promover a liberdade de entrada no governo, a Constituição permitiu a todos expressarem abertamente o seu desejo pela propriedade de outro homem; na verdade, devido à garantia constitucional da “liberdade de expressão”, todo mundo é protegido ao fazer isso. Ademais, qualquer pessoa está autorizada a agir movida por esse desejo, desde que obtenha entrada no governo; por esse motivo, nos termos da Constituição, todos se tornam uma ameaça em potencial.

Com certeza, existem pessoas que não são afetadas pelo desejo de enriquecer à custa dos outros e de mandar neles; i.e., há indivíduos que querem apenas trabalhar, produzir e gozar os frutos do seu trabalho. Porém, se a política – a aquisição de bens pelos meios políticos (tributação e legislação) – é permitida, até mesmo essas inofensivas pessoas serão profundamente afetadas. A fim de se defenderem de ataques à sua liberdade e à sua propriedade por aqueles que têm menos inibições morais, até mesmo essas pessoas honestas e trabalhadoras devem tornar-se “animais políticos” e gastar cada vez mais tempo e energia desenvolvendo as suas capacidades políticas. Tendo em conta que os talentos e as características necessários para o sucesso político – boa aparência, sociabilidade, oratória, carisma, entre outros – são distribuídos desigualmente entre os homens, então aqueles que possuem esses atributos especiais e essas habilidades específicas terão uma boa vantagem na competição por recursos escassos (sucesso econômico) quando comparados com aqueles que não os têm.

Pior ainda: uma vez que em cada sociedade existem mais “pobres” (“não possuidores”, “os que não têm”), que não possuem os bens que vale a pena possuir, do que “ricos” (“possuidores”, “os que não têm”), os politicamente talentosos, que têm pouca ou nenhuma inibição contra tomar a propriedade alheia e mandar nos outros, possuem uma clara vantagem sobre aqueles que têm tais escrúpulos. Ou seja, a livre competição política favorece os talentos políticos agressivos (portanto, perigosos) em vez dos defensivos (portanto, inofensivos), conduzindo, assim, ao cultivo e à perfeição das peculiares habilidades da demagogia, da fraude, da mentira, do oportunismo, da corrupção e do suborno. Em consequência disso, a entrada e o sucesso no governo se tornarão cada vez mais impossíveis para qualquer pessoa que tenha inibições morais contra os atos de mentir e roubar. Então, ao contrário dos reis, os congressistas, os presidentes e os juízes do Supremo Tribunal não adquirem – aliás, nem podem adquirir – as suas posições acidentalmente (por acaso). Ao invés disso, eles atingem as suas posições graças à sua competência em serem demagogos moralmente desinibidos. Além disso, mesmo fora da órbita do governo, no seio da sociedade civil, os indivíduos cada vez mais subirão ao topo do sucesso econômico e financeiro não por conta dos seus talentos produtivos ou empreendedores ou até mesmo dos seus superiores talentos políticos defensivos, mas sim por conta da sua habilidade superior como inescrupulosos empresários políticos e lobistas. Assim, a Constituição praticamente assegura que apenas homens perigosos alcançarão o pináculo do poder governamental e que o comportamento moral e os padrões éticos tenderão a diminuir e a deteriorar-se em todo lugar.”

Que percebamos, idem, o que houve na União Soviética! Inequivocamente, a forma mais pura do planejamento central foi o chamado Comunismo de Guerra, que durou de 1918 a 1921 na Rússia Soviética de V. Lenin, e foi marcado pela socialização de todos os meios (fatores) de produção e pela abolição do mercado e, em consequência, do sistema de preços. Lenin, frente à instauração do seu regime, disse:

“O trabalho está organizado na Rússia à maneira comunista, porquanto, primeiro, está abolida a propriedade privada sobre os meios de produção, e, segundo, o poder proletário do estado gerencia em escala nacional a grande produção nas terras e nas suas empresas, e distribui a mão-de-obra entre os diferentes ramos da economia e, entre os trabalhadores, distribui imensas quantidades de artigos de consumo pertencentes ao coletivo governamental.”.

O que ocorreu na Rússia de Lenin após a instauração da política regencial deste?  Uma queda da produção sem precedentes históricos e uma crise econômica inominável que chegou a produzir cinco milhões de mortos no evento da Grande Fome de 1921. Assim, o fracasso do tipo mais radical do planejamento central – socialismo – mostrou-se tão visibilissimamente que Lenin resolveu por incluir no seu sistema elementos políticos tipicamente capitalistas ao decorrer da sua Nova Política Econômica (NEP), o que trouxe problemas a ele enquanto demagogo.

Isto certamente há de nos fazer refletir acerca de o que Hayek chamou de “a fatal arrogância” do planejador central de presumir poder dirigir a sociedade como se deus fosse.

Os argumentos contrários à sustentabilidade do socialismo são notoriamente contundentes. Portanto, o planejamento central é, deduz-se, impossível.

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