O Frei Carlos Josaphat, doutor em teologia, sustenta a controversa ideia de que quanto menos religiosa for uma sociedade mais moralista ela se torna. Com a crescente estatização das instituições e das pessoas em detrimento da espiritualidade essa teoria parece cativar credibilidade.
Para desenvolver esse conceito, primeiro, temos que tratar da semântica clarificando algumas palavras. O moralismo, em curtas palavras, significa definir princípios elevados para uma sociedade, mas que se tornam inconsistentes à medida que ao praticá-los fica claro que outros princípios são ignorados, ou que seus próprios mandatários não o obedecem ou que a complexidade e a particularidade de cada situação não são levadas em conta. E uma sociedade religiosa na visão do supracitado padre é aquela que consegue manter, através das suas gerações, um contato íntimo com a sua mitologia fundadora e, assim, é capaz de entender e assimilar a moral contida nessas histórias e colocá-las em prática em sua vivência atual.
Pode-se entender o moralismo como uma reação gerada pela vontade de solucionar um problema genuíno que gera caos para uma sociedade. É difícil não se comover ao presenciar um alcoólatra perder dinheiro, família e dignidade ou ao ouvir a história de uma criança que cresceu com os pais separados. Contudo, proibir o álcool ou o divórcio ou apenas o ato em si de menosprezar pessoas que bebem ou são divorciadas apenas gerou um estado mais caótico.
As consequências de se viver num mundo que deu lugar a escravidão, campos de concentração e toda sorte de atrocidades e que não as superou e ainda as perpétua só pode ser a total descrença na humanidade. Surpreendido e impotente a cada noticia que lê no jornal o homem vai perdendo sua fé em tudo que é humano. É um caminho de frustração que é naturalmente traçado pela maioria das pessoas que lidam cada um a sua maneira.
Sobretudo, para o jovem pós-moderno nascido sob um estado inchado e que se propõe a solucionar todos os seus problemas econômicos e sociais a situação se agrava. Na época em que a tecnologia avança exponencialmente juntamente com as ambições do estado para tratar a crueldade humana o jovem é, cada vez mais, imediatista. É impensável, para ele, que sendo moderno e, mais ainda, sendo pós- moderno ele e a sociedade não tenham sido melhorados em relação aos seus antepassados como acontece com o seu computador ou seu celular. É um choque se enxergar como um artefato ultrapassado do qual a bíblia, um livro de 2 mil anos, ainda possa servir como o manual de instruções. Ele sente vergonha de ser falho e inveja a perfeição das máquinas.
Dentro de um governo que trata tudo de forma coletiva, essa visão se substância mais contra os outros do que internamente no próprio indivíduo. As pessoas tem um ressentimento contra a humanidade que é valido dada a tragicidade da vida, contudo esse sentimento pode se consumar em ódio pela própria espécie.
Esse ódio sintetizado ao imediatismo da era moderna gera efeitos nefastos: Jovens impacientes que não sabem lidar com a frustração do mundo porque foram prometidos muito mais das pessoas e do governo. E basta uma faísca, como sofrer bullying ou presenciar qualquer princípio de malevolência para sua raiva aflorar. Os Mass shootings que, a cada ano, ficam mais comuns são os reflexos extremos desse sentimento. É possível encontrá-lo em uma carta deixada pelos dois jovens autores do massacre na escola de Columbine:
‘’A raça humana não merece que lutemos por ela, apenas que a matemos. Devolva a Terra aos animais. Eles a merecem infinitamente mais do que nós. Nada tem mais significado algum. Se você relembrar a história, os nazistas criaram a “solução final” para o problema judeu… Matem-nos todos. Bem, caso não tenha entendido, eu digo: “MATE A HUMANIDADE.” Ninguém deve sobreviver. ’’
Em escala menor podemos verificar o mesmo sentimento enraivecido na fala da jovem ativista ambiental Greta Thunberg durante um discurso da ONU do qual ela amaldiçoa toda a humanidade por roubar os sonhos dela. Ou então ouvir um ex-presidente ser grato a um vírus que gerou morte e pobreza nunca antes vistas em gerações, porque, segundo ele essa pandemia está punindo as pessoas que acreditam que podem viver fora do cabresto do estado.
Na obra prima da literatura alemã ‘’Fausto: Uma tragédia’’ o escritor Johann Wolfgang Von Goethe define Mefistófeles, um demônio, como um ser que compartilha desse mesmo desgosto com a humanidade:
Eu sou o espírito que sempre nega!
E com razão; pois tudo que existe
Merece ser destruído.
E, portanto, melhor fora que nada existisse.
Assim, tudo que chamas pecado,
Ruína, para ser breve, o Mal
É o meu específico e próprio elemento.
Apesar de muitas pessoas pensarem como Mefistófeles quando experimentam injustiças, tragédias ou são vítimas de maquinações, poucas irão recorrer a atitudes drásticas contra alma como o suicídio ou a violência deliberada contra outros.
Entretanto, muitos irão derramar sua misantropia através do jogo político. O moralismo pode ser identificado, por exemplo, quando se impõe o politicamente correto, a repressão a livre expressão e se criminaliza qualquer pensamento que corra fora da cartilha pré-estabelecida. Tudo que for dito que seja minimamente diferente do que os jacobinos modernos querem ouvir te transformam no pior dos genocidas. Isso acontece porque as pessoas querem projetar em alguém a raiz da frustração que sentem pela humanidade sem parecerem monstros, anseiam por um ódio validado institucionalmente que os permita expurgar arbitrariamente pessoas pelos crimes humanos. Então elas precisam que alguém incorra em um desatino, seja no discurso ou na atitude e, assim, possam ser classificados como machistas, homofóbicos, racistas, fascistas, comunistas entre outras características abjetas. E uma vez que essa pessoa está catalogada em uma dessas categorias, finalmente o moralista tem a permissão social de se chafurdar nas falhas de sua vítima e utilizá-la como bode expiatório para seu dissimulado desejo de vingança contra a sociedade.
Não é raro encontrar pessoas que se nomeiam como pacifistas aplaudindo uma agressão (pode ser uma facada) contra uma pessoa que a antagoniza politicamente e que, por consequência, ela o classifica como inimigo. Esse mesmo indivíduo pode invocar com volúpia o mantra fogo nos racistas e achar justo queimar carros ou invadir lojas por uma causa nobre. E se caso outro par o pedir prudência ou se mantiver neutro ele o enxergará como um ser alienado e, no mínimo, dará inicio a uma verborragia professoral e arrogante.
A realidade é que boa parte da sociedade não quer, de fato, resolver mazelas porque isso demanda uma genialidade e um esforço que poucos apresentam, apenas querem incendiar o mundo porque elas, internamente, ojerizam a raça humana. A paciência da sociedade para falhas humanas parece ter se esgotado e com a devida razão. No entanto não vai ser obliterando pessoas ou propriedades e se apaixonando por narrativas políticas que os paradigmas serão alterados, isso só ocasiona um cenário ainda mais caótico.
Os demônios também podem ser lidos como indivíduos ‘’iluminados’’ (Lúcifer significa o portador da luz), já que também são anjos, só que caídos e apenas se contrastam com os que habitam o paraíso por não acreditarem na humanidade. São entidades que torcem e se nutrem das falhas humanas desde o pecado original no jardim do éden.
É preciso se atentar sobre o fato do inferno ser uma criação muito mais pessoal do que se imagina. Dante Alighieri ao arquitetar o inferno na sua obra ‘’A Divina Comédia’’ alojou todas as características das pessoas que ele intimamente desgostava nos nove círculos do seu inferno. A sociedade ao rotular, cancelar, criminalizar ou se achar no direito de menosprezar ou agredir alguém moralmente inferior produz seu próprio inferno terreno e se desconexa diametralmente com seu objetivo primário que estava ligado a tornar a terra um paraíso.
Porventura, uma pista para esse impasse moralista pode estar contido na nossa literatura ocidental visto que o Deus bíblico pode ter vivenciado algo semelhante. Ao analisar o Deus sanguinário do primeiro testamento fica óbvia a frustração que sua criação pecadora engendra nele. Mesmo sendo onipotente e amando os homens, ele também teve sua fé na humanidade abalada e tentou recuperá-la fazendo uso da destruição, ao evocar o dilúvio ou ao destruir Sodoma e Gomorra. Mas foi no segundo testamento, ao se lançar entre os homens como Jesus e sentir na própria pele toda a insalubre e perniciosa humanidade que ele pôde refletir melhor. O caminho não era tentar mudar o planeta inteiro como ele sempre buscava, o respeito e o amor só poderia ser visto e exercido em pequena escala, no individual e no particular. A humanidade como um todo o crucificou, mas sua família, os seus discípulos e os ambientes que ele ocupou mudaram pra sempre, e para Deus foi o suficiente para formar uma aliança mais fraternal e compassiva com sua criação. Talvez a fé aponte o caminho, antes de querer mudar o mundo precisamos arrumar o nosso quarto.
A única entidade que ainda se arroga na proposta obsoleta e insana de mudar o planeta antes de si mesmo é o estado. Uma instituição racista, corrupta, imoral, que exerce roubo deliberado e que ao mesmo tempo toma pra si o protagonismo de liderar o caminho da virtude. Contaminada por essa visão institucional, a sociedade estatizada segue o mesmo modelo. A pessoa deseja mais amor e respeito na sociedade, mas fala grosso com a própria mãe. Deseja o fim do racismo, mas exerce atos de violência à custa de minorias. O indivíduo, entorpecido pelo devaneio democrático, prioriza os problemas coletivos em relação as suas questões mais particulares e se frustra por se ver tão impotente diante de um planeta tão hostil, ressentido ele se torna uma pessoa mais amarga e violenta com seus próximos e, assim, alimenta esse círculo vicioso que só tem serventia para eleger políticos que se nutrem desse frenesi.
A realidade é que se faz necessário refletir sobre as raízes das ações que tomamos. Serão elas pautadas na autêntica vontade de mudança ou apenas no natural e até terrivelmente compreensível descrença pela humanidade? Você é realmente antifascista ou apenas anti-humano? Corre-se um grande risco de estarmos administrando nosso próprio inferno e guilhotinando cabeças através do nosso moralismo mequetrefe. É de se pensar desse modo porque Mefistófeles, certamente, também brada ‘’fogo nos racistas’’ enquanto tortura suas vítimas no tártaro.
Para mim este artigo é maravilhoso, parabéns ao autor Gabriel Didres.
Senti um cheiro de elogio a religião cristã aí, mas esse texto ficou muito bom. Permita-me uma pequena contribuição: eu já entrei, fiquei nisso durante alguns anos, na onda “buscar deus”; não o achei, mas achei seus militantes, templos etc. Já participei de toda a má sorte de cultos heréticos ou santos, mas foi nas igrejas cristãs onde mais vi moralismo e polarização política. Numa Igreja presbiteriana, fui obrigado a orar pelo prefeito bicheiro de uma cidade. Numa igreja pentecostal , oração pelo Bolsonaro ( desejo o melhor para ele e família ok) , e já vi apologia ao socialismo em uma missa. Já ouvi dizer que na Romenia você não é um verdadeiro patriota se não for cristão ortodoxo. Os conflitos naquela região da antiga Iugoslávia, tem todo um caráter étnico – RELIGIOSO. Sendo honesto, eu fico muito desconfiado quando alguém vem uma de que “god is good, church is great”; sei não rapaz.
A ideia do texto é muito boa. Poderia corrigir os erros de concordância pra ficar mais contundente.
Interessante e excelente texto. Platônico no sentido político. Se eu não fosse anarcocapitalista, eu gostaria de um estado comandado apenas por filósofos e homens comprovadamente que serviram seus semelhantes de maneira objetiva e com sucesso, e que não dependessem da política, ou seja, empresários podres de rico. Obviamente que deveríamos excluir a democracia e torce para que as elites naturais chegassem a um acordo. Isso impediria que o estado se tornasse isso que você descreveu de maneira brilhante no seu texto: uma instituição niilista e projetada para agradar niilistas vazios e amargos. IMPOSTO É ROUBO, SEJA LIBERTÁRIO.
e a expressão, Deus quis assim, é a vontade de Deus, assim fala as igrejas, é um problema, pois inicia uma rivalidade que leva a intolerância política e religiosa.