Novo coronavírus, velhas falácias; João Dória e o preço do gás de cozinha

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Acompanhando as variações para cima dos preços internacionais do petróleo, influenciadas pela proximidade do fim das medidas de combate à pandemia de Sars-Cov-2 e com o desfecho das guerras de preços entre o cartel da OPEP e a Rússia, a Petrobras anunciou na última quinta-feira, (04/06/20), o aumento de 5% no preço do gás de cozinha em suas refinarias.

Tal reajuste no preço do produtor, por sua vez, tende a colocar em risco o acordo estabelecido entre o Procon de São Paulo e o Sergás (Sindicato das Empresas Representantes de GLP da Capital e dos Municípios da Grande São Paulo).

O acordo, firmado em 13/04/20 com validade até o dia 30/07/20, limitando o preço do botijão de gás de cozinha a R$70,00[1], conforme desejo expresso do governador João Dória, que categoricamente chegou a afirmar que “o preço do botijão de gás, no limite, é de R$ 70. Não é nem R$ 71, nem R$ 72, nem R$ 80 (…)”, ignorava eventuais riscos de desabastecimento na região bem como a própria inviolabilidade do regime de liberdade de preços em vigor, garantido pela Constituição Federal e pela Lei nº 9478/97[2].

Deve-se salientar que tal medida não foi adotada sem protestos pelos revendedores. Segundo o presidente do sindicato, Robson Carneiro dos Santos, “revendedores estão sendo presos pela Polícia Civil, por causa de pequenas diferenças de preços”, e a classe chegou a ameaçar paralisar a entrega de gás na Região Metropolitana de São Paulo dia 15/04/20, mas o Proncon-SP manteve seu julgamento, e a permissão para autuação de qualquer venda acima de R$70,00 prosseguiu, com multas variando entre R$675,71 até 10 milhões de reais, de acordo com o faturamento.

Em vídeo publicado no youtube, Fernando Capez, secretário de defesa do consumidor, afirmou ser “inadmissível que alguém queira aumentar suas margens de lucro ou manter suas margens de lucro no meio desta calamidade pública”.

Esta visão do Proncon-SP, baseia-se numa legislação anterior à Constituição Federal, promulgada por Getúlio Vargas: a Lei da Economia Popular de 1951, em seu art. 4, item b, estabelece que constitui crime “obter (…) em qualquer contrato, abusando da premente necessidade, inexperiência ou leviandade de outra parte, lucro patrimonial que exceda o quinto do valor corrente ou justo da prestação feita ou prometida. ”, o que, em suma, tornava ilícito lucros acima de 20%.[3] Da mesma forma, o tabelamento do Procon também se alicerça no Código de Defesa do Consumidor, onde está vedado ao fornecedor elevar sem justa causa o preço de produtos.[4]

Mas quem será que está correto nesta celeuma? Os partidários da livre concorrência, pitoresticamente representados pelos sindicatos, ou então os interventores e justiceiros sociais, puxados por João Dória e pelo Proncon-SP, que não permitirão o “abuso” dos preços?

Primeiramente, um ponto deve ser devidamente acentuado para entendermos este mercado: apenas em março de 2020 a prática de preços diferenciados de GLP de 13 kg foi legalmente revogada no Brasil[5], o que significa que a comercialização de gás para o uso residencial, por parte das refinarias, até alguns meses atrás, podia ser efetuada a preços inferiores aos praticados para a venda aos demais usos ou de recipientes de outras capacidades.

Tal fato é reflexo de anos de intervenção federal no preço do produto. De 1954 até 1990 houve efetiva participação do governo nos preços dos derivados de petróleo, dentre os quais se inclui o GLP (Gás Liquefeito de Petróleo), atendido comumente por gás de cozinha. Os subsídios e a equalização dos preços internos, através da produtora estatal, disseminaram o produto nacionalmente ao longo desses anos, tornando-o o principal combustível para cocção residencial.

Com o início do processo de desregulamentação dos preços dos combustíveis, iniciado em meados da década de 90, o qual envolveu a liberação dos preços nas refinarias e a queda das barreiras legais à importação de combustíveis, houve, em princípio dos anos 2000, um forte aumento do preço médio de revenda de GLP, decorrente, principalmente, do fim de anos de redução dos preços nas unidades produtoras e do aumento internacional do preço do petróleo no período.

À época, a decisão do governo Lula para frear tal movimento de acréscimo nos preços não foi a de criar um ambiente melhor de negócios, tampouco de facilitar a entrada de novos agentes nos diferentes setores que compõe o preço final do produto, permitindo tempo suficiente para que se estruturassem e levassem preços mais competitivos para o mercado; durante seu governo foi aplicada uma política que, de fato, já era discutida desde 2001 e praticada desde 2002 pela Petrobras: simplesmente impor preços mais baixos para o gás de cozinha produzido no país. Assim, em novembro de 2005, foi promulgada a Resolução CNPE nº 04 com este intuito, a qual vigorou até 2020.

No gráfico abaixo, além do expressivo aumento nos preços de gás de cozinha no início dos anos 2000 descrito anteriormente, pode-se perceber como a perseguição de preços diferenciados para o botijão garantiu o poder de compra do consumidor em termos reais.

Gráfico 1 – Preço final médio ao consumidor (nominal x real) – novembro de 2001 a abril de 2020

*Referência para inflação: abril de 2020
Elaboração própria com dados da ANP e IBGE[6]

Dessa maneira, embora os preços nominais do botijão tenham se elevado entre 2001 e 2020, os preços reais verificados em grande parte do período compreendido entre 2005 e 2017, por exemplo, situaram-se abaixo dos níveis existentes em 2004, antes da publicação da Resolução CNPE nº 04/2005.

Até 2016 a política da Petrobras foi de não repassar a variação internacional dos preços de gás para os consumidores. A partir de 2017, deve-se dizer, com vistas a acompanhar as variações do produto no mercado internacional, os reajustes nos preços pela Petrobras passaram a ocorrer em intervalos menores, tornando-se, portanto, mais regulares. Em 2018, por sua vez, foi aprovada nova revisão da política de preços desta companhia, a fim de suavizar os repasses da volatilidade dos preços do mercado internacional. Assim, os reajustes tornaram-se mais longos, com reduções ou elevações muito expressivas sujeitas a autorização do Grupo Executivo de Mercado e Preços (Gemp).

O gráfico 2 a seguir também explicita as supostas consequências vantajosas do controle de preços para o consumidor.

Gráfico 2 – Quantidades compráveis de GLP de 13 kg (gás de cozinha) com o salário mínimo vigente – novembro de 2001 a abril de 2020

Elaboração própria com dados da ANP e IPEA[7]

De acordo com o gráfico acima, o número de botijões compráveis com o salário mínimo vigente tendeu a crescer praticamente até o início de 2017, quando o preço real médio do gás de cozinha enfim retornou a demonstrar tendência de crescimento, devido aos alinhamentos cada vez mais constantes com os preços internacionais.

Existem efeitos adversos na perseguição de tal política de precificação abaixo da inflação, contudo.

Não se pode esperar que uma medida dessas se mantenha indefinidamente; os custos ao produtor, com o acúmulo da inflação, não deixam de existir, na verdade eles crescem concomitantemente, até tornarem-se insustentáveis. É natural imaginar que haverá possivelmente maior oneração sobre a produção de outros combustíveis derivados do petróleo para sustentar o favorecimento ao consumo do botijão, por exemplo.[8]

Além disso, o subsídio sequer atinge os seus objetivos de beneficiar as classes menos favorecidas; como a política não é direcionada para alguma classe exclusiva, pode ser aproveitada também pelas classes de renda mais altas das áreas urbanas, ao invés de afetar apenas pobres que utilizam lenha ou carvão.

Outro fato importante de ser relatado é que, analisando a composição dos preços com o passar dos anos, apesar do preço médio do produtor de fato não ter variado por longo período, (no primeiro mandato de Lula, por exemplo, não houve reajuste algum[9]), houve relevante crescimento das margens médias por parte dos agentes das outras cadeias que formam o preço final do combustível.

De 2005 até agosto de 2015, por exemplo, o preço médio com que o GLP saía da refinaria variou apenas 0,35%; virtualmente, portanto, permaneceu o mesmo. As margens dos distribuidores e revendedores, por sua vez, cresceram 102% e 166%, respectivamente, neste período, o que demonstra como o diferencial de preços na etapa de produção do gás sequer pode garantir um repasse proporcional do benefício ao consumidor final[10], sem também uma regulação das margens das empresas intermediárias, o que configuraria um controle de preços total, ao melhor estilo soviético.

Ademais, a diferenciação dos preços também estimulou danos estruturais profundos no país; investimentos em infraestrutura portuária de importação, por exemplo, como instalações mais robustas de armazenamento e escoamento, que poderiam possivelmente representar importantes espaços para entrada de produto mais competitivo do exterior, foram completamente desestimulados, deixando o país cada vez mais à mercê dos agentes dominantes atuais, tornando paulatinamente mais difícil a instauração de um mercado competitivo.

Não é de surpreender, portanto, que a Petrobras realize 99% das importações de GLP no Brasil[11] e que poucos agentes privados ousem entrar nesse mercado, deixando de trazer investimentos e empregos para o país.

Levando tudo isto em consideração, podemos enfim nos debruçar sobre o panorama atual, onde temos a produção nacional de gás de cozinha monopolizada pela Petrobrás e a distribuição oligopolizada, com 4 companhias detendo mais de 80% do mercado brasileiro há mais de 15 anos.[12]

Detendo-se sobre o caso de São Paulo em específico, o gráfico abaixo demonstra o comportamento dos componentes do preço médio de revenda do gás de cozinha entre janeiro de 2019 e abril de 2020.

Gráfico 3 – Composição do preço final médio ao consumidor no estado de São Paulo – janeiro de 2019 a abril de 2020

Elaboração Própria com dados da ANP (http://www.anp.gov.br/precos-e-defesa-da-concorrencia/precos/precos-ao-consumidor)

De acordo com o gráfico, podemos compreender que o preço médio de revenda do botijão tendeu a girar em torno de R$70,00 pela maior parte do intervalo; isto significa que, naturalmente, existirão botijões comercializados acima deste valor, bem como também abaixo.

A fixação do valor de R$70,00 pelo Procon, ao exigir a manutenção do valor precisamente na média, estimulará aqueles estabelecimentos que fornecem produto muito barato a aumentarem seus preços, em um movimento idêntico aquele da formação de um cartel, dessa vez, contudo, com anuência pública. Por outro lado, para aqueles que vendem mais caro, restará o prejuízo e, quem sabe, até mesmo a falência, mas, de certo, o desestímulo ao abastecimento dos locais mais distantes, com maiores custos de transporte.

Segundo estudo elaborado pelo CADE[13], o prejuízo acumulado para a revenda de gás de cozinha seria da ordem de aproximadamente 90 milhões de reais com o tabelamento.

Apesar da política do governo de São Paulo ser determinada para certo período, sem a intenção inicial de se alongar por mais tempo, é possível perceber como um experimento nefasto como esse propõe, em menor escala, a repetição de um erro nacional que com muito custo se tem tentado resolver.

Além de eventuais falências apenas contribuírem para a concentração do mercado revendedor, a falta de segurança institucional para os negócios repele a continuidade e a existência de novos investimentos, tudo isto em um momento onde os estabelecimentos responsáveis pela oferta de gás mais precisam de liberdade para se adequarem aos novos paradigmas. É durante a crise, afinal, que os mecanismos de ajuste dos preços devem estar mais afiados, indicando maiores ou menores compensações para os agentes de mercado, bem como para os consumidores.

Enquanto preços altos indicam oportunidades para investidores, os mesmos indicam parcimônia aos consumidores; o que o preço arbitrário do governador João Dória indica? “Votem em mim”, talvez?

Os dois últimos reajustes da Petrobras, que aumentaram os preços nas refinarias depois de cinco quedas entre fevereiro e março, tornam a situação ainda mais complicada. Essas variações positivas nos preços devem ser repassadas ao consumidor de alguma forma. Da mesma forma, a manutenção de margens arbitrariamente baixas cada vez mais passa a ser insustentável para alguns dos agentes afetados, que, endividando-se, tem de arcar com custos de transporte, aluguel e de funcionários para funcionarem.

A fala do secretário de defesa do consumidor, citada anteriormente, no início da argumentação, gravemente ignora este mecanismo de transmissão dos preços ao consumidor final, desconsiderando a movimentação das margens dos agentes ao longo do tempo.

A análise dos dados para o estado de São Paulo indica que, enquanto o preço médio de produção do gás de cozinha cresceu initerruptamente entre outubro de 2019 e janeiro de 2020, as margens médias dos revendedores e distribuidores estiveram em sentido contrário, descendendo por todo este período, a fim de conter um repasse muito expressivo dos preços. Em seguida, quando os preços do petróleo se derrubam no mercado internacional e a Petrobras anuncia uma série de reduções nos preços de seus derivados produzidos, entre fevereiro e abril de 2020, segue-se que os agentes dos outros elos da cadeia de precificação enfim acham espaço para crescimento de suas margens, compensando seus desempenhos nos períodos anteriores.[14]

Tais acomodações são naturais dentro da atividade econômica. É claro que, devido às características inerentes ao mercado brasileiro, cuja formação não foi nem um pouco amigável a livre concorrência, pode ser que sejam auferidos ganhos por alguns agentes através de um poder de mercado não natural, no entanto não é isto que o secretário ataca; sua bandeira não é a da liberdade econômica. Seu intuito é legitimar o tabelamento, desvirtuando os empreendedores com suas palavras vagas.

É evidente, portanto, que o controle de preços, seja por qualquer período de tempo ou em qualquer lugar do mundo, não culminará em nada mais do que a distorção da ordem econômica vigente, trazendo o caos por onde passa.

Como tipicamente são as políticas propostas pelos coletivistas, o tabelamento é uma quimera sem qualquer sustentação na realidade, algo que só está passível de ser aplicado por meio da força, somente concebível por aqueles que raciocinam pelos meios mais agressivos e selvagens; sua prática nada mais é do que o último plano desesperado de uma mente carente de princípios firmes a longo prazo, a qual nada mais importa e interessa senão a imediata aprovação do público.

Mais uma vez os freios da locomotiva do país são puxados, e justamente por aquele cujo slogan já foi Acelera São Paulo…

 

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NOTAS

[1] https://www.saopaulo.sp.gov.br/spnoticias/procon-sp-faz-acordo-com-sindicato-para-que-preco-do-botijao-de-gas-seja-de-ate-r-70/

[2] Art. 170, inciso IV, da Constituição Federal: “A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios: IV – livre concorrência;

Lei nº 9478, de 06 de agosto de 1997, Art. 1, inciso IX: “As políticas nacionais para o aproveitamento racional das fontes de energia visarão aos seguintes objetivos: IX – promover a livre concorrência”

[3] Conforme relato do Cade, na NT Nº 19/2020/DEE/CADE, esta lei costuma ser aplicada de forma seletiva, apenas “ (…) contra algumas pessoas (em regra revendedores pequenos) e não contra qualquer empresa, em especial não contra bancos (que apenas são regulados por lei complementar e possuem lucros ou cobram juros muito superiores a 20%). ”

[4] Código de defesa do Consumidor, art. 39, inciso X, Incluído pela Lei nº 8.884, de 11.6.1994.

[5] A Resolução CNPE nº04/2005 foi revogada pela Resolução CNPE nº 17/2019. A Petrobras, contudo, já não diferenciava os preços do GLP para os segmentos residencial e industrial/comercial desde novembro de 2019.

[6] Disponíveis em: ANP (http://www.anp.gov.br/precos-e-defesa-da-concorrencia/precos/precos-ao-consumidor) e IBGE (https://www.ibge.gov.br/estatisticas/economicas/precos-e-custos/9256-indice-nacional-de-precos-ao-consumidor-amplo.html?=&t=downloads)

[7] Disponíveis em: ANP (http://www.anp.gov.br/precos-e-defesa-da-concorrencia/precos/precos-ao-consumidor) e ipea (http://www.ipeadata.gov.br/ExibeSerie.aspx?stub=1&serid1739471028=1739471028)

[8] Geralmente esta oneração maior recai sobre combustíveis de uso menos popular, como QAV, nafta petroquímica e óleo combustível.

[9] G1 – Gás de cozinha completa quatro anos sem aumento de preço (http://g1.globo.com/Noticias/Economia_Negocios/0,,AA1376968-9356,00-GAS+DE+COZINHA+COMPLETA+ANOS+SEM+AUMENTO+DE+PRECO.html)

[10] Dados disponíveis em: ANP (http://www.anp.gov.br/precos-e-defesa-da-concorrencia/precos/precos-ao-consumidor)

[11] Fonte: Relatório de Comércio Exterior ANP – nº 09

[12] Fonte: Anuário Estatístico ANP 2005 e Anuário Estatístico ANP 2019

[13] Conselho Administrativo de Defesa Econômica – Nota Técnica nº 19/2020/DEE/CADE

[14] Dados disponíveis em: http://www.anp.gov.br/precos-e-defesa-da-concorrencia/precos/precos-ao-consumidor

1 COMENTÁRIO

  1. Este artigo é bem complicado de se acompanhar. Necessita uma segunda leitura e algum conhecimento de economia. E isso que eu sou versado em economia austríaca – como diz o Kogos, a única válida. Eu digo isso porque eu fico imaginando como o trabalho de um estatista é muito fácil: bastam alguns slogans e o pensamento focado no curto prazo, e eles conseguem fuder com a economia de um país inteiro. Afinal, se os próprios economistas do mainstream são um boçais ignorantes, o que podemos esperar do eleitor médio? nada. IMPOSTO É SEMPRE ROUBO. SEJA LIBERTÁRIO. LIBERAL É LIXO! ESTADO É UMA GANGUE DE LADRÕES EM LARGA ESCALA.

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