Por que é importante dominar a teoria

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shutterstock_105432542I.

O provérbio que diz que as coisas podem funcionar bem na teoria mas não necessariamente funcionam na prática é bem conhecido.[1]  A intenção normalmente é a de menosprezar a importância da teoria, sugerindo que ela pode ser bonita mas pode estar muito distante das exigências práticas, sendo de pouca valia para ajudar a resolver o problema em questão.

O filósofo prussiano Immanuel Kant (1724—1804), em seu ensaio de 1793, “On the Popular Judgment: ‘This May Be True in Theory, But It Does Not Apply in Practice” (Sobre o Juízo Popular: ‘Isso Pode Ser Verdade Na Teoria, Mas Não Se Aplica à Prática’), respondeu a esta crítica.  Com efeito, ele respondeu com este seu ensaio à crítica feita à sua teoria ética pelo filósofo Christian Garve (1742—1798).

Kant argumentou que a teoria fornece “princípios de natureza suficientemente geral”, ou seja, ela fornece regras gerais.  No entanto, a teoria não diz ao homem como ela deve ser aplicada, diz Kant.  Para isso, faz-se necessário o ato do discernimento próprio:

O conceito da compreensão, o qual pertence à regra geral, tem de ser complementado por um ato de discernimento, por meio do qual o adepto distingue exemplos em que a regra se aplica daqueles em que ela não aplica.[2]

O filósofo prussiano, de maneira efetiva, afirma que qualquer indivíduo atuante tem de respeitar o papel exercido pela teoria:

Aquele que finge ser versado em um determinado ramo do conhecimento e ainda assim trata a teoria com escárnio irá inevitavelmente se expor como um ignorante em sua área.[3]

Em sua obra metodológica, Ludwig von Mises (1881—1973) enfatizou, em seu nível mais fundamental, a importância da teoria para o indivíduo que age, observando que a teoria e a ação humana são inseparáveis. Escreveu Mises:

O pensamento precede a ação. Pensar é deliberar sobre a ação antes de agir, e refletir em seguida sobre a ação efetuada. Pensar e agir são inseparáveis. Toda ação está sempre baseada em uma ideia específica sobre relações causais. Quem pensa uma relação causal, pensa um teorema. Ação sem pensamento e prática sem teoria são inimagináveis. O raciocínio pode ser falso e a teoria incorreta; mas o pensamento e a teoria estão presentes em toda ação. Por outro lado, pensar implica sempre imaginar uma futura ação. Mesmo quem pensa sobre uma teoria pura pressupõe que a teoria é correta, isto é, que uma ação efetuada de acordo com o seu conteúdo teria por resultado um efeito compatível com seus ensinamentos. Para a lógica, o fato de esta ação ser factível ou não é irrelevante.

Com a teoria sendo inseparável da ação humana, a questão crucial passa a ser: Qual é a teoria correta?  Por motivos óbvios, o indivíduo que age estará interessado na teoria correta: “Não importa como ela seja vista, simplesmente não há como uma teoria falsa ter maior serventia a um indivíduo, a uma classe ou a toda a humanidade do que uma teoria correta.”[4]

II.

Na versão da ciência econômica que hoje é a dominante, o real valor de uma teoria é definido por meio de testes que seguem a hipótese do “se-então”.  Por exemplo, economistas testam se um aumento na oferta monetária leva a um aumento nos preços, ou se um aumento na oferta monetária causa elevação nos preços — ou se o inverso é verdadeiro.

Tal procedimento é típico do positivismo-empiricismo-falsificacionismo — uma abordagem metodológica que, na ciência econômica, não apenas deve ser rejeitada como sendo confusão intelectual[5], como também tem de ser criticada por ser propensa a abusos demagógicos.

Afinal, se alguém é adepto da ideia de que nada pode ser conhecido (com certeza) sem ser testado, então tal pessoa, por definição, tem de colocar em prática todas as suas ideias.  E é aí que jaz o perigo.

Tão logo uma teoria passa a ser vista como boa ou benevolente — tal como a teoria que diz que um aumento na oferta monetária gera prosperidade para todos, ou a teoria que diz que déficits orçamentais criam novos empregos —, as pessoas irão adorar vê-la em prática.

O que é pior, sob o atual reinado do positivismo-empiricismo-falsificacionismo, existem enormes incentivos econômicos para se difundir teorias politicamente eficazes que, obviamente, visam apenas ao bem de políticos — mesmo que tais teorias sejam falsas.  Aqueles que fornecem uma convincente legitimação científica para ações perseguidas pelo governo podem previsivelmente esperar altas recompensas dos burocratas.

Fornecendo uma ilustração metafórica: para fazer com que o roubo seja algo socialmente aceitável, o ladrão estará disposto a dividir uma fatia do seu esbulho com aqueles que estão ajudando a fazer com que, do ponto de vista das vítimas, o crime seja aceitável.  Em suma, o ladrão tem todo o interesse em premiar o intelectual que justifica “cientificamente” seu roubo.

No que concerne a teorias econômicas aparentemente benevolentes, considere os seguintes exemplos:

  • O estado é indispensável para a paz e a prosperidade; sem o estado haveria caos social, agressões impiedosas aos mais fracos e miséria dantesca.[6]
  • A produção e a oferta de dinheiro têm de ser monopolizadas pelo estado, pois simplesmente não há outra maneira de se obter dinheiro de forma confiável.
  • Foi uma boa ideia substituir o dinheiro metálico (ouro e prata) pelo papel-moeda fiduciário de curso forçado, pois apenas esse tipo de dinheiro permite um contínuo e adequado aumento na oferta monetária — aumento este que, por sua vez, é indispensável para que haja crescimento da economia e do emprego.
  • O capitalismo explora a classe trabalhadora e gera um aumento exacerbado da pobreza, guerras e imperialismo; já o socialismo irá manter a paz e elevar o padrão de vida de todos.
  • A democracia (a escolha da maioria) é a única forma de organização política que respeita a liberdade individual e os direitos de propriedade, e que gera cooperação pacífica e prosperidade.

Estes exemplos são suficientes para o meu ponto: tão logo algumas teorias passam a ser consideradas benevolentes, pode-se ter a certeza de que elas serão colocadas em ação.  Quanto mais benevolente uma teoria, maior a possibilidade de ocorrer experimentos sociais.

No entanto, praticar experimentos sociais com o suposto propósito de se estar testando verdades é algo que possui um preço muito alto — às vezes, um preço proibitivamente alto, como deixou evidente o experimento socialista em vários países.

III.

No campo da ciência econômica, no entanto, é possível decidir se determinadas teorias são corretas ou incorretas sem que haja a necessidade de se recorrer a experimentos e testes.

Mises reconstruiu a ciência econômica como sendo uma das áreas da ‘lógica da ação humana’, que ele chamou depraxeologia (práxis = ação; a lógica da ação).  Sendo uma teoria apriorística, a praxeologia permite a dedução de verdades irrefutáveis — ou apodícticas — partindo-se do irrefutavelmente verdadeiro axioma da ação humana.

Nas palavras de Mises,

A praxeologia não é uma ciência histórica, mas uma ciência teórica e sistemática. Seu escopo é a ação humana como tal, independentemente de quaisquer circunstâncias ambientais, acidentais ou individuais que possam influir nas ações efetivamente realizadas. Sua percepção é meramente formal e geral, e não se refere ao conteúdo material nem às características particulares de cada ação. Seu objetivo é o conhecimento válido para todas as situações onde as condições correspondam exatamente àquelas indicadas nas suas hipóteses e inferências. Suas afirmativas e proposições não derivam da experiência. São apriorísticas, como a lógica e a matemática. Não estão sujeitas a verificação com base na experiência e nos fatos.

A praxeologia fornece uma metodologia que permite separar teorias econômicas corretas de teorias econômicas falsas, tudo em bases apriorísticas — isto é, sem ter de recorrer a experimentos sociais.

Em vista da ilustração dada acima (e sem se aprofundar extensivamente no argumento), podemos saber com toda a certeza que o estado não é a solução, mas sim a raiz dos mais severos conflitos sociais.

Utilizando a praxeologia, também podemos saber com certeza que o dinheiro é uma criação do livre mercado; que o dinheiro-commodity — a escolha lógica das ações incorridas no livre mercado — é a moeda forte; e que o monopólio estatal da produção de dinheiro irá gerar uma moeda fraca e continuamente depreciada.

Também sabemos com certeza que um aumento na oferta monetária não torna uma economia mais rica; tal aumento irá beneficiar exclusivamente aqueles que primeiro receberem este dinheiro recém-criado, pois terão uma maior renda a preços ainda inalterados.  Seu poder de compra irá aumentar.  Quem perde são todos aqueles que irão receber o dinheiro mais tarde (ou que sequer irão recebê-lo), quando os preços já estarão maiores.  O poder de compra destes foi diminuído.

Também se pode deduzir da praxeologia que o socialismo leva a uma grande miséria, pois se trata de uma forma de organização social que não tem como funcionar.  Qualquer experimento genuinamente socialista está fadado ao fracasso, sendo o capitalismo a única forma economicamente viável de organização social.

Finalmente, pode-se mostrar com base na praxeologia que a democracia é incompatível com a preservação das liberdades individuais, dos direitos de propriedade e, consequentemente, da prosperidade e da cooperação pacífica.

O poder de se desmascarar e desmistificar falsas teorias econômicas utilizando um raciocínio apriorístico — ou seja, sem ter de recorrer a experimentos sociais — é certamente um dos mais fascinantes aspectos da Escola Austríaca de economia.

Em sua introdução à Crítica da Razão Pura (1787), Kant intitula o capítulo 3 como “A Filosofia Necessita de uma Ciência que Determine a Possibilidade, os Princípios e a Extensão de Todos os Conhecimentos “A Priori””.  Para a ciência econômica, Mises fez exatamente isso.

 


[1] “O termo ‘teoria’ é normalmente entendido como algo cuja explicação sugerida já foi satisfatoriamente provada, não mais estando aberta a questionamentos.” Joyce, G. H. (1908), Principles of Logic, Longmans, Green & Co, London et al., p. 362.

[2] Kant, I. (1992 ), Über den Gemeinspruch: Das mag in der Theorie richtig sein, taugt aber nicht für die Praxis, Zum ewigen Frieden, H. F. Klemme, ed., Felix Meiner Verlag Hamburg, p. 3 [A 202], tradução própria.

[3] Ibid, p. 4 [276], tradução própria.

[4] Mises, L. v. (1957), Theory & History, p. 124.

[5] Ver, nesse contexto, Hoppe, H. H. (2006), Austrian Rationalism in the Age of the Decline of Positivism, in: The Economics and Ethics of Private Property, Studies in Political Economy and Philosophy, 2nd ed., Ludwig von Mises Institute, Auburn, US Alabama, pp. 347?379.

[6] Murray Rothbard define o estado como sendo

Aquela instituição que possui uma ou ambas (quase sempre ambas) das seguintes características: (1) adquire sua renda por meio da coerção física conhecida como “tributação”; e (2) declara ter — e normalmente tem — um monopólio coercivo da oferta de serviços de defesa (polícia e tribunais) sobre uma dada área territorial.

Rothbard fornece uma definição positiva do estado: ele diz o que o estado realmente é, e não o que ele deve ser (definição normativa).

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