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Imaginem Robinson Crusoé sozinho na sua ilha. Robinson Crusoé pode fazer aquilo que desejar na sua ilha. O problema da cooperação social — o problema da conduta humana ordenada — simplesmente não surge para ele. Para que esse problema surja, é necessário que uma segunda pessoa apareça no cenário; então Sexta-Feira aparece.
Imaginem agora que essa ilha é como o Jardim do Éden. Existe uma superabundância de bens. Tudo está disponível de graça, assim como o ar que respiramos está normalmente disponível de graça. Enquanto essa situação perdurar, obviamente nenhum tipo de conflito pode surgir entre Robinson Crusoé e Sexta-Feira, porque, seja lá o que for que uma pessoa faça, ela nunca estará tirando algo da outra; a oferta atual de bens para ela será tão grande quanto era inicialmente, e há tantos bens disponíveis para Sexta-Feira como havia antes. Um conflito entre Crusoé e Sexta-Feira só pode surgir à medida que os bens sejam escassos, à medida que os bens não sejam superabundantes. No Jardim do Éden, existem apenas duas coisas que são escassas; e apenas dois tipos de conflito podem surgir. O que é escasso, mesmo no Jardim do Éden, onde há superabundância de todo o restante, o que é escasso no Jardim do Éden, por um lado, é o meu próprio corpo físico (eu só possuo um corpo), bem como o local físico no qual o meu corpo se localiza. Se Robinson Crusoé desejar fazer algo com o corpo de Sexta-Feira — ou se Sexta-Feira quiser fazer algo com o corpo de Crusoé —, se Robinson Crusoé quiser ficar exatamente no mesmo lugar onde Sexta-Feira estiver, então surge um conflito porque existe uma escassez de bens.
Portanto, até mesmo no Jardim do Éden também seriam necessárias regras para a cooperação humana pacífica — regras para a cooperação humana ordenada —, de modo que fossem evitados os tipos de conflito que eu descrevi. E no mundo real, que é caracterizado pela escassez geral, onde tudo é escasso, precisaríamos de regras que evitassem o surgimento de conflitos relacionados a todo tipo de bens escassos.
Na história do pensamento político e social, todos os tipos de maneiras através das quais solucionamos esse problema de forma pacífica, vis-à-vis os bens escassos, constituem aquilo que eu chamo de problema da ordem social. Na história do pensamento político e social, todo tipo de proposta sobre como resolvemos esse problema da ordem social foi feito; e, já que diversas propostas foram feitas, muitas pessoas pensam que não há uma solução única e correta para o problema da ordem social. Mas eu quero argumentar que sim, que existe uma solução correta para o problema da ordem social. Existe, sim, uma resposta exata e correta para esta pergunta: “Como evitamos conflitos interpessoais, dado que existe escassez de bens?”.
Deixem-me apenas rapidamente esboçar qual é a solução correta, porque trata-se de uma solução que é conhecida há muito tempo; ela foi refinada ao longo dos séculos, mas a solução é bem simples, como vocês irão rapidamente perceber.
Deixem-me primeiro formular a solução para o Jardim do Éden, para o paraíso. Lá, precisamos apenas de uma regra: “Todos podem fazer o que quiserem, todos podem se movimentar onde quiserem, todos podem ocupar qualquer lugar que quiserem, contanto que nenhum outro corpo esteja no mesmo lugar.” Formulando de maneira um pouco diferente: “Nós podemos movimentar e posicionar o nosso corpo onde quisermos, contanto que ninguém mais esteja ocupando aquele determinado local.”
Fora do Jardim do Éden — ou seja, no mundo real de escassez geral —, há quatro regras inter-relacionadas que as pessoas devem seguir para evitar todo tipo de conflito. A primeira é: “Cada pessoa é dona exclusiva do seu corpo.” Eu posso fazer com o meu corpo aquilo que eu quiser; ninguém tem o direito de interferir; e, se eu quiser fazer algo com o corpo de outra pessoa, eu preciso da permissão dela. Essa é a primeira regra.
Podemos intuitivamente observar de prontidão que não existem alternativas. Quem deveria ser o dono do meu corpo, exceto eu? Quem deveria ser o dono do corpo de Robinson Crusoé, exceto Robinson Crusoé? Sexta-Feira deveria ser o dono dele? Ou deveriam Sexta-Feira e Crusoé, conjuntamente, ser donos dos seus corpos? Aí vocês imediatamente veem que isso não evita conflitos; que isso causa conflitos, que isso torna os conflitos permanentes.
A segunda regra é: “Cada pessoa é dona exclusiva de todos os bens e recursos naturais que constatou como sendo escassos e apropriou antes dos demais.” Também podemos enunciar essa regra como sendo: “Aquele que usa, pela primeira vez, algo que era previamente sem dono torna-se o dono dessa coisa.” Novamente, as alternativas são sobre quem deveria ser o dono. Deveria sê-lo alguém que não foi o primeiro a fazer algo com o bem? O segundo a fazê-lo? Ou então ambos, o primeiro e o segundo? Imediatamente, percebemos de novo que as regras alternativas não evitariam conflitos, mas sim os tornariam permanentes.
A terceira e a quarta regras basicamente decorrem da primeira e da segunda. A terceira é: “Toda pessoa que — utilizando o seu corpo e as coisas que apropriou originalmente — produz algo novo torna-se dona exclusiva daquilo que produziu, contanto que não danifique fisicamente a propriedade de terceiros ao produzir aquilo que produziu.” E a quarta regra é: “Uma vez que um bem tenha sido apropriado originalmente ou tenha sido produzido, a propriedade sobre esse bem só pode ser obtida através de uma transferência voluntária de um dono prévio para um dono posterior.” Essas são todas as regras; e, se as seguíssemos todas, todos os conflitos poderiam ser evitados, e teríamos paz eterna, por assim dizer. A cooperação sempre se daria de forma serena. Não é necessário aqui dar uma justificativa mais detalhada dessas regras, eu já o fiz em diversos trabalhos, mas eu acredito que vocês intuitivamente sentem que, em nosso cotidiano, quase sempre reconhecemos essas regras, agindo de acordo com elas de alguma maneira.
Agora, deixem-me enfatizar uma coisa. Contrariamente à frequente alegação de que a instituição da propriedade privada — conforme eu antes a descrevi, propriedade sobre o seu corpo, propriedade sobre coisas previamente sem dono (e assim por diante) —, contrariamente a essa alegação frequentemente ouvida de que a propriedade privada é apenas uma convenção, eu quero enfatizar que isso, definitivamente, está errado. Uma convenção serve a um propósito, e ela é caracterizada pelo fato de que existem alternativas. Por exemplo, o alfabeto latino que usamos serve ao propósito da comunicação escrita, e existem alternativas a ele. Existe, por exemplo, o alfabeto cirílico, que pode ser usado em vez do alfabeto latino. No entanto, qual é o propósito de normas, qual é o propósito de regras? E a resposta é que, se não houvesse conflitos interpessoais, nós não precisaríamos de regra alguma. Nós apenas precisamos de regras, nós apenas precisamos de normas sociais, porque existem conflitos neste mundo. O propósito de normas ou regras é evitar conflitos inevitáveis caso contrário. Uma norma que gere conflito, que cria conflitos é contrária ao próprio propósito de uma norma. Ou, podemos dizer, uma regra que cria conflitos é uma perversão, pois não faz aquilo que uma regra supostamente deveria fazer — isto é, ajudar a evitar conflitos.
No que diz respeito ao propósito de evitar conflitos, a instituição da propriedade privada, definitivamente, não é uma convenção, porque nenhuma alternativa a ela existe. Apenas a propriedade privada (exclusiva) faz com que todos aqueles conflitos que caso contrário seriam inevitáveis sejam evitados. E apenas o princípio de aquisição de propriedade através de atos de apropriação original, apropriando algo que até então não tinha dono, torna possível que conflitos sejam evitados desde o início da humanidade, por assim dizer, até o seu final, porque o primeiro proprietário de algo não envolveu ninguém em qualquer tipo de conflito; ele foi o primeiro, ninguém mais estava lá. Portanto, a apropriação original de algo como propriedade privada é uma forma isenta de conflitos para transformar algo que até então era externo em propriedade privada.
O próximo problema que eu quero discutir agora é o problema do cumprimento da ordem social e da proteção dos direitos de propriedade. Mesmo que as pessoas reconheçam a validade das regras que eu expliquei, mesmo que saibamos como evitar qualquer conflito, é possível que algumas pessoas simplesmente não se importem. Você pode dizer: “Eu sei evitar conflitos, mas eu não quero evitar conflitos, eu me beneficio deles, eu espero obter benefícios ao me envolver em conflitos com outras pessoas.” Logo, o que qualquer sociedade também necessita é de instituições e mecanismos que façam essas regras serem cumpridas, que lidem com transgressores, com infratores que simplesmente não se comportam de maneira civilizada.
Como cumprimos essa tarefa? Como lidamos com assassinos, ladrões e estupradores, todos os criminosos tradicionais com os quais estamos familiarizados? Quem certificará que essas pessoas serão contidas? A resposta padrão que é dada para essa pergunta, a resposta que também é dada por Ludwig von Mises para essa pergunta, é que essa é a tarefa do estado. A aplicação de lei e ordem é dever primário do estado. No entanto, se essa resposta está certa ou não depende de como definimos “estado”. E eu lhes darei a definição padrão de estado, não uma definição maluca que eu acabei de inventar, mas uma definição que você pode encontrar em qualquer livro-texto.
O que é o estado? A definição é que o estado é uma agência caracterizada por dois atributos únicos. Primeiro, o estado é uma agência que exerce um monopólio territorial de decisões finais. Em todos os casos onde há conflito, o estado é a instituição que decide quem está certo e quem está errado. E não há apelação além do estado. Ninguém está acima do estado — e as implicações disso ficarão claras conforme eu prosseguir. Isso também significa que o estado é o árbitro final em qualquer conflito que envolva o próprio estado. Se o estado ou os agentes do estado estão envolvidos em conflitos com outras pessoas, o estado ou os agentes do estado decidem quem está certo e quem está errado até nesses tipos de conflito. A segunda característica única do estado é que ele é um monopolista territorial da tributação. Ele pode determinar unilateralmente a quantia que as pessoas devem lhe pagar para que desempenhe essa função de ser o árbitro final em qualquer caso de conflito.
Agora, por mais difundida que seja essa visão sobre a necessidade da instituição do estado como fornecedor de lei e ordem, ela claramente contradiz elementares princípios e leis econômicas e morais. Deixem-me explicar brevemente.
Entre os economistas e filósofos, há duas proposições quase que universalmente aceitas. A primeira é a de que todo monopólio é ruim do ponto de vista dos consumidores, não do ponto de vista dos produtores. Todo produtor adora ser um monopolista. Contudo, do ponto de vista dos consumidores, monopólios são ruins pelas seguintes razões. Monopólios são definidos, de acordo com as definições clássicas, como uma firma que possui privilégios exclusivos. Eu, a firma “A”, possuo o direito exclusivo de ofertar certo produto ou serviço. Ninguém, exceto eu, está autorizado a produzir esse tipo de produto ou serviço. A razão por que isso é ruim do ponto de vista dos consumidores é fácil prever: é ruim do ponto de vista dos consumidores porque, estando protegidos de possíveis competidores, os preços pelos quais esse produto ou esse serviço será vendido ficarão acima daqueles que ocorreriam caso contrário, e a qualidade desse produto ou desse serviço será inferior do que seria caso contrário.
A segunda proposição com a qual quase todos os filósofos e economistas concordam é a de que a produção de lei e ordem — isto é, a aplicação das leis ou o fornecimento de segurança — é a função primária do estado, e o estado é definido, conforme já expliquei, como um monopolista territorial de decisões finais.
Obviamente, ambas as proposições são incompatíveis. Elas são contraditórias. Por um lado, monopólios são ruins; porém, por outro lado, para a produção de segurança, precisamos de um monopolista, precisamos do estado. A maioria dos filósofos e economistas sequer se preocupa com essa contradição; eles sequer parecem estar cientes dela. E, quando eles são alertados sobre ela — ou quando, de alguma forma, reconhecem que existe uma contradição entre ambas as proposições —, a rota usual de fuga é dizer que há algo errado com a proposição de que todo monopólio é ruim, e assim eles ficam com a proposição de que lei e ordem devem ser produzidas por um monopolista. Eles descartam a primeira proposição, mas não a segunda.
Ao invés, eu quero argumentar que é justamente o contrário. A proposição sobre monopólios serem ruins é verdadeira, e a proposição sobre o estado ter de ser um monopolista para fornecer lei e ordem é falsa. Sendo um monopolista territorial de decisões finais e aplicação de leis, o estado não é como qualquer outro monopolista, como um monopolista de leite ou de carro, que produz leite ou carros a preços demasiadamente altos e com qualidade demasiadamente baixa. Em nítido contraste com os demais monopolistas, o estado não é apenas uma instituição que produz bens inferiores, bens ruins, bens de má qualidade, mas uma instituição que na realidade produz males. Ou seja, bens que na verdade não são “bens”, mas sim “males”. De fato, o estado deve num primeiro momento produzir “males”, especialmente sob a forma de tributação, a qual, obviamente, não é um bem — eu não estou implorando: “Por favor, me faça algo bom e cobre impostos de mim.” Isso, obviamente, não é um bem. Portanto, o estado, para que possa fazer qualquer coisa boa ou algo que se pareça com um bem, deve primeiro fazer algo ruim para depois fazer algo bom.
Agora, se uma agência é o árbitro final em qualquer caso de conflito, ela também é, conforme já indiquei, árbitro em todos os casos envolvendo o próprio estado. Um monopolista de decisões finais, então, não irá apenas impedir conflitos e arbitrá-los de forma que sejam resolvidos. Se você pode decidir quem está certo e quem está errado até mesmo nos casos envolvendo você mesmo, então você irá provocar e causar conflitos — e assim, é claro, irá decidir esses conflitos em seu próprio favor. Para usar um exemplo drástico: eu o acertarei na cabeça, e você reclamará, “por que você me acertou na cabeça?”, e aí eu direi, “eu sou o juiz neste caso; eu digo que você me olhou de uma maneira muito estranha; e eu senti que precisava acertá-lo na cabeça, e agora você precisa me pagar por isso, porque eu soltei esse veredicto extremamente justo de que você merecia ser acertado na cabeça por mim”.
Também deve estar claro que constituições ou supremos tribunais não mudam nada a esse respeito. Isso porque constituições e supremos tribunais são estatais. As constituições e os julgados dos supremos tribunais precisam ser interpretados. Mas interpretados por quem? São interpretados por funcionários da mesma organização que causou o conflito inicial, e é claramente previsível que eles irão em grande parte decidir em favor do estado, uma vez que eles próprios são funcionários dessa agência. O que também pode ser previsto é que, ao invés de reconhecer direitos de propriedade e leis que são válidas eterna e universalmente, os estados irão substituir essas leis imutáveis por uma legislação. Eles irão fabricar a lei, eles irão fazer leis dizendo “é certo eu acertá-lo na cabeça de vez em quando”.
Além disso, como árbitro final, o estado também é um monopolista da tributação, isto é, ele pode determinar unilateralmente, sem o consentimento daqueles que são afetados por ele, quanto os seus súditos devem pagar por esse serviço que ele supostamente fornece. Em outras palavras, o estado é, por definição, um protetor de propriedades expropriador. Vocês podem perceber que isso é, obviamente, uma contradição em termos. E então, motivado como qualquer outro pela ideia de que, “quanto mais eu puder gastar, melhor eu estarei”, pela ideia de que, “quanto menos eu precisar trabalhar, quanto menos eu precisar batalhar por algo, melhor eu também estarei”, é previsível que a quantidade de impostos crescerá continuamente e que a qualidade da proteção oferecida — a proteção da vida e da propriedade pelo estado — continuamente cairá. Para o estado, o melhor é maximizar os gastos naquilo que chamam de proteção da vida e da propriedade e, na realidade, minimizar a qualidade da produção de proteção da vida e da propriedade.
Eu quero acrescentar que, além desses erros relacionados ao estatismo em geral, que consistem na ideia de que precisamos de um estado para proteger as nossas vidas e as nossas propriedades, existem erros adicionais quando pensamos, em particular, na ideia de um estado democrático. A forma tradicional de estado, pré-moderna, é a de uma monarquia absoluta. As monarquias eram consideradas problemáticas, principalmente na visão dos liberais clássicos, porque se baseiam em privilégios. O rei possui privilégios quando comparado com os cidadãos comuns. Monarquias são incompatíveis com a ideia de igualdade perante a lei. O que propunham os oponentes democráticos do estado monárquico era que a entrada ao aparato estatal deveria estar aberta para qualquer um, e isso, supostamente, tornaria todos iguais perante a lei — qualquer um agora pode se tornar rei, por assim dizer.
Contudo, essa igualdade democrática, na qual qualquer um tem o potencial de se tornar rei, é algo completamente diferente da ideia de uma lei universal que se aplica a todos da mesma forma. O criticado dualismo entre uma lei superior para os reis e uma lei inferior para as pessoas comuns, por assim dizer, existe sob condições democráticas assim como antes. A única diferença é que agora os privilégios não são mais privilégios pessoais — privilégios da nobreza ou do rei —, são privilégios funcionais, isto é, nas democracias existe uma diferença entre aquilo que chamamos de direito “privado”, que cobre as relações entre os cidadãos privados, e o direito “público”, que protege os funcionários do estado e regula o que os funcionários do estado podem fazer. Há uma diferença entre o direito “privado” e o direito “público”, com o direito “público” num patamar superior, por assim dizer. E numa democracia, se você é um funcionário do estado, um oficial do estado, você pode fazer coisas que não poderia fazer se fosse um cidadão privado, assim como um rei poderia fazer coisas que um cidadão comum não poderia.
Como um cidadão privado, eu não posso pegar dinheiro da sua carteira, pois isso será considerado roubo. Entretanto, se eu o fizer como um funcionário do estado, isso é chamado de tributação. Se, como um cidadão privado, eu roubo dinheiro de você e faço algo que beneficia outra pessoa, dando-o para a pessoa ao meu lado, isso é chamado de roubo e desaparecimento de bens. Se você o fizer como um funcionário público, isso é chamado de política social. Se eu, como um cidadão privado, sequestrar você e forçá-lo a trabalhar para mim, isso será considerado escravidão, e eu serei punido por isso. Por outro lado, se eu sou um funcionário público e obrigo você a servir no exército por dois anos — ou algo do tipo —, diz-se que eu estou convocando você para prestar serviços públicos. Portanto, podemos perceber que a diferença entre os dois tipos de leis existe sob a democracia assim como existia sob a monarquia.
As coisas, porém, são ainda piores. Vejamos o que acontece quando substituímos reis por chefes democráticos. O rei, por assim dizer, considera o país como sendo propriedade sua. Ele poderia vendê-lo, poderia transferi-lo como herança para a próxima geração (e assim por diante). Numa democracia, você substitui alguém que considerava o país como sendo a sua propriedade pessoal por alguém que é um zelador temporário do país por um período definido. Ele não pode vender o país e ficar com o dinheiro, mas ele pode explorar o país no período em que está no comando. Será que isso faz diferença? Isso faz uma tremenda diferença. Imagine que eu lhe dou uma casa e digo que você é o dono da casa. Você pode vendê-la, você pode ver o que acontece com o valor de mercado da casa se você fizer isso e aquilo com ela, você pode transferi-la na forma de herança. Você, portanto, irá se esforçar para preservar o valor de mercado da propriedade. Por outro lado, supondo a mesma casa, eu lhe digo que você não pode vendê-la, que você não pode transferi-la como herança, mas que por 4 ou 8 anos você pode usá-la e tentar ganhar o máximo de dinheiro possível com ela. O que você irá fazer é consumir capital. Mesmo que depois a casa fique em ruínas, você teve 4 ou 8 anos gloriosos no qual conseguiu obter todo tipo de renda usando essa casa.
Portanto, a diferença entre um rei e um zelador democrático é que os reis tendem a possuir uma perspectiva mais de longo prazo e tendem a preservar o valor da sua propriedade porque a consideram como sua, enquanto governantes democráticos tentam roubar o país o mais rápido possível porque sabem que depois de 4 ou 8 anos eles podem não ter mais chances de fazê-lo.
Eu chego agora ao que é uma solução para o problema da ordem social e da sua validação. Os estados são desastres no que se refere a esse respeito, pelas razões que expliquei. A solução está naquilo que chamei de sociedade de leis privadas.
O que é uma sociedade de leis privadas? Uma sociedade de leis privadas é uma sociedade na qual todos os indivíduos e todas as instituições estão sujeitos às mesmas e únicas regras, as regras que expliquei logo no começo desta palestra. Não existem leis públicas que garantem privilégios a pessoa alguma e a funções específicas desempenhadas por indivíduos. A ninguém é permitido adquirir propriedade por meios que não sejam a apropriação original, a produção ou a troca voluntária. Ninguém possui o direito de expropriar outra pessoa, ninguém tem o direito de tributar outra pessoa, ninguém pode impedir outra pessoa de utilizar os seus próprios recursos em qualquer setor produtivo de bens (produtos e serviços) que se deseje adentrar. Isto é, não existem monopólios de nenhum tipo. E especificamente, tendo em vista o problema com que estamos lidando, numa sociedade de leis privadas a produção de segurança — ou seja, certificar que ninguém viola leis e que aquelas pessoas que o fizerem são encontradas e punidas (e assim por diante) — também é feita por firmas voluntariamente financiadas: por agências de polícia, por seguradoras e por agências de arbitragem de conflitos.
Seria um tanto presunçoso prever como seria o resultado exato disso tudo, mas podemos prever algumas características fundamentais e estruturais de tal sociedade. Em primeiro lugar, numa sociedade complexa, baseada na divisão do trabalho, a autodefesa ocupará um papel secundário — em breve explicarei por quê. Deve ficar bem claro desde o início que, numa sociedade de leis privadas, o direito individual de praticar autodefesa seria sacrossanto; deve ficar bem claro que ninguém criticaria o direito de praticar autodefesa. Em contraste distinto com a situação presente, com a atual situação estatista com a qual estamos todos logicamente familiarizados, que torna as pessoas cada vez mais desarmadas e indefesas contra agressores, numa sociedade de leis privadas nenhuma restrição existiria quanto à posse de armas de fogo e de outros tipos de armas. O elementar direito individual de praticar autodefesa e de defender a sua propriedade contra invasores seria sagrado, por assim dizer.
Sabemos, por causa do Velho Oeste — que não era tão selvagem tal como descrito nos filmes de faroeste —, que o direito de portar armas é enormemente poderoso. No Velho Oeste, quase nunca aconteciam roubos a banco, isso não era frequente. Se você tentasse roubar um banco, na maioria dos casos você estaria morto antes de sair, porque quase todos os caixas estavam armados, sendo quase nula a chance de escapar. Existe uma literatura abundante sobre isso, sobre quão segura é uma sociedade na qual as pessoas podem portar armas. Existe um livro do economista americano John R. Lott Jr. com o título Mais Armas, Menos Crime, e ele fornece uma ampla ilustração empírica a essa proposição. Quanto mais armas estão em mãos privadas, menos crime existe. A Suíça, por exemplo, é um país em que as pessoas estão fortemente armadas, todos os homens suíços possuem submetralhadoras e munição, e a taxa de crimes na Suíça é menor do que em quase qualquer país que eu saiba.
No entanto, assim como na complexa sociedade de hoje em dia nós não produzimos os nossos próprios sapatos, telefones ou carros, mas sim contamos com a divisão do trabalho, numa sociedade de leis privadas, na maioria das vezes, no que diz respeito à produção de segurança, nós também contaríamos com produtores especializados; e de forma alguma contaríamos apenas com a autodefesa.
A maioria dos serviços de segurança, numa sociedade de leis privadas, será fornecida por agências especializadas competindo por fregueses voluntários; será fornecida por diversas companhias de polícia, por diversas seguradoras e agências de arbitragem. Se você quisesse resumir, em uma palavra, quais seriam a diferença crucial e a vantagem de uma indústria de segurança competitiva, quando comparada com o atual sistema estatista de fornecimento de segurança, se quiséssemos caracterizar a diferença em uma palavra, essa palavra seria contrato.
O estado, com o qual estamos familiarizados, enquanto árbitro final, opera, como todos sabem, num vácuo contratual. Não existe qualquer forma de contrato entre o estado e os seus cidadãos. Não é contratualmente pré-estabelecido o que é de fato possuído por quem, bem como o que, respectivamente, precisa ser protegido. Não são pré-estabelecidos quais serviços o estado deve fornecer, o que acontecerá caso fiquemos insatisfeitos com aquilo que o estado faz, muito menos o preço que devemos pagar pelos supostos serviços de proteção das nossas vidas e das nossas propriedades. Também não é pré-estabelecido o que acontece se chegarmos a esta conclusão: “Vejam, vocês não fizeram aquilo que iriam fazer. Como ficamos agora?”.
Imaginem neste momento o seguinte, imaginem que há uma agência privada oferecendo serviços de proteção para alguém e que eles dissessem algo do tipo:
“Eu nada lhe garantirei contratualmente. Eu não direi quais coisas eu considerarei como sendo suas para serem protegidas. Nem lhe direi o que eu me comprometo a fazer se, de acordo com a sua opinião, eu não estiver cumprindo os meus serviços. Mas de qualquer forma eu me reservo o direito de unilateralmente determinar o preço que você deve me pagar por esses serviços indefinidos.”
Qualquer fornecedor de segurança imediatamente desapareceria do mercado se fizesse esse tipo de proposta. Mas esse é exatamente o tipo de oferta que os estados fazem. Cada um dos fornecedores de segurança voluntariamente financiados precisa oferecer um contrato aos seus clientes em potencial. E esses contratos, para parecerem aceitáveis aos clientes, precisam conter descrições claras da propriedade que estes desejam proteger — ou seja, daquilo que consideram sendo seu —, eles precisam definir de forma clara serviços e obrigações mútuas; e ambas as partes do contrato, durante a vigência do contrato, estariam comprometidas com os termos acordados no contrato, podendo ser possível qualquer mudança no contrato apenas se ambas as partes concordarem com ela. Em nítido contraste, como vocês podem perceber, o estado muda as regras do jogo com o passar do tempo, ele cria novas leis que transformam aquilo que ontem era legal em algo ilegal amanhã — e vice-versa. Nada disso seria possível numa relação contratual com outra pessoa. E em especial, para parecerem aceitáveis para os compradores de segurança, esses contratos devem conter cláusulas sobre o que será feito no caso de uma disputa entre o protetor e aqueles que estão sendo protegidos por ele.
Sabemos que conflitos como esse podem surgir. Eu posso ter uma contenda com um policial que supostamente deveria me proteger, com seguradoras que deveriam me segurar, com agências de arbitragem que deveriam arbitrar conflitos. O que fazemos nesses casos? Obviamente, um contrato só pareceria aceitável para clientes em potencial se houvesse ressalvas quanto ao que aconteceria nesses casos. E para esses casos existe apenas uma solução; a seguradora, a agência de proteção e o suposto protegido só podem concordar com algo que diga: “Nesses casos, iremos a uma terceira agência de arbitragem independente.” Isso é muito diferente da atual situação, na qual, sempre que tentamos apelar contra uma decisão, a próxima corte de apelação também faz parte da mesma organização. A ênfase aqui é que esse terceiro externo deve ser independente; caso contrário, os clientes e os fornecedores de proteção não seriam capazes de chegar a um acordo. E esses árbitros independentes, essas agências independentes de arbitragem, por sua vez, também são caracterizados pelo fato de serem organizações voluntariamente financiadas. Se elas não fizerem aquilo que seguradoras e segurados delas esperam — isto é, fornecer uma solução que é considerada justa por todas as partes —, elas não irão ser escolhidas no futuro como a terceira parte independente. Ou seja, nesse mercado de terceiras partes, irão sobreviver apenas aquelas capazes de fornecer soluções mutuamente benéficas, benéficas para todos. Alguém considerado como sendo enviesado, parcial, alguém considerado como um juiz ou arbitrador parcial, simplesmente desaparecerá do mercado de arbitradores.
Dessa vantagem fundamental de uma sociedade de leis privadas, segue uma série de vantagens adicionais. A vantagem fundamental é que há uma relação contratual, ao invés de um vácuo contratual, como ocorre atualmente. A primeira é que a competição entre polícias, seguradoras e arbitradores em busca de clientes geraria uma tendência à queda contínua no preço da proteção por valor segurado. Isso tornaria a proteção, por assim dizer, cada vez mais acessível, ao passo que, sob as condições monopolistas atuais, o preço da proteção sobe continuamente e a qualidade da proteção cai continuamente.
Além do mais, conforme eu já indiquei, proteção e segurança são bens (produtos e serviços) que competem com todos os demais bens. Se mais recursos são alocados para proteção, menos recursos estarão disponíveis para a compra de casas e de carros e para viagens de férias. Ou então, se eu oferecer mais proteção para um grupo, menos proteção poderá ser oferecida para outro grupo. Havendo um monopolista financiado por impostos ofertando proteção, todas essas decisões sobre como alocar recursos para este ou aquele propósito são completamente arbitrárias. Em distinto contraste, num livre sistema de agências de proteção competitivas, toda arbitrariedade da alocação de recursos — toda produção em excesso ou toda produção escassa de segurança — desapareceria. A proteção seria concedida de acordo com a relativa importância que possui aos olhos dos diferentes consumidores. Algumas pessoas desejam gastar mais com ela, outras desejam gastar menos. Cada indivíduo numa sociedade de leis privadas receberia proteção de acordo com os seus próprios desejos e com a sua disposição em pagar por serviços específicos.
A mais importante vantagem da produção privada de lei e ordem baseada em contratos, entretanto, é de natureza qualitativa. Primeiro, há uma luta contra o crime. O estado é notoriamente ineficiente no que diz respeito à luta contra o crime, porque os agentes do estado cuja missão é defender as nossas vidas e as nossas propriedades são pagos por meio de impostos. Isto é, eles são pagos independentemente da sua produtividade. Por que alguém trabalharia se já é pago para não fazer nada? Por que eu deveria correr atrás de criminosos se é muito mais cômodo, por assim dizer, aplicar multas de trânsito ou tomar café em padarias? De fato, pode-se esperar que os agentes do estado tenham interesse em manter as taxas de criminalidade moderadamente altas, porque assim eles poderão justificar a necessidade de mais recursos no seu orçamento do que no período anterior.
E as coisas são ainda piores. Os agentes do estado não indenizam ou compensam as vítimas. Eles supostamente deveriam nos proteger; todavia, se eles falharem, o que acontece? Eles pagam algo para aquelas pessoas que deveriam proteger, mas não protegeram? Para o estado, indenizações e compensações para as vítimas de crimes são no máximo insignificantes. O estado não compensa, não indeniza vítimas de crime. Muito pelo contrário: as vítimas são ainda mais insultadas ao terem de pagar pela manutenção dos criminosos que são presos. Os pagadores de impostos têm de pagar pela TV, pelo pingue-pongue e pelos outros entretenimentos de que os criminosos que são colocados nas prisões desfrutam, ao invés de serem compensados pelo mal que lhes foi causado.
A situação numa sociedade de leis privadas, obviamente, é completamente diferente. Fornecedores de segurança — e, em particular, seguradoras — terão de indenizar os seus clientes no caso de danos, caso contrário não encontrariam clientes; e, por causa disso, eles devem operar de forma eficiente. Eles devem ser eficientes na prevenção, pois, se eles não forem eficientes na prevenção, então eles terão de pagar. Eles devem ser eficientes em encontrar os bens que foram roubados de você, porque, se não os encontrarem, eles terão de lhe pagar, eles terão de lhe comprar uma nova TV. Os estados não fazem nada disso.
Sempre dou o exemplo de um amigo cujo carro foi roubado na Itália. Ele foi até a polícia e disse que o seu carro havia sido roubado. Pediram a ele que preenchesse o boletim de ocorrência. Ele, então, perguntou o que iria acontecer, e o policial respondeu que agora o boletim seria arquivado. Ele o colocou numa pastinha — e fim de papo. E então ele relatou essa ocorrência para a sua seguradora, e depois de três dias a seguradora alemã achou o carro. Isso por uma razão óbvia: se ela encontra o carro, ela não precisa pagar um novo. O estado não paga um carro novo, ele arquiva coisas. E, é claro, agências privadas de proteção também possuem incentivos para encontrar os meliantes, porque assim elas podem forçar os bandidos a pagar compensações às vítimas, ao invés de as vítimas terem de pagar pela punição aos criminosos. No caso anterior, eu expliquei que o pagador de impostos, a vítima, ainda tem de pagar pelo encarceramento.
Ademais, uma indústria de segurança competitiva, baseada em contratos, cria um efeito geral de promoção da paz. Os estados, conforme já indiquei, são instituições naturalmente agressivas. Eles podem causar e provocar conflitos e depois decidir em seu próprio favor — em outras palavras, um monopolista de decisões finais financiado por impostos pode externalizar os custos do seu comportamento agressivo sobre os pobres pagadores de impostos; e, por causa disso, eles tendem a incorrer em comportamentos que são mais arriscados e agressivos do que aqueles em que incorreriam caso tivessem de pagar eles próprios pelos custos de tais comportamentos.
Seguradoras, por natureza, são organizações defensivas, por assim dizer. Por um lado, devido ao fato de cada ato de agressão representar um custo, ao incorrer em atividades agressivas, uma seguradora teria de cobrar apólices mais altas dos seus próprios clientes, e isso implicaria perder clientes para seguradoras que se comportam de maneira não agressiva. Seguradoras são organizações pacíficas por outra razão — você não é capaz de se segurar contra qualquer tipo de risco. Existem certos riscos que não são seguráveis. Você pode se segurar contra o risco de a sua casa pegar fogo; você pode se segurar contra morte por acidentes; e assim por diante. Mas você não pode se segurar contra você mesmo colocar fogo na sua casa ou contra você se matar amanhã numa tentativa de suicídio. A implicação disso é que você não pode se segurar contra pessoas fazendo algo a você, agredindo você, se você provocou o conflito. As seguradoras não irão cobrir o risco de você ser agredido por outras pessoas que você mesmo agrediu inicialmente ou que você levou a lhe fazer algo ruim. As seguradoras apenas o protegerão e cobrirão certos riscos se você se submeter a um código de comportamento civilizado. Se você disser, “eu me comportarei bem, eu nunca irei provocar alguém”, apenas assim elas irão proteger você, mas elas não o farão se você se comportar de maneira não civilizada.
E isso também implica que seguradoras frequentemente insistirão que você não tente fazer justiça com as próprias mãos — ou seja, que não tente você mesmo aplicar a lei — pelo fato de isso aumentar o risco de terceiros serem envolvidos no conflito. Portanto, elas tenderão a insistir que, sempre que um conflito surja, você tenha de se submeter a certos procedimentos padrão, para que possa ser descoberta a causa dos eventos, quem começou certas coisas, quem revidou, e por aí vai. A justiça com as próprias mãos tenderá a ser proibida ou tornada quase impossível por seguradoras insistindo que você se submeta a certos tipos de procedimentos, para que custos operacionais possam ser reduzidos e apólices menores possam ser cobradas.
Além disso, as seguradoras, na verdade, irão encorajar as pessoas a portar armas. Percebam que os estados sempre tentam nos desarmar. Imaginem que alguém vá a uma agência de proteção e que a agência de proteção diga: “Veja, antes que eu comece a protegê-lo, primeiro você terá de me entregar todas as suas armas. As facas da sua cozinha, os seus revólveres, seja lá o que for.” Qualquer pessoa normal diria: “Que protetor estranho! Quer que eu lhe entregue qualquer coisa com a qual eu possa me defender e diz que, apenas depois de eu tiver entregado todas essas coisas, apenas aí ele possivelmente irá me proteger.” Você iria pensar que se trata de um tipo suspeito de organização. Seguradoras que fizessem algo do tipo iriam à falência instantaneamente. Ao invés disso, elas cobrariam apólices mais baixas se você provasse que é capaz de manusear armas cuidadosamente para se defender, porque nesse caso o risco de acontecer algo pelo qual eles precisariam pagar é menor. Você conseguiria apólices mais baixas caso possuísse um cofre em casa, por exemplo. Da mesma forma, saber usar armas tenderia a reduzir as apólices.
Último e mais importante, um sistema competitivo de agências de proteção teria um impacto duplo sobre o desenvolvimento da lei. Por um lado, ele possibilitaria uma maior variedade de leis — ou seja, ao invés de ser imposto um padrão uniforme sobre todos, como ocorre sob condições estatistas, agências de proteção poderiam competir umas com as outras não apenas por meio de diferenciação de preços, mas também por meio de diferenciação de produtos. Por exemplo, poderiam existir lado a lado agências de proteção ou seguradoras católicas que aplicariam o direito canônico, agências judias que aplicariam a lei mosaica, agências muçulmanas que aplicariam as leis islâmicas, outras agências que aplicariam o direito secular ou qualquer outra variedade de leis, todas elas sendo sustentadas por uma clientela voluntária. Os consumidores poderiam escolher a lei aplicada a ele e às suas propriedades, ninguém seria obrigado a viver sob lei “estrangeira”.
Por outro lado, o mesmo sistema de produção privada de lei e ordem iria promover uma tendência à unificação e à harmonização da lei. Isso porque a lei “doméstica” — isto é, as leis católicas, as leis judias, o direito romano (e assim por diante) — seria aplicada apenas às pessoas (e às suas propriedades) que as escolheram. Por exemplo, a lei canônica se aplicaria apenas a católicos praticantes e lidaria apenas com conflitos entre católicos.
É também possível, é claro, que um católico entre em conflito com alguém afiliado a outro código legal, por exemplo, o muçulmano. Se ambos os códigos legais chegam à mesma conclusão ou a conclusões parecidas, nenhuma dificuldade surgiria. Entretanto, se os códigos legais competitivos chegam a conclusões completamente diferentes, como aconteceria em certos casos, então, é claro, surge um problema. A lei “doméstica” — isto é, a lei intragrupo — seria inútil nesse caso, mas, naturalmente, toda pessoa segurada também desejaria proteção contra a contingência de conflitos intergrupo. Nessa situação, não se pode esperar que uma seguradora e os clientes do seu código legal simplesmente se subordinem ao julgamento de outra seguradora e ao código legal dela. Ao invés disso, para todas as partes envolvidas, só existe uma saída crível e aceitável para esse impasse. Desde o início, todas as seguradoras seriam obrigadas a submeter os seus clientes e a si próprias à arbitragem de terceiras partes verdadeiramente independentes. Essa terceira parte não apenas seria uma entidade independente, mas também seria, ao mesmo tempo, a escolha unânime de ambos. Ela seria escolhida devido à sua grande habilidade ou à sua reconhecida capacidade de encontrar soluções justas de acordo mútuo para os casos de conflito intergrupo. Além disso, se um arbitrador, conforme já expliquei, falhasse nessa tarefa e chegasse a conclusões que fossem reconhecidas como injustas ou enviesadas pelos clientes ou pelas seguradoras, essa pessoa ou essa agência não seria escolhida novamente como arbitradora. Então, como resultado da cooperação constante de diversas seguradoras e de diversos arbitradores, seria desencadeada uma tendência à unificação do direito contratual e proprietário, à harmonização das regras e dos procedimentos de geração de provas e de resolução de conflitos.
Assim, ao comprar proteção e seguro, tanto o segurador quanto o segurado se tornam participantes de um sistema integrado de prevenção de conflitos e manutenção da ordem. Todos os conflitos, bem como todas as alegações de danos, independentemente de onde, de quem e de contra quem, cairiam sob a jurisdição de uma ou várias seguradoras específicas e seriam resolvidos por uma seguradora “doméstica” e por leis “domésticas”; ou então pela lei “internacional” ou “universal”, bem como pelos seus procedimentos e regras previamente acordados por todos.
Portanto, em uma palavra, ao invés de conflito permanente, injustiça e insegurança jurídica — tal como acontece sob o atual estado de coisas —, numa sociedade de leis privadas, a paz, a justiça e a segurança jurídica seriam a norma.