Para a grande maioria da população, o Homeschooling (ensino domiciliar) é algo tão estranho e tão radical que sequer é cogitado como uma possibilidade, quiçá como algo que possa ser viável e benéfico. Apesar de ter relevância estatística ainda muito pequena em termos da porcentagem da população que o pratica e/ou advoga, o Homeschooling tem crescido em visibilidade no Brasil. Do ponto de vista mais prático, esse crescimento, ainda que bastante perceptível, ainda esbarra em diversos obstáculos como, por exemplo, a escassez de recursos pedagógicos, a falta de uma cultura e de uma mentalidade favoráveis ao Homeschooling, e até mesmo nas questões legais ou em sua interpretação equivocada. Seria uma tarefa hercúlea tentar escrever algo abrangente e detalhado sobre Homeschooling em formato de artigo. Assim sendo, o objetivo desse artigo é tentar esclarecer os pontos que são mais frequentemente distorcidos ou causa de confusão.
Fundamentos da educação Mainstream
Da forma que vejo, o paradigma educacional presente é fundamentado em algumas premissas gerais, resumidas a seguir:
a) existe uma idade ótima a partir da qual o aluno deve ser ensinado;
b) tal ensino deve ser ministrado por profissionais qualificados e munidos de ferramentas e teorias pedagógicas;
c) esse arcabouço pedagógico é inacessível ao “cidadão comum”;
d) alunos da mesma idade têm (aproximadamente) a mesma capacidade e bagagem intelectual e, portanto, esse parece ser um parâmetro natural de segregação;
e) essa forma de divisão é a ideal e a única favorável para a “socialização” dos alunos.
É importante expor as características do sistema educacional vigente pois muitos dos equívocos que rondam o Homeschooling têm a ver com uma visão romantizada do funcionamento desse sistema e de que qualquer tentativa de se distanciar desse padrão não seria capaz de atender às necessidades educacionais básicas das pessoas em formação.
Com isso em mente, abaixo são listados os três pontos de maior contenda quando se trata do homeschooling.
O homeschooling não é um experimento educacional alternativo à educação praticada nas escolas
Apesar de diversos relatos de educação coletivizada compulsória ao longo da história, as origens do sistema educacional atual em quase todos os países do mundo pode ser rastreada até o século XVIII, na Prússia, um dos inúmeros pequenos estados que viriam a se unificar sob a atual Alemanha. A característica notória que colocava a Prússia separada das demais nações da época era a exacerbada tendência militarista, normalmente sob pretextos nacionalistas. Após ser subjugada durante a expansão napoleônica, a Prússia passou por profundas reformas com o objetivo de tal evento não vir a se repetir. As primeiras mudanças notáveis foram no campo da educação. Dada a atmosfera militarista na Prússia, o objetivo da escola prussiana era formar soldados, independente do setor da sociedade que fossem atuar, e – para ilustrar – cito Rothbard:
“De mãos dadas com o sistema de escolas obrigatórias, estava o renascimento e a grande expansão do exército, em particular a instituição do serviço compulsório militar universal”
Um dos objetivos do método prussiano era a formação de uma sociedade altamente “educada”, que nada mais era do que um sistema pedagógico onde o individualismo daria espaço à uniformidade e à padronização. A espontaneidade deveria ser substituída pela obediência. Tudo isso era supervisionado por uma seleta casta de intelectuais com o aval do monarca. Esse espírito se traduz na dinâmica e nos ambientes escolares: cadeiras enfileiradas, alunos uniformizados, aulas com duração padronizada e demarcadas por sinais sonoros. Até uma visita ao banheiro ou ao bebedouro requer a permissão do seu superior.
Em resumo, a educação, como a maioria das pessoas entende hoje, surgiu há cerca de dois séculos atrás. Por outro lado, o ancestral humano existe há cerca de 2.5-6 milhões de anos, enquanto se acredita que o homo sapiens tenha por volta de 200 mil anos. Como as pessoas eram educadas antes das atuais escolas, i.e., durante praticamente toda a nossa história?
É óbvio que não se via necessidade e nem havia grande conhecimento disponível em disciplinas especializadas como a química e a geografia, exceto por uns poucos aspectos de importância prática mas que não eram sequer racionalizados à luz do método científico (que é também uma realização relativamente recente).
Os humanos eram educados em casa, primariamente por seus pais e as pessoas mais próximas, em termos familiares e geográficos. Conforme o corpo e a complexidade do conhecimento foram sendo estendidos, foi se estendendo também o escopo da educação a ser fornecida às crianças. Não é incomum na literatura de séculos anteriores à expansão global do método prussiano os relatos da presença de tutores e de mentores, que tinham como objetivo ensinar e direcionar os estudos de seus pupilos. É bem verdade que essa era uma prática restrita às castas mais altas da sociedade, mas vale lembrar que o conhecimento da época não tinha grande valor prático, ou seja, não se esperava que um camponês pudesse aumentar drasticamente a sua produção na lavoura por meio dos estudos. Assim, as classes mais baixas não tinham grandes aspirações intelectuais.
O intervalo de pouco mais de um século de educação coletivizada e compulsória nos moldes que temos hoje é insignificante na escala de tempo em que se dá a existência da humanidade. Em efetivamente toda a sua história, o homem foi educado em casa por aqueles diretamente relacionados a ele. Portanto, se um destes modelos educacionais deve ser encarado como um experimento, com certeza deveria ser a escola como temos hoje.
Você não é suficientemente qualificado para educar seus filhos
Há diversas formulações dessa frase, mas no fundo se resumem a tentar convencer os pais de que eles não são capazes de educar seus filhos. Afinal, de acordo com o senso comum e a propaganda ao redor desse tema, a dádiva da educação não pode ser encontrada em reles mortais, mas sim passada apenas aos escolhidos ao longo de tortuosos anos de faculdade, e, às vezes, seguidos de pós-graduação (que, a bem da verdade, é cursada na esmagadora maioria dos casos apenas por quem almeja cargos administrativos, sem muita relação com considerações pedagógicas). Caso você não seja um seleto membro deste grupo, não há escolha a não ser se conformar que os seus filhos estarão sendo mais bem formados numa escola.
Se você chegou até esse ponto do texto, assume-se que saiba ler. E que, por conseguinte, também saiba escrever. Se é esse o caso, considere-se apto a educar seus filhos. Vou mais longe a ponto de dizer que se é esse o seu caso, o Homeschooling é não apenas possível, mas sim muito superior à educação pública. Explico: Enquanto pesquisas apontam que as turmas deveriam ser menores do que 20 alunos, a realidade brasileira são turmas de mais de 30 alunos e ver salas de aula com mais de 40 alunos não é incomum. O professor, ainda que fosse magnanimamente bem intencionado, é incapaz de manter o controle e dar a atenção necessária a cada criança. Além disso, a rígida estrutura cronológica da escola, onde as aulas têm uma duração predeterminada, não se adapta às necessidades de cada aluno. Alunos mais devagar – ou menos – tendem a ficar desencorajados ou entediados. Não há espaço na escola para um aluno que queira se aprofundar num determinado assunto além daquilo que o professor está disposto a lecionar ou do que é previsto pelo programa pedagógico, criado por profissionais ou por burocratas que não tem nenhuma ciência das necessidades e particularidades de cada criança.
Por outro lado, o Homeschooling permite um altíssimo grau de flexibilidade na educação das crianças, indo desde a escolha do método, de materiais e de currículos até mesmo a horários e atividades. Tão importante quanto esse aspecto é o fato de que, ao contrário da interação um tanto impessoal entre o professor e o aluno, ninguém tem maior interesse e incentivo em fazer com que seus filhos sejam bem sucedidos quanto os pais. Essa conjunção de liberdade pedagógica e o vínculo afetivo é algo que não pode ser reproduzido em ambiente escolar, independente da sua qualidade ou de ser pública ou particular.
Se o pai interessado em Homeschooling sabe ler e escrever, então ele provavelmente tem acesso a algum material didático que cobre esses tópicos (esse tipo de material pode ser facilmente encontrado na internet), assim como os temas mais simples e fundamentais, como aritmética, que costumam ser de fácil entendimento e para os quais há uma grande variedade de opções.
Ninguém espera (ou não deveria esperar) que os pais que praticam Homeschooling sejam experts em todas as áreas do conhecimento. Isso nos leva a outro ponto onde o Homeschooling supera a educação “convencional”, que é o foco em se aprender a estudar e a formar autoditadas, contrário ao modelo de aprendizado passivo onde se senta numa sala de aula e se espera que o professor transfira seu conhecimento aos seus pupilos.
Assim, quando as crianças atingem uma idade onde começam a se interessar por assuntos e abordagens mais sofisticadas, elas normalmente já aperfeiçoaram a prática de estudar por conta própria e o papel dos pais passa a ser auxiliar na busca de material didático de acordo com as necessidades das crianças e a supervisionar o progresso de seus filhos.
O Homeschooling não requer tanta formação acadêmica quanto demanda planejamento e dedicação. Glenn Doman, em seu famoso livro How to Teach Your Baby to Read, traz diversos exemplos de pais com pouca escolaridade formal que foram bem sucedidos em ensinar seus filhos a ler muito antes da idade escolar. Hoje, com a internet, há um sem número de métodos, práticas e materiais de fácil acesso que foram consolidados ao longo de décadas/séculos (infelizmente, a maioria em língua inglesa), muitos dos quais de custo baixo ou mesmo gratuitos.
“Mas e a socialização?”
Que o atual sistema educacional é completamente ineficiente, não é novidade para ninguém. Assim como a maioria da população tem algo a se queixar da democracia, mas ela se perpetua por ser “um mal necessário”, assim também é a visão do populacho sobre o sistema educacional atual. Quando confrontados com essa realidade e o Homeschooling como substituto viável, dúvidas quanto a qualidade do ensino se dissipam e o último subterfúgio é costumeiramente algum tipo de desconfiança e ceticismo quanto à capacidade de crianças educadas em casa serem adequadamente socializadas.
A tal socialização que supostamente só pode ocorrer na escola, tem um efeito colateral inerente à forma com a qual é estruturada: o Bullying. O Bullying, ao contrário do que se noticia nos dias de hoje, não é uma epidemia ou um produto da modernidade, mas uma constante que não se pode separar da escola. Talvez a tecnologia atual nos faça mais cientes desse problema, mas não tem como não haver Bullying se pessoas são forçadas a conviver com aqueles com os quais eles não têm nenhum tipo de afinidade ou ponto em comum.
Além disso, a escola torna os pais mais negligentes pois ela se arroga de obrigações que são dos pais e os pais, por sua vez, se tornam cada vez mais alheios à educação e à formação de seus filhos. Não pretendo dizer que a escola exclui qualquer tipo de socialização, mas que a “boa” socialização que ela pode proporcionar é inseparável do Bullying. Aos que podem rebater ao dizer que isso de alguma forma não é tão ruim e que não devemos ser “super protetores”, eu cito um trecho de um artigo de Matt Walsh, veemente detrator do sistema educacional presente, em particular das escolas públicas:
“Então eu vou mandar meu filho à escola pública em seus anos de formação, observar enquanto seus colegas famintos por atenção tentam estraçalhá-lo emocionalmente pela próxima década, e então, no fim de tudo isso, ele estará socializado? Sério? O que vem depois? Eu deveria entrar numa banheira cheia de esgoto e hepatite para melhorar minha “saúde e higiene”? Obrigado, mas eu passo, nos dois casos.”
Nos EUA, onde o Homeschooling é uma prática comum, é bastante raro uma família praticá-lo numa espécie de vácuo social. Grande parte das famílias são afiliadas a grupos e cooperativas onde as crianças participam de diversas atividades para promover a socialização. Isso não implica que essa interação seja livre de potenciais conflitos. Em primeiro lugar, as crianças são frequentemente incentivadas a lançar mão de formas pacíficas de resolução de conflitos. Num evento irreconciliável, sempre existe a possibilidade que os pais simplesmente se desliguem do grupo e busquem por outro, o que raramente ocorre. Simplesmente se desligar de uma escola, se possível, é algo muito mais difícil na prática. Outro ponto positivo desses grupos e que tem a ver com o tópico anterior é que eles permitem que pais com conhecimento específico em certas áreas sirvam como tutores às outras crianças. É bastante comum em grupos de Homeschooling eventos e atividades como feiras de ciências, corais, bandas, recitais, oficinas de artesanato, etc.
Apesar de todas as barreiras impostas ao Homeschooling, seja a carência de material adequado em português, a legislação relacionada que é mal delineada e a ignorância geral sobre o tema, ele vem crescendo a passos largos no Brasil. Ainda há um longo caminho a ser percorrido e por mais que esse artigo não tenha a pretensão de sanar os dois primeiros problemas, ele tenta lançar um pouco de luz e remediar a cultura de rejeição instintiva e infundada à essa antiga prática de eficácia e sucesso comprovados.
EXCELENTE texto!
Os artigos são muito bons, parabéns pelo serviço que prestam.
Poderíamos lutar por uma educação publica de qualidade para todos…ao invés de pensarmos somente no nosso umbigo
Não poderíamos por muitos motivos, mas principalmente pq não acreditamos em utopias e somos contra roubar de uns para pagar escola para outros.
Excelente artigo. Eu já era suscetível a ideia, mas confesso que tinha alguns receios que foram extinguidos após a leitura. Daniel Chaves Claudino foi cirúrgico em seus argumentos e, deveras jogou luz, nas lacunas de minha mente. Tenho 19 anos e por enquanto não penso em ter filhos, mas já me imagino como pai e, praticando o Homeschooling com o pequeno.
Excelente texto!