Sobre o valor-trabalho e as cinco exceções factuais negligenciadas por Marx

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Continuação deste artigo anterior.

A experiência mostra que o valor de troca está em relação com a quantidade de trabalho apenas em parte dos bens, e, mesmo nesses, isto só acontece incidentalmente.  A relação factual, embora seja muito conhecida em decorrência da obviedade dos fatos em que se baseia, é raramente levada em conta.  Todo mundo — inclusive os intelectuais socialistas — concorda que a experiência não confirma inteiramente o princípio do trabalho.  Frequentemente encontramos a opinião de que os casos em que a realidade está de acordo com o princípio do trabalho formam a regra geral, e que os casos que contrariam esse princípio são uma exceção bastante insignificante.  Essa ideia é muito errônea.  Para corrigi-la de uma vez por todas, pretendo reunir as “exceções” que proliferam no início do trabalho, dentro da ciência econômica.  Verão que as “exceções” são tão numerosas, que pouco sobra para a “regra”.

1) Em primeiro lugar, todos os “bens raros” foram excluídos do princípio do trabalho. Esses são todos os bens que não podem nunca — ou só podem limitadamente — ser reproduzidos em massa, por algum impedimento objetivo ou legal.  Ricardo menciona, por exemplo, estátuas e quadros, livros raros, moedas raras, vinhos excelentes, e comenta ainda que esses bens “são apenas uma parte muito pequena dos bens diariamente trocados no mercado”.  Se pensarmos que nessa mesma categoria se situam, além da terra, todos os inúmeros bens cuja produção está relacionada à patente de invenção, direitos autorais ou segredo industrial, não se consideraria insignificante a extensão de tais bens.

2) Todos os bens que não se produzem por trabalho comum, mas qualificado, são considerados como exceção. Embora nos produtos diários de um escultor, de um marceneiro especializado, de um fabricante de violinos ou de um construtor de máquinas, não se corporifique mais trabalho do que no produto diário de um simples trabalhador manual, ou de um operário de fábrica, os produtos dos primeiros frequentemente têm valor de troca mais elevado — às vezes muito mais elevado — que os dos segundos.

Os defensores da teoria do valor-trabalho naturalmente não puderam ignorar essa exceção.  Porém, singularmente, fazem de conta que isso não é exceção, mas apenas uma pequena variante, que ainda se mantém dentro da regra.  Marx, por exemplo, considera o trabalho qualificado apenas um múltiplo do trabalho comum. “O trabalho complexo”, diz ele, “vale só como trabalho comum potenciado, ou multiplicado.  Assim, uma pequena quantidade de trabalho complexo equivale a uma quantidade maior de trabalho comum.  A experiência nos mostra que essa redução acontece constantemente.  Uma mercadoria pode ser produto de um trabalho complexo mas, se seu valor a iguala ao produto de trabalho comum, ela passa a representar apenas determinada quantidade de trabalho comum”.

Eis urna obra-prima de espantosa ingenuidade!  Não há nenhuma dúvida de que em muitas coisas — por exemplo, no valor monetário — um dia de trabalho de um escultor pode valer cinco dias de trabalho de um cavador de valetas.  Mas que 10 horas de trabalho do escultor sejam realmente 60 horas de trabalho comum, certamente ninguém pretende afirmar.  Acontece que, para a teoria — assim como para se estabelecer o princípio do valor — não importa o que as pessoas pretendem, e sim o que é real.  Para a teoria, o produto diário do escultor continua sendo produto de um dia de trabalho.  Se, por acaso, um bem que seja produto de um dia de trabalho vale tanto quanto outro bem que seja produto de cinco dias de trabalho, não importa o que as pessoas queiram que ele valha.

E aí está uma exceção à regra — que se quer impor — de que o valor de troca dos bens se mede pela quantidade de trabalho humano neles corporificado.  Imaginemos uma ferrovia que determinasse suas tarifas segundo a extensão do trajeto exigido por passageiros e cargas, mas que determinasse também que, dentro de um trecho com operações particularmente dispendiosas, cada quilômetro fosse computado como dois quilômetros.  Será possível a alguém dizer que a extensão do trajeto é o único princípio para a determinação das tarifas da ferrovia? Certamente não; finge-se que sim, mas, na verdade, o princípio é modificado levando em conta a natureza do trajeto.  Assim também; apesar de todos os artifícios, não se pode salvar a unidade teórica do princípio do trabalho.

Essa segunda exceção abrange também significativa parcela dos bens comerciais, o que não deve ser necessário explicar mais detidamente.  Se quisermos ser rigorosos, estão aí contidos praticamente todos os bens, uma vez que na produção individualizada de quase todos os bens entra em jogo ao menos um pouco de trabalho qualificado: o trabalho de um inventor, de um diretor, de um capataz etc.  Isso eleva o valor do produto a um nível um pouco acima daquele que corresponderia apenas à quantidade de trabalho.

3) A quantidade de exceções aumenta com o número bastante grande de bens produzidos por trabalho extraordinariamente mal pago.  É sabido que — por razões que aqui não se precisa mencionar — em certos ramos da produção o salário de trabalho está sempre abaixo do mínimo necessário para a sobrevivência, como, por exemplo, no caso do trabalho manual feminino, como bordados, costura, malharia etc.  Os produtos dessas ocupações têm, então, um valor extraordinariamente baixo.  Não é incomum que o produto de três dias de trabalho de uma simples costureira não valha nem mesmo o produto de dois dias de uma operária de fábrica.

Todas as exceções que mencionei até aqui eximem certos grupos de bens da validade da lei do valor do trabalho, reduzindo, pois, o campo de validade desta própria lei.  Na verdade, deixam para a lei do valor do trabalho apenas aqueles bens para cuja reprodução não há qualquer limite, e que nada exigem para sua criação além de trabalho.  Mas mesmo esse campo de aplicabilidade tão reduzido não é dominado de modo absoluto pela lei do valor do trabalho: também aí, algumas exceções afrouxam sua validade.

4) Uma quarta exceção do princípio do trabalho é formada pelo conhecido e admitido fenômeno de que também aqueles bens cujo valor de troca se harmonize com a quantidade de custos de trabalho não demonstram tal harmonia em todos os momentos.  Ao contrário: pelas oscilações de oferta e procura, frequentemente o valor de troca sobe ou desce além ou aquém daquele nível que corresponderia ao trabalho corporificado naqueles bens, trabalho esse que só determinaria um ponto de gravitação, não uma fixação do valor de troca.

Parece-me que os defensores socialistas do princípio do trabalho também se ajeitam depressa com essa exceção. Constatam-na, sim, mas a tratam como uma pequena irregularidade passageira, que em nada prejudica a grande “lei” do valor de troca.  Mas não se pode negar que tais irregularidades não são mais que exemplos de valores de troca regulados por outros motivos que não a quantidade de trabalho.  Esse fato deveria provocar pelo menos uma investigação, no sentido de examinar a possibilidade de existir um princípio mais geral do valor de troca, que explicaria não só os valores de troca “regulares”, mas também aqueles que — do ponto de vista da teoria do trabalho — são tidos como irregulares.  Nenhuma investigação desse tipo será encontrada entre os teóricos dessa linha.

5) Por fim, vemos que, além dessas oscilações momentâneas, o valor de troca dos bens se desvia da quantidade de trabalho que eles corporificam, de maneira considerável e constante.  De dois bens cuja produção exige exatamente a mesma quantidade média de trabalho, aquele que exigiu maior quantidade de trabalho “prévio” vale mais.  Como sabemos, Ricardo comentou extensamente essa exceção do princípio de trabalho, em duas seções do Capitulo I de suas Grundsätze.  Marx a ignorou na formulação de suas teorias,[1] sem a negar expressamente, o que não poderia fazer: é conhecido demais, para admitir dúvidas, o fato de que o valor de um tronco de carvalho centenário é mais elevado do que o correspondente ao meio-minuto que sua semeadura requer.

Vamos resumir: parcela considerável dos bens não faz parte daquela presumida “lei” segundo a qual o valor dos bens é determinado pela quantidade de trabalho neles corporificada, e o restante dos bens nem obedece sempre, nem com exatidão.  Esse é o material empírico que serve de base para os cálculos do teórico do valor.

Que conclusão um investigador imparcial pode tirar?  Certamente não será a de que a origem e medida de todo valor se fundamenta exclusivamente no trabalho. Uma conclusão dessas não seria em nada melhor do que aquela a que se poderia chegar, pelo método experimental, a partir da constatação de que a eletricidade vem não só do atrito, mas também de outras fontes: toda eletricidade provém de atrito.

Em contrapartida, pode-se concluir que o dispêndio de trabalho exerce ampla influência sobre o valor de troca de muitos bens.  Mas não como causa definitiva, comum a todos os fenômenos de valor, e sim como causa eventual, particular.  Não haverá a necessidade de procurar uma fundamentação interna para essa influência do trabalho sobre o valor, pois ela não seria encontrada.  Pode também ser interessante — além de importante — observar melhor a influência do trabalho sobre o valor dos bens, e expressar esses resultados na forma de leis.  Mas não se pode esquecer que estas não serão mais que leis particulares, que em nada atingem a essência do valor.

Para usar de uma comparação: leis que formulam a influência do trabalho no valor dos bens estão para a lei geral do valor mais ou menos como a lei “Vento oeste traz chuva” está para uma teoria geral da chuva.  Vento oeste é uma causa eventual de chuva, como o emprego de trabalho é causa eventual do valor dos bens.  Mas a essência da chuva se fundamenta tão pouco no vento oeste quanto o valor se fundamenta no emprego de trabalho.

Marx agravou o erro de Ricardo

O próprio Ricardo ultrapassou um pouco as fronteiras legítimas. Ele sabia muito bem que sua lei do valor do trabalho era somente uma lei particular de valor, e que o valor dos “bens raros”, por exemplo, tem outros fundamentos.  Mas Ricardo engana-se na medida em que valoriza demais o campo de abrangência dessa lei, atribuindo-lhe uma validade praticamente universal.  A este engano pode-se relacionar o fato de que, em fases posteriores, ele praticamente não dá mais atenção às exceções, pouco valorizadas, que no começo de sua obra mencionara com bastante acerto.  E muitas vezes — injustamente — fala de sua lei como se ela fosse realmente uma lei universal de valor.

Foram os seus sucessores — que ampliaram o campo de abrangência dessa lei — que caíram no erro quase inconcebível de apresentar o trabalho, com pleno e consciente rigor, como princípio universal de valor.  Digo “erro quase inconcebível”, pois, com efeito, é difícil acreditar que homens de formação teórica pudessem firmar, depois de reflexão madura, uma doutrina que não podiam apoiar em coisa alguma: nem na natureza da coisa, uma vez que nesta natureza não se revela absolutamente nenhuma relação necessária entre valor e trabalho; nem na experiência, pois esta, ao contrário, mostra que o valor geralmente não se coaduna com o dispêndio de trabalho; nem mesmo, por fim, nas autoridades, pois as autoridades invocadas jamais afirmaram o princípio com aquela pretendida universalidade que agora lhe era conferida.

Mas os seguidores socialistas da teoria da exploração, quando apresentam um princípio tão precário, não o colocam numa posição secundária, em algum ângulo inofensivo de sua doutrina teórica.  Colocam-no no topo de suas afirmações práticas mais importantes. Sustentam que o valor de todas as mercadorias repousa no tempo de trabalho nelas corporificado.  Em outro momento, atacam todos os valores que não se coadunam com essa “lei” (por exemplo, diferenças de valor que recaem como mais-valia para os capitalistas), dizendo-os “ilegais”, “antinaturais” e “injustos”, e condenando-os a anulação.

Portanto, primeiro ignoram a exceção e proclamam a lei do valor como sendo universal.  Em seguida, após terem obtido, sub-repticiamente, a universalidade dessa lei, voltam a prestar atenção às exceções, rotulando-as de infração dessa lei.  Com efeito, tal argumentação não é muito melhor do que a de alguém que constate que existe gente louca — ignorando que também há gente sensata — e que, a partir desta constatação, chegue a uma “lei de valor universal” segundo a qual “todas as pessoas são loucas”, exigindo que se exterminem todos os sábios, considerados “fora da lei”.

 


[1] Marx só lhe dá atenção expressa no terceiro volume, póstumo, como era de se esperar, e, como resultado, entra em contradição com as leis do primeiro volume que tinha construído sem levarem em conta a exceção.

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Eugen von Böhm-Bawerk
Eugen von Böhm-Bawerk foi um economista austríaco da Universidade de Viena e ministro das finanças. Desvendou a moderna teoria intertemporal das taxas de juros em sua obra Capital and Interest. Em seu segundo livro, The Positive Theory of Capital, ele continuou seus estudos sobre a acumulação e a influência do capital, argumentando que há um período médio de produção em todos os processos produtivos. Sua ênfase na importância de se pensar claramente sobre taxas de juros e sua natureza intertemporal alterou para sempre a teoria econômica. Böhm-Bawerk tornou-se famoso por ser o primeiro economista a refutar de forma completa e sistemática a teoria da mais-valia e da exploração capitalista.

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