Sobre reservas de 100%, Milei e Argentina

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Sem surpresa, os planos de reforma monetária de Javier Milei são discutidos intensamente nos círculos libertários. Pela primeira vez, uma verdadeira reforma libertária do sistema monetário e financeiro está à vista. Um dos principais pontos de discórdia é o plano de Milei de introduzir um sistema bancário de reserva de 100%. Tal movimento seria verdadeiramente revolucionário. O sistema bancário argentino seria sólido e estável. A expansão prejudicial do crédito seria descartada. Infelizmente, mas talvez não surpreendentemente, banqueiros de reserva fracionária vieram a público criticar o plano de Milei.

Neste contexto, encontramos um vídeo do economista espanhol Juan Ramón Rallo que ele produziu em resposta a uma breve nota de Jesús Huerta de Soto, respondendo por sua vez a outro vídeo de Rallo, onde Rallo critica o índice de reserva de 100%. Huerta de Soto declarou que o debate está encerrado e não vai continuar a responder. Sobretudo, porque todos os argumentos de Rallo são tratados em detalhe no conhecido livro de Huerta de Soto Moeda, Crédito Bancário e Ciclos Econômicos (quarta edição).

No entanto, gostaria de comentar brevemente o vídeo de Rallo.

Rallo, seguindo sua teoria da liquidez feketiana, argumenta, por exemplo, que a expansão do crédito impulsionada pelos bancos de reservas fracionárias é limitada, quando não há um banco central que possa socorrer os bancos, porque os bancos tomam cuidado para não deixar sua liquidez se deteriorar demais. Isso mostra, mais uma vez, como a abordagem da liquidez obscurece a visão sobre o que é mais importante, a saber, os efeitos da expansão do crédito gerada pelo sistema bancário de reservas fracionárias sobre a estrutura de bens de capital. Na verdade, a teoria austríaca do capital está completamente ausente no vídeo e em toda a teoria de Rallo, e ainda assim a teoria do capital é crucial.

Assim, em primeiro lugar, o vídeo não leva em conta a teoria austríaca do capital e a teoria austríaca dos ciclos econômicos desenvolvida por Mises e Hayek. Ele ignora o fato de que qualquer criação de meios fiduciários por meio da expansão do crédito de bancos de reservas fracionárias reduz artificialmente as taxas de juros. Essa injeção de meios fiduciários pelos bancos de reservas fracionárias sempre distorce a estrutura de produção, pois a relativa diminuição da taxa de juros faz com que projetos de investimento que não seriam rentáveis com taxas mais altas, pareçam lucrativos. São empreendidos projetos mais ambiciosos e insustentáveis com as escassas economias da sociedade. Após o boom artificial impulsionado pela expansão do crédito, inevitavelmente uma recessão se instala. E na recessão, os investimentos e ativos dos bancos sofrem pesadas perdas. Os empréstimos inadimplentes aumentam. Neste momento, os clientes perdem a confiança nos bancos e vão en masse sacar os seus depósitos. É quando surgem as corridas bancárias na ausência de um banco central que possa socorrer os bancos. Ignorar a teoria do capital e que toda expansão do crédito causa ciclos econômicos é o mesmo erro que George Selgin comete, e que o professor Huerta de Soto desmonta em detalhes no capítulo 8 de seu livro. Portanto, o fato de os sistemas bancários de países dolarizados como Panamá e Equador terem sobrevivido até agora não significa que eles sobreviverão indefinidamente, uma vez que estão sujeitos ao risco crônico de que seus bancos iniciem uma expansão de crédito (em uníssono ou não). O mesmo risco crônico também é enfrentado pela empresa Tether mencionada por Rallo, que nada mais é do que um banco sombra que opera com um índice de reserva de 10% e, embora tenha conseguido sobreviver às suas corridas até agora, dada a liquidez dos ativos em que investe, não há garantia de que não desapareça no futuro, já que seu modelo de negócio está sempre no fio da navalha.

Em segundo lugar, Rallo quer assustar os argentinos com o risco de deflação e recessão crônica que 100% das reservas supostamente gerariam. O medo da deflação é usado justamente para justificar uma oferta monetária “flexível”, ou seja, um sistema bancário com reservas fracionárias; um sistema que cria grandes quantias de dinheiro (na forma de meios fiduciários) para seu próprio benefício sem o conhecimento ou controle de ninguém (aproveitando-se de uma “senhoriagem” idêntica à do falsificador).

No meu livro Em Defesa da Deflação dediquei-me a desmontar todos os argumentos contra a deflação em um mercado livre, e que geralmente são empregados para justificar a inflação. Por um lado, a deflação de preços como resultado do aumento da produtividade é uma coisa maravilhosa. É como um dividendo de crescimento que é dado a toda a população. Por outro lado, a deflação de preços como resultado de um aumento na demanda por moeda é a solução para o desejo de aumentar os saldos reais de caixa dos agentes econômicos. E como as compras e vendas marginais que os indivíduos fazem para atingir esse objetivo variam, o mesmo acontece com os preços relativos, como consequência natural de suas avaliações subjetivas. Finalmente, após uma expansão do crédito e um boom artificial, e se não há um banco central para inflar a oferta monetária, geralmente há uma contração do crédito que gera forte deflação de preços. Essa crise de crédito é uma reação do mercado à agressão monetária anterior dos bancos de reservas fracionárias e acelera a recuperação, expurgando os desinvestimentos mais rapidamente.

Mas, além disso, no sistema de dolarização na Argentina, com uma taxa de reserva de 100% proposta por Milei, talvez os preços nem caíam. A oferta monetária argentina aumentaria com a entrada de dólares que inundaria a Argentina quando a demanda argentina por dinheiro aumentasse. Não haveria necessidade de ajustes artificiais e significativos de preços para baixo, porque imediatamente dólares estrangeiros inundariam o país.

Rallo destaca esse suposto risco deflacionário para justificar sua neutralização com a emissão do meio fiduciário, ocultando o fato de que a introdução do meio fiduciário como empréstimos reduz artificialmente a taxa de juros e gera desinvestimentos.

Além disso, apenas o índice de reserva de 100% imuniza o sistema das contrações bruscas da oferta monetária que a reserva fracionária gera ciclicamente, forçando deflações e recessões muito mais agudas e dolorosas (embora essas contrações de crédito acelerem a recuperação ao liquidar os desinvestimentos mais rapidamente).

Em terceiro lugar, a interpretação de Rallo sobre a criação de bancos centrais está errada. Esconde o caso bem documentado e paradigmático da criação do Federal Reserve nos EUA, que surge a mando dos próprios banqueiros privados (J.P. Morgan e Rockefeller) para conseguir um credor de última instância.[1]

Em quarto lugar, Rallo estende indevidamente o coeficiente de reserva de 100% aos fundos mútuos do mercado monetário quando estes não representam qualquer problema do ponto de vista dos defensores de um sistema bancário com reservas a 100%.[2] Os fundos mútuos do mercado monetário apenas garantem o retorno do que foi investido pelo seu preço de mercado, não pelo seu valor nominal. Portanto, os fundos mútuos monetários não podem ser equiparados a operações que, fraudando à lei, ocultam um depósito à ordem com uma compensação a qualquer momento de seu valor nominal (com um contrato de recompra, etc.).

Em quinto lugar, vale mencionar também a recomendação do professor Huerta de Soto de considerar como depósitos empréstimos com prazo inferior a 30 dias. Um “empréstimo” auto-renovado com um prazo de 1 segundo é equivalente a um depósito à ordem e, portanto, também é obrigado a ter um coeficiente de reserva de 100%. O mesmo vale para um empréstimo rotativo automático de uma hora, duas horas ou um dia. Agora, a questão é onde está o prazo em que o instrumento financeiro que replica o depósito à ordem se torna um empréstimo genuíno? E a solução prática e conservadora aplicável aos bancos privados proposta pelo professor Huerta de Soto é o prazo inferior a 30 dias, onde geralmente começa a demanda por empréstimos bancários comerciais. Por outro lado, os particulares já estão sujeitos às penas do Código Penal por apropriação indébita de depósitos e equivalentes em detrimento da interpretação pelos tribunais das circunstâncias particulares de cada caso. E em um sistema puramente anarcocapitalista, a prática e o costume estabeleceriam a fronteira temporal entre depósitos e empréstimos.

A conclusão paradoxal é que o banco de reservas fracionárias induz a criação de credores de última instância (bancos centrais) que, por sua vez, tornam o banco de reservas fracionárias muito mais prejudicial. Os defensores das reservas fracionárias acreditam ingenuamente que, ao eliminar os bancos centrais, as reservas fracionárias e a expansão do crédito de repente se tornam uma coisa boa. Mas, embora a eliminação dos bancos centrais melhore as coisas para o banco de reservas fracionárias aumentando os índices de reserva, ela ainda não eliminaria seu pecado original: a criação de meio fiduciário sempre gera ciclos desestabilizadores, como demonstra a teoria da Escola Austríaca (Hayek e Mises) que Rallo ignora. Na menor crise, que mais cedo ou mais tarde sempre resulta do desinvestimento induzido pela criação de meios fiduciários, surge novamente a demanda popular de criar um banco central para salvar os banqueiros e depositantes afetados, e assim por diante, e assim por diante, novamente. O banco de reservas fracionárias cria uma situação instável e paradoxal que só pode ser resolvida definitiva e completamente com o índice de reservas de 100% e a eliminação dos bancos centrais. Por fim, quero ressaltar que qualquer pessoa interessada no debate, antes de se posicionar, deve ler Moeda, Crédito Bancário e Ciclos Econômicos, que está em sua oitava edição, e meu próprio livro Full Reserve Banking versus the Real Bills Doctrine, que será publicado em breve pelo Ludwig von Mises Institute.

 

 

 

Artigo original aqui

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Notas

[1] Ver, por exemplo, Pelo fim do Banco Central.

[2] Ver, por exemplo, Bagus, P., Howden, D., & Gabriel, A. (2015). “Óleo e água não se misturam”, ou: “Aliud est credere, aliud deponere”. Journal of Business Ethics, 128(1), 197–206; ou Bagus, P., Howden, D. & Gabriel, A. A Hubris dos Híbridos. (2017) Journal of Business Ethics 145, 373–382.

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