Sociedade vs Estado: Canadá revela o conflito central de nossa era

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O confronto de Justin Trudeau contra os caminhoneiros canadenses pode ser o evento mais significativo da pandemia de Covid – não por seu eventual resultado, seja ele qual for, mas pelo que simboliza. Captura, em um perfeito microcosmo, as tensões entre os imperativos concorrentes de nossa era: liberdade versus segurança; Estado de direito versus governança flexível “responsiva”; as prioridades dos trabalhadores versus as da burguesia do home office; a necessidade de interação e pertencimento humano no mundo real versus as promessas de esplêndido isolamento online; as experiências do homem comum, que sabe de verdade onde dói, versus as da classe profissional especializada, que não sabe nada que não possa ser expresso por uma fórmula.

Mais do que tudo isso, porém, este conflito nos fornece uma lente através da qual podemos ver um conflito muito mais profundo, muito mais antigo e de escopo muito maior – um que está subjacente não apenas às lutas da era Covid, mas da própria modernidade. De um lado, o Estado, que busca tornar toda a sociedade transparente ao seu poder. Do outro, fontes alternativas de autoridade – a família, a igreja, a comunidade, a empresa, a fazenda e o próprio indivíduo humano.

Durante séculos, o estado travou uma guerra silenciosa contra esses concorrentes e os fez curvar à sua vontade. Ele fez isso não por meio de conspiração ou estratégia deliberada, mas meramente por meio da tentativa obstinada, através de geração após geração de líderes políticos, de alcançar um objetivo: legitimidade. Governos e outros órgãos estatais obtêm sua legitimidade e, portanto, suas posições como governo, por meio do convencimento da população de que eles são necessários.

Eles fazem isso sugerindo que, sem sua intervenção, as coisas seriam horríveis; deixados por conta própria, as pessoas comuns sofrerão. A família, a igreja, a comunidade, a empresa, a fazenda, o indivíduo humano – estes são inadequados para a tarefa de assegurar o bem-estar humano. Somente o Estado é capaz de realizar essa tarefa, pois somente o Estado pode manter a população educada, saudável, segura, próspera e satisfeita. Sendo assim, apenas o Estado está apto a exercer o poder – e somente aqueles que controlam o Estado estão aptos a governar.

A lógica desse argumento pode ser claramente vista na resposta à Covid em todo o mundo desenvolvido. O que nos manterá “seguros?” Certamente não fontes tradicionais de ajuda, como a igreja ou a família. Certamente não pessoas individuais, em quem não se pode confiar que ajam de forma responsável ou avaliem os riscos por si mesmos.

Não – é apenas o estado, primeiro com seus lockdowns, depois com seu distanciamento social, seus decretos de máscaras, seus programas de vacinas e, ultimamente, suas obrigatoriedades de vacinas com seus “passaportes”. E como somente o Estado pode nos salvar, ele é a única fonte legítima de autoridade – junto, é claro, com seus líderes.

O Estado que dessa maneira alega ser o salvador é patentemente fraudulento e ridículo, considerando o que aconteceu nos últimos dois anos. Mas, por mais fraudulento e ridículo que seja, ele continua sendo a justificativa por trás de toda a política Covid. Justin Trudeau deve tirar sua legitimidade de algum lugar para manter o poder. E ele sente – como o animal político que ele é – que pode tirar ela ao exibir o estado canadense (com ele mesmo no leme, é claro) como a única coisa que está entre o público canadense e o sofrimento e a morte.

É o estado, lembre-se – neste caso com seus decretos de vacinas – que salva e protege. Sem isso, segue o raciocínio, a população sofreria e morreria enquanto o Covid se espalhava. A lógica política é inescapável. Para um homem como Trudeau, sem princípios, exceto o de que só ele está apto a governar, há apenas um caminho a seguir. Insistir que é o estado que salva e protege, e que qualquer coisa que esteja em seu caminho –caminhoneiros, tomem cuidado – deve, portanto, ser esmagado por sua bota.

Os caminhoneiros, por sua vez, representam tudo o que o Estado despreza. Eles têm um poder social e político que é independente do Estado e, portanto, formam uma das fontes alternativas de poder que ele odeia e teme. Esse poder deriva não de alguma instituição que os caminhoneiros dominam, mas simplesmente de seu status entre o que chamarei de classe dos pequenos proprietários – quase o último bastião de autossuficiência e independência em uma sociedade moderna como a do Canadá.

Em uma economia desenvolvida, a maioria das classes profissionais – médicos, acadêmicos, professores, funcionários públicos e afins – derivam sua renda e status total ou parcialmente, direta ou indiretamente, da existência do Estado. Se eles não são funcionários públicos, seu status é construído sobre aparatos regulatórios que somente o Estado pode construir e fazer cumprir. Isso também se aplica, é claro, à classe baixa, que muitas vezes são quase totalmente dependentes do Estado para o atendimento de suas necessidades. Os membros dessas classes não representam nenhuma ameaça à legitimidade do Estado, porque, simplesmente, eles precisam dele. Como consequência, o Estado não vê problema nenhuma em tolerar a existência deles – e, de fato, deseja que toda a sociedade esteja inclinada a isso. Uma população inteiramente dependente do Estado é aquela que nunca questionará a necessidade do crescimento de seu poder e, portanto, sua capacidade de reforçar sua própria legitimidade.

Mas no meio estão aquelas pessoas, a classe dos pequenos proprietários, que obtém sua renda de fontes privadas, como comerciantes individuais, proprietários de pequenas empresas ou funcionários de pequenas e médias empresas. De mentalidade independente, vendo a auto-suficiência como uma virtude e confiando em si mesmos e em seus relacionamentos com os outros em vez do Estado, esses c pequenos proprietários representam uma barreira natural à sua autoridade. Simplificando, eles não precisam do Estado. Eles ganham seu dinheiro através do uso de uma habilidade específica que outros valorizam e, portanto, pagam por ela no mercado aberto.

A existência ou não do Estado é irrelevante para o seu sucesso – e, de fato, muitas vezes está em seu caminho. Este é o tipo de pessoa que, vendo um problema, tende a querer encontrar uma solução. E eles são precisamente o tipo de pessoa que quer decidir se deve tomar uma vacina e avaliar os riscos relacionados à saúde em geral.

O estado moderno tem travado uma guerra incessante e secreta especialmente contra a classe dos pequenos proprietários. A cada passo, procura regular seus negócios, restringir sua liberdade e confiscar sua prosperidade. Há sempre uma razão supostamente “boa” para isso. Mas que contribui para uma diminuição incessante de sua independência e força. Não é por acaso que eles são descritos na linguagem britânica como o ‘squeezed middle’ (‘os esmagados no meio’) – esmagados como estão entre a subclasse dependente do bem-estar social, por um lado, e os profissionais de colarinho branco que extraem sua riqueza, direta ou indiretamente, do estado do outro.

Também não é por acaso que esses pequenos proprietários viram gradualmente sua representação política diminuir ao longo dos últimos 100 anos, em qualquer sociedade desenvolvida que se queira citar; os políticos que eles elegem estiveram principalmente interessados ​​em tirar o Estado do caminho, e todos os incentivos dos políticos modernos vão na direção oposta. Seu interesse está no crescimento inexorável do poder estatal, porque é daí que deriva sua legitimidade.

O desprezo de Justin Trudeau pelos caminhoneiros é, portanto, genuíno e profundo. Ele não vê neles um obstáculo à política Covid ou uma ameaça potencial à saúde pública. Nem mesmo ele poderia ser tão estúpido a ponto de pensar que importa se essas pessoas tomam ou não suas vacinas. Não: ele identifica neles uma barreira para as forças nas quais seu futuro político está baseado – um escopo e escala cada vez maiores para a autoridade governamental e as oportunidades para reforçar sua própria legitimidade que se seguiriam.

E seu desprezo só não é maior, é claro, que seu medo. Porque ele certamente reconhece que sua autoridade é tênue. A legitimidade corta nos dois sentidos. Se ele não conseguir reprimir a revolta dos caminhoneiros, todo o edifício sobre o qual repousa sua autoridade – como timoneiro do estado canadense e sua suposta capacidade de proteger a população do mal – cairá por terra.

Este conflito, portanto, não é sobre Covid – é existencial. Importa alguma coisa se os caminhoneiros ganham ou perdem? Não. O que importa é o que seus esforços nos revelaram sobre a relação entre Estado e sociedade em 2022.

 

 

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