Capítulo 13. Significado e Utilidade do Estudo da História
AOS OLHOS do filósofo positivista o estudo da matemática e das ciências naturais é um preparo para a ação. A tecnologia justifica os esforços do pesquisador experimental; nenhuma justificativa semelhante pode ser feita a favor dos métodos tradicionais aos quais os historiadores recorrem. Segundo o positivista, eles deveriam abandonar seu antiquarianismo acientífico e se voltar para o estudo da física social ou sociologia. Esta disciplina extrairá da experiência histórica leis que poderão prestar ao “engenheiro” social os mesmos serviços que as leis da física prestam à engenharia tecnológica.
Na opinião do filósofo historicista, o estudo da história fornece ao homem as placas que lhe indicam o caminho que ele tem que percorrer. O homem só pode ser bem sucedido se suas ações se encaixarem com a tendência da evolução. Descobrir a direção desta tendência é a principal tarefa da história.
A falência do positivismo e do historicismo levantou novamente a questão a respeito do significado, do valor, e da utilidade dos estudos históricos.
Alguns autodenominados idealistas acreditam que a sede por conhecimento, inata a todos os homens, ou pelo menos aos tipos superiores de homens, responde satisfatoriamente a essas questões. No entanto, o problema é traçar uma fronteira entre a sede por conhecimento que impele o filólogo a investigar o idioma de uma tribo africana e a curiosidade que estimula as pessoas a perscrutar as vidas pessoais de estrelas do cinema. Muitos eventos históricos interessam ao homem médio porque ouvir ou ler sobre eles, ou vê-los representados no palco ou na tela lhes dá sensações agradáveis, às vezes terríveis. As massas que devoram com voracidade as reportagens jornalísticas sobre crimes e julgamentos não são inspiradas pela mesma motivação de Ranke, de conhecer os eventos tais como eles ocorreram. As paixões que motivam essas massas têm de ser lidadas através da psicanálise, não da epistemologia.
A justificativa da história como conhecimento pelo mero conhecimento, feita pelo filósofo idealista, não leva em conta o fato de que certamente há coisas que não vale a pena conhecer. O dever da história não é registrar todos os eventos e coisas passadas, mas apenas aquelas que têm um significado histórico. É, portanto, necessário que se encontre um critério que torne possível peneirar o que é significativo, historicamente, e o que não é. Isto não pode ser feito do ponto de vista de uma doutrina que julga meritório o simples fato de se saber algo.
2. A Situação Histórica
O homem que age se depara com uma situação específica. Sua ação é uma resposta ao desafio que esta situação lhe oferece; é a sua re-ação. Ele avalia os efeitos que a situação terá sobre si mesmo, isto é, tenta estabelecer o que ela significa para ele, e então escolhe e age de modo a obter o fim escolhido.
Na medida em que a situação possa ser descrita integralmente pelos métodos das ciências naturais, em geral, as ciências naturais também podem fornecer uma interpretação que permita ao indivíduo tomar a sua decisão. Se um vazamento num cano foi identificado, o curso de ação a ser tomado é simples, na maior parte dos casos. Quando uma descrição completa de uma situação exige mais do que uma referência aos ensinamentos das ciências naturais aplicadas, o recurso à história torna-se inevitável.
As pessoas frequentemente deixaram de perceber isso porque foram enganadas pela ilusão de que, entre o passado e o futuro, existe uma extensão de tempo que pode ser chamada de presente. Como eu apontei anteriormente,[1] o conceito de tal presente não é uma noção astronômica ou cronométrica, mas praxeológica. Ela se refere à continuação das condições que tornam possível um tipo específico de ação. Além do mais, nunca é possível se saber antecipadamente quanto do futuro, do tempo que ainda não passou, terá que ser incluído no que chamamos hoje de presente. Isto só pode ser decidido em retrospecto. Se um homem afirmar “atualmente as relações entre a Ruritânia e a Laputânia são pacíficas”, não é certo se um registro retrospectivo posterior incluirá o que hoje se chama de amanhã neste período do presente. Esta questão só poderá ser respondida no dia depois de amanhã.
Não existe uma análise não-histórica da situação presente. O estudo e a descrição do presente são, necessariamente, um relato histórico do passado que termina no instante que acabou de passar. A descrição do estado atual da política ou dos negócios é, inevitavelmente, a narração dos eventos que originaram este estado atual. Se, nos negócios ou no governo, um novo homem assumir o comando, sua primeira tarefa será descobrir o que foi feito até o último minuto. O estadista, assim como o homem de negócios, aprende sobre a situação atual ao estudar os registros do passado.
O historicismo estava certo ao enfatizar o fato de que, para se saber algo no campo dos assuntos humanos, deve-se estar familiarizado com a maneira em que estes se desenvolveram. O erro crucial dos historicistas consistiu na crença de que esta análise do passado transmite, por si só, informação acerca do curso que a ação futura tem que tomar. O que o relato histórico fornece é a descrição da situação; a reação depende do significado que quem age atribui a ela, dos fins que ele quer obter, e dos meios que ele escolhe para obtê-los. Em 1860 havia escravidão em muitos estados do país. O registro mais cuidadoso e fiel da história desta instituição em geral e nos Estados Unidos, especificamente, não mapeou as políticas futuras da nação a respeito da escravidão. A situação da fabricação e venda de automóveis que Ford encontrou pouco antes de dar início à produção em massa não indicava o que deveria ser feito neste campo dos negócios. A análise histórica dá um diagnóstico; a reação é determinada, no que diz respeito à escolha dos fins, por julgamentos de valor e, no que diz respeito à escolha dos meios, por todo o corpo de ensinamentos disponibilizados para o homem pela praxeologia e pela tecnologia.
Que aqueles que querem rejeitar as afirmações acima tentem descrever qualquer situação presente — na filosofia, na política, num campo de batalha, na bolsa de valores, num empreendimento comercial — sem fazer referência ao passado.
3. História do Passado Remoto
Um cético pode levantar a objeção: pode-se admitir que alguns estudos históricos sejam descrições da situação atual, mas o mesmo não se dá com todas as investigações históricas. Pode-se admitir que a história do nazismo contribua para uma compreensão melhor dos diversos fenômenos da situação política e ideológica do presente. Mas que relação têm com as nossas preocupações atuais livros sobre o culto de Mitras, a antiga Caldeia, ou as primeiras dinastias de reis do Egito? Tais estudos são meramente antiquarianos, não passam de uma demonstração de curiosidade; são inúteis, um desperdiço de tempo, de dinheiro e de mão-de-obra.
Críticas como estas contradizem a si próprias. Por um lado elas admitem que o estado presente só pode ser descrito através de um relato completo dos eventos que o geraram. Por outro, declaram antecipadamente que certos eventos não podem ter influenciado de maneira nenhuma o curso dos acontecimentos que levou ao estado presente. Esta afirmação negativa, no entanto, só pode ser feita após um exame cuidadoso de todo o material disponível, não antecipadamente, com base em algumas conclusões apressadas.
O mero fato de que um evento ocorreu num país distante e numa época remota não prova, por si só, que ele não tem influência no presente. As questões judaicas de três mil anos atrás influenciam mais a vida de milhões de cristãos americanos dos dias de hoje do que o que aconteceu com os índios americanos na segunda parte do século XIX. No conflito atual entre a Igreja Romana e os soviéticos estão elementos que remontam ao grande cisma entre as igrejas Ocidental e Oriental, que ocorreu há mais de mil anos atrás. Este cisma não pode ser examinado detalhadamente sem que se faça referência a toda a história do cristianismo, desde seus primórdios; o estudo do cristianismo pressupõe uma análise do judaísmo e das diversas influências — caldeias, egípcias, e assim por diante — que o moldaram. Não existe um ponto da história no qual podemos interromper a nossa investigação, totalmente satisfeitos por não termos deixado passar qualquer fator importante. Se a civilização deve ser considerada um único processo coerente, ou se devemos, em vez disso, diferenciar entre uma imensidade de civilizações, não afeta o nosso problema; pois existiram trocas mútuas de ideias entre estas civilizações autônomas, cuja extensão e peso devem ser estabelecidos através da investigação histórica.
Um observador superficial pode achar que os historiadores estão apenas repetindo o que seus antecessores já disseram, apenas retocando ocasionalmente, na melhor das hipóteses, pequenos detalhes da pintura. Na realidade, a compreensão do passado está num fluxo perpétuo. O feito de um historiador consiste em apresentar o passado numa nova perspectiva de compreensão. O processo de mudança histórica é acionado por, ou melhor, consiste em uma transformação ininterrupta das ideias que determinam a ação humana. Entre essas mudanças ideológicas, aquelas que dizem respeito à compreensão específica do passado desempenham um papel de destaque. O que distingue uma época posterior de uma anterior é, entre outras mudanças ideológicas, a mudança na compreensão das épocas que a antecederam. Ao examinar e reformular continuamente a nossa compreensão histórica, os historiadores dão a sua contribuição ao que é chamado de espírito da época.[2]
4. Falsificando a História
Exatamente porque a história não é um passatempo inútil, mas um estudo da mais suma importância prática, as pessoas tentaram insistentemente falsificar evidências históricas e descrever de maneira deturpada o curso dos acontecimentos. Os esforços para iludir a posteridade acerca do que realmente aconteceu e substituir um registro fiel por outro inventado muitas vezes foram empreendidos pelos próprios homens que desempenharam um papel ativo nos eventos, e tiveram seu início no instante em que estes eventos estavam ocorrendo, ou até mesmo antes que eles tivessem acontecido. Mentir a respeito de fatos históricos e destruir evidências tem sido, na opinião de multidões de estadistas, diplomatas, políticos e escritores, uma parte legítima da conduta dos assuntos públicos e da escrita da história. Um dos principais problemas da investigação histórica é desmascarar tais falsificações.
Os falsificadores muitas vezes foram motivados pelo desejo de justificar suas próprias ações, ou as de seu partido, de um ponto de vista do código moral daqueles cujo apoio ou, ao menos, sua neutralidade, estavam ansiosos por conquistar. Este tipo de encobrimento é um tanto paradoxal, se as ações em questão não forem passíveis de objeção do ponto de vista das ideias morais do tempo em que ocorreram, e forem condenadas apenas pelos padrões morais dos contemporâneos do falsificador.
As maquinações dos falsários e falsificadores não criam obstáculos sérios aos esforços dos historiadores. Muito mais difícil é evitar que doutrinas sociais e econômicas espúrias os iludam.
O historiador aborda os registros equipado com o conhecimento que ele adquiriu nos campos da lógica, da praxeologia, e das ciências naturais. Se este conhecimento for defeituoso, o resultado de seu estudo e de sua análise do material será enfraquecido ou corrompido. Boa parte das contribuições feitas nos últimos oitenta anos à história social e econômica é praticamente inútil por conta da compreensão insuficiente de economia de seus autores. A tese historicista de que o historiador não precisa ser familiarizado com a economia, e deve até mesmo desprezá-la, contaminou a obra de muitas gerações de historiadores. O efeito do historicismo foi ainda mais devastador entre aqueles que chamaram as suas publicações, que descreviam diversas condições sociais e econômicas do passado recente, de investigação ou pesquisa econômica.
5. História e Humanismo
A filosofia pragmática valoriza o conhecimento porque ele dá poder às pessoas e as capacita para realizar coisas. A partir deste ponto de vista, os positivistas rejeitam a história como sendo inútil. Tentamos demonstrar o serviço que a história presta ao agente homem ao fazê-lo compreender a situação na qual ele tem que agir; tentamos apresentar uma justificativa prática da história.
Mas há mais do que isso no estudo da história: não apenas ele fornece o conhecimento indispensável ao preparo de decisões políticas; ele abre a mente para uma compreensão do destino e da natureza humana e, portanto, aumenta a sabedoria. É a própria essência daquele conceito tão mal interpretado, uma educação liberal. É o principal caminho para o humanismo, aquela coletânea do conhecimento a respeito das preocupações especificamente humanas que distinguem o homem dos outros seres vivos.
A criança recém-nascida herdou de seus ancestrais as características fisiológicas da espécie. Ela não herda as características ideológicas da existência humana, o desejo por aprendizado e conhecimento. O que distingue o homem civilizado de um bárbaro deve ser adquirido a partir do zero por cada indivíduo. Um esforço vigoroso e prolongado é necessário para se apossar do legado espiritual do homem.
A cultura pessoal é mais do que a mera familiarização com o estado atual da ciência, tecnologia e dos assuntos cívicos. É mais do que o contato com livros e pinturas, e a experiência de viagens e visitas a museus. É a assimilação das ideias que instigaram a humanidade a sair da rotina inerte de uma existência meramente animal para uma vida de raciocínio e especulação. É o esforço do indivíduo para se humanizar ao tomar parte na tradição de tudo de melhor que as gerações anteriores legaram.
Os detratores positivistas da história alegam que a preocupação com as coisas do passado desvia a atenção das pessoas da principal tarefa da humanidade, que é a melhoria das condições futuras. Nenhuma acusação poderia ser mais descabida. A história olha para trás, para o passado, porém a lição que ela ensina diz respeito ao que está por vir. Ela não ensina um quietismo indolente; ela instiga o homem a emular os feitos das gerações anteriores. Ela se dirige aos homens como o Ulisses de Dante se dirigiu a seus companheiros:
Considerate la vostra semenza:
Fatti non foste a viver come bruti,
Ma per seguir virtude e conoscenza.[3]
Não existiram trevas na idade das trevas, porque as pessoas estavam comprometidas com o estudo dos tesouros intelectuais deixados pela antiga civilização helênica; só houve treva enquanto estes tesouros estavam escondidos e latentes. Quando eles novamente foram trazidos à luz, e começaram a estimular as mentes dos pensadores mais avançados, contribuíram substancialmente para a inauguração do que hoje em dia se chama de civilização ocidental. O termo “Renascença”, tão criticado, é pertinente porque enfatiza o papel que o legado da Antiguidade teve na evolução de todas as características espirituais do Ocidente. (A questão de se o início da Renascença não deveria datar de alguns séculos antes do ponto em que Burckhardt o estabeleceu não deve nos preocupar aqui.)
Os descendentes dos conquistadores bárbaros que começaram a estudar seriamente pela primeira vez os antigos ficaram estarrecidos. Eles perceberam que eles e seus contemporâneos estavam diante de ideias que eles próprios não poderiam ter desenvolvido. Não tinham como deixar de achar que a filosofia, a literatura e as artes da era clássica da Grécia e de Roma eram insuperáveis; não viam um caminho para o conhecimento e a sabedoria além daquele que havia sido pavimentado pelos antigos. Qualificar uma realização espiritual de moderna tinha uma conotação pejorativa para eles. Lentamente, no entanto, a partir do século XVII, as pessoas se deram conta de que o Ocidente estava amadurecendo e criando uma cultura própria. Eles não mais lamentavam o desaparecimento de uma era de ouro das artes e do aprendizado, irremediavelmente perdida, e não pensavam mais nas obras-primas antigas como modelos a serem imitados, porém jamais igualados, muito menos superados. Eles acabaram substituindo a ideia de degeneração progressiva, que tinham até então, pela ideia de uma melhoria progressiva.
Neste desenvolvimento intelectual, que ensinou a Europa moderna a conhecer o seu próprio valor e produziu a autoconfiança da civilização ocidental moderna, o estudo da história foi primordial. O curso dos assuntos humanos deixou de ser visto como uma mera disputa entre príncipes ambiciosos e líderes militares por poder, riqueza e glória. Os historiadores descobriram, no fluxo dos eventos, que outras forças estavam operando além daquelas que costumam ser designadas de políticas e militares; começaram a enxergar como o processo histórico sofre a ação do impulso do homem rumo ao melhoramento. Eles discordavam amplamente em seus julgamentos de valor e em sua avaliação dos diversos fins que os governos e reformistas buscavam; porém eram quase todos unânimes em sustentar que a principal preocupação de cada geração é tornar mais satisfatórias as condições que os seus ancestrais lhes legaram. Anunciaram o progresso rumo a um estado melhor das questões cívicas como tema principal do esforço humano.
Fidelidade à tradição significa, para o historiador, a observância à regra fundamental da ação humana: a busca incessante pela melhoria das condições. Ela não significa a preservação de instituições antigas e inadequadas, e o apego a doutrinas há muito desacreditadas por teorias mais convincentes. Ela não implica qualquer concessão ao ponto de vista do historicismo.
6. História a Ascensão do Nacionalismo Agressivo
O historiador deve utilizar em seus estudos todo o conhecimento que as outras disciplinas colocam à sua disposição. Uma deficiência nesse conhecimento afeta o resultado de seu trabalho.
Se considerássemos os épicos homéricos apenas narrativas históricas, teríamos que julgá-los insatisfatórios, por conta da teologia ou da mitologia usadas para interpretar e explicar os fatos. Os conflitos pessoais e políticos entre príncipes e heróis, a propagação de uma praga, as condições meteorológicas e outros acontecimentos eram atribuídos à interferência dos deuses. Os historiadores modernos não identificam a origem dos eventos terrenos em causas sobrenaturais; evitam proposições que contradigam de forma evidente os ensinamentos das ciências naturais. Muitas vezes, no entanto, eles são ignorantes a respeito de economia, e confiam em doutrinas indefensáveis a respeito dos problemas das políticas econômicas. Muitos se apegam ao neomercantilismo, a filosofia social adotada quase sem exceção pelos governos e partidos políticos contemporâneos e ensinada em todas as universidades. Aprovam a tese fundamental do mercantilismo de que o ganho de uma nação é a perda de outras. Acreditam que vigora entre as nações um conflito irreconciliável de interesses. É partindo desde ponto de vista que muitos ou até mesmo a maior parte dos historiadores interpreta todos os eventos. A disputa violenta entre as nações é, aos seus olhos, uma consequência necessária de um antagonismo natural e inevitável. Este antagonismo não pode ser eliminado por qualquer acordo nas relações internacionais. Os defensores do livre-comércio integral, os liberais de Manchester ou do laissez-faire não são, segundo eles, realistas, e não enxergam que o livre comércio fere os interesses vitais de qualquer nação que recorra a ele.
Não é surpreendente que o historiador médio partilhe das falácias e concepções errôneas que predominam entre os seus contemporâneos. Não foram, no entanto, os historiadores, mas sim os antieconomistas que desenvolveram a ideologia moderna de conflito internacional e nacionalismo agressivo. Os historiadores apenas a adotaram e aplicaram. Não é particularmente surpreendente que, em seus escritos, eles tenham ficado do lado de suas próprias nações e tenham tentado justificar suas reivindicações e pretensões.
Livros sobre história, especialmente aqueles sobre a história do próprio país, atraem mais o leitor comum do que tratados sobre política econômica. O público dos historiadores é maior do que o de autores de livros sobre a balança de pagamentos, controle de câmbios e assuntos semelhantes. Isto explica o porquê dos historiadores serem considerados os principais fomentadores do renascimento do espírito belicista e das guerras de nossos tempos, resultantes deste espírito. Na verdade, eles apenas popularizaram os ensinamentos dos pseudo-economistas.
7. História e Julgamentos de Valor
O assunto do qual se ocupa a história é a ação e os julgamentos de valor que orientam a ação rumo a fins específicos. A história lida com valores, porém ela própria não dá valores. Ela observa os eventos com os olhos de um observador indiferente. Esta é, claro, a marca característica do pensamento objetivo e da procura científica pela verdade. Verdade se refere a aquilo que é ou foi, não um estado de coisas que não é ou não era, mas que seria mais apropriado aos desejos daquele que procura pela verdade.
Não é necessário acrescentar qualquer coisa ao que foi dito na primeira parte deste ensaio sobre a inutilidade da busca por valores absolutos e eternos. A história não é mais capaz que qualquer outra ciência de fornecer padrões de valor do que não sejam mais do que julgamentos pessoais, expressos em momentos específicos por homens mortais e rejeitados naqueles mesmos momentos por outros homens mortais.
Existem autores que afirmam que é logicamente impossível lidar com fatos históricos sem expressar julgamentos de valor. Em seu modo de ver, não se pode dizer nada de relevante sobre eles sem que se faça um julgamento de valor após o outro. Se, por exemplo, se está lidando com fenômenos como grupos de pressão ou a prostituição, deve-se perceber que estes fenômenos, por si só, “são, por assim dizer, constituídos por julgamentos de valor”.[4] É verdade que muitas pessoas utilizam termos como “grupo de pressão” e, na maioria da vezes, o termo “prostituição” de forma a deixar implícito um julgamento de valor. Mas isto não significa que os fenômenos aos quais esses termos se referem sejam constituídos por julgamentos de valor. A prostituição é definida por Geoffrey May como “a prática da união sexual habitual ou intermitente, mais ou menos promíscua, por instigação mercenária”.[5] Um grupo de pressão é um grupo que tem como meta aprovar leis que consideram favoráveis aos interesses de seus membros. Não existe qualquer forma de avaliação implícita no mero uso destes termos ou na referência a estes fenômenos. Não é verdade que a história, para evitar os julgamentos de valor, não poderia falar em crueldade.[6] O primeiro significado da palavra “cruel” no Concise Oxford Dictionary é “indiferente, ou que se regozija, com a dor de outro”.[7]Esta definição não é menos objetiva e livre de qualquer atribuição de valor do que a que é dada pelo mesmo dicionário para “sadismo”: “perversão sexual caracterizada pelo amor à crueldade”.[8] Da mesma maneira que um psiquiatra utiliza o termo “sadismo” para descrever a condição de um paciente, um historiador pode se referir à “crueldade” para descrever certas ações. A discussão que poderia surgir a respeito do que causa dor e o que não, ou se num caso específico a dor foi infligida porque ela estava dando prazer a quem estava realizando a ação, ou por outros motivos, está relacionada com o estabelecimento dos fatos, e não com julgamentos de valor.
O problema da neutralidade da história no que diz respeito a julgamentos de valor não deve ser confundido com as tentativas de se falsificar o relato histórico. Existiram historiadores, ávidos por representar como vitoriosas batalhas que foram perdidas pelas forças armadas de suas próprias nações, e que reivindicavam para o seu próprio povo, raça, partido ou fé tudo que o viam como meritório, expiando-os de tudo o que julgavam reprovável. As apostilas de história preparadas para as escolas públicas são caracterizadas por um chauvinismo e um provincialismo ingênuo. Não é necessário perder tempo com essas futilidades. Mas deve-se admitir que até mesmo para o historiador mais escrupuloso abster-se de fazer julgamentos de valor é algo que pode gerar certas dificuldades.
Como homem e como cidadão, o historiador toma partido em diversas rixas e controvérsias de seu tempo. Não é fácil combinar a indiferença científica nos estudos históricos com o partidarismo nos interesses mundanos. Mas isso pode ser feito, e de fato o foi, por historiadores de destaque. A visão de mundo do historiador pode colorir a sua obra, sua representação dos eventos pode estar lardeada de comentários que traem seus sentimentos e desejos e acabam por divulgar sua afiliação partidária; no entanto, o postulado que diz que a história científica deve se abster de julgamentos de valor não é violado por comentários ocasionais que expressam as preferências do historiador se o propósito geral do estudo não for afetado. Se o escritor, ao falar de um comandante inepto das forças armadas de sua própria nação ou partido, fala que “infelizmente” o general não esteve à altura do seu dever, ele não fracassou em sua função de historiador. O historiador tem a liberdade de lamentar a destruição das obras-primas da arte grega, com a condição de que o seu lamento não influencie a maneira com que ele relata os eventos que causaram essa destruição.
O problema da Wertfreiheit também deve ser claramente distinguido da escolha das teorias às quais se recorre para a interpretação dos fatos. Ao se lidar com os dados disponíveis, o historiador precisa de todo o conhecimento proporcionado pelas outras disciplinas, pela lógica, matemática, praxeologia e também as ciências naturais. Se o que essas disciplinas ensinaram for insuficiente, ou se o historiador escolher uma teoria errônea a partir de diversas teorias conflitantes sustentadas pelos especialistas, seu esforço foi em vão, e sua performance um fracasso. Pode ser que ele tenha escolhido uma teoria insustentável porque é tendencioso e esta teoria estava mais de acordo com o seu espírito partidário. Mas muitas vezes a aceitação de uma doutrina defeituosa pode ser apenas o resultado da ignorância, ou do fato de que ela goza de uma maior popularidade do que as doutrinas corretas.
A principal fonte de discórdia entre os historiadores são as divergências que dizem respeito aos ensinamentos de todos os outros ramos do conhecimento sobre o qual fundamentam sua apresentação. Para um historiador de tempos antigos, que acreditava em bruxaria, magia e na interferência do demônio nos assuntos humanos, as coisas tinham um aspecto diferente do que elas têm para um historiador agnóstico. As doutrinas neomercantilistas da balança de pagamentos e da escassez do dólar dão uma imagem das condições mundiais atuais muito diferente daquelas que são apresentadas através de um exame da situação do ponto de vista da economia subjetivista moderna.
[1] Mises, Ação Humana, p. 135. Ver também acima, p. xx.
[2] Às vezes a investigação histórica consegue desmascarar erros inveterados e substituir um registro inadequado por um relato correto dos eventos, até mesmo em campos que se acreditava já terem sido explorados e descritos total e satisfatoriamente. Um exemplo notável foram as descobertas estarrecedoras a respeito da história dos imperadores romanos Maxêncio, Licínio e Constantino, e os eventos que puseram um fim à perseguição dos cristãos e abriram o caminho para a vitória da Igreja Cristã. (Ver Henri Grégoire, Les Persécutions dans l’Empire Romain, em Mémoires de l’Académie Royale de Belgique, tomo 46, fascículo 1, 1951, especialmente p. 79-89, 153-6.) Mas as mudanças fundamentais na compreensão histórica dos eventos são geradas com mais frequência sem qualquer revisão, ou apenas com uma pequena revisão da descrição dos eventos externos.
[3] L’Inferno, xxvi, 118-20. Tradução para o português de Italo Eugenio Mauro, em A Divina Comédia, Inferno(São Paulo, Editora 34, 1998), p. 179:
Considerai a vossa procedência:
Não fostes feitos para viver quais brutos,
Mas pra buscar virtude e sapiência.
[4] Leo Strauss, Natural Right and History (Chicago, University of Chicago Press, 1953), p. 53.
[5] G. May, “Prostitution”, Encyclopaedia of the Social Sciences, 12, 553.
[6] Strauss, p. 52.
[7] 3ª ed., 1934, p. 273.
[8] Ibid., p. 1042.