O trabalhismo de Vargas: tragédia do Brasil

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[Esse artigo é a adaptação da palestra proferida no simpósio de 90 anos de Murray Rothbard]

Existia muito além da mente revolucionária um Brasil profundo; o Brasil autêntico e verdadeiro, o Brasil conservador, tradicionalista, católico, apostólico e romano, nem de “direita” e nem de “esquerda”. O Brasil dos velhos solares baroniais, das longas fileiras de palmeiras imperiais, das igrejas barrocas no alto das colinas, dos cafezais e canaviais a perder de vista. O Brasil dos caboclos de Minas e de São Paulo, dos gaúchos dos pampas, dos vaqueiros do Sertão, dos jangadeiros do litoral nordestino, dos descendentes dos pioneiros da Amazônia.

Diante da apresentação do anfitrião, Sr. Kogos, e suas explanações sobre os custos marginais decorrentes das políticas de salários mínimos, eu gostaria de apresentar aos presentes alguns insights a respeito das consequências dessas políticas no Brasil e de como elas foram nefastas e destruíram uma ordem até então estabelecida e, de certa forma harmônica, que existia no Brasil citado acima.

Para ser mais claro, eu gostaria de dizer como essas políticas acabaram com o que existia de Brasil e foram responsáveis por transformar esse imenso território em uma máquina de usurpação e privilégios onde aqueles que a controlam sugam, impiedosamente, o suor, a vida e a alma dos controlados.

E por que escolhi a forma de insights? Por que essa é uma das coisas que mais aproveito daquilo que aprendi com a Escola Austríaca. Sendo a Escola Austríaca, como pudemos ver na apresentação do Sr. Kogos, um ferramental axiomático e praxeológico, ao tomarmos conhecimento da irrefutável teoria, devemos ir a campo e com a luz dessa lanterna iluminar episódios escuros, envoltos em uma nuvem de mitos e em uma névoa de desinformação,que escondem as verdadeiras causas de tais fenômenos.

Portanto, como na quarta obra prima de Mises, Teoria e História, trago aqui, fatos históricos não empíricos analisados pela luz da teoria a priori.

E por que escolhi esse período e o chamo de funeral do Brasil? E o que eu quero dizer com funeral?
Antes de responder quero lhes dizer que esse funeral foi filmado e inicio a minha apresentação com as imagens feitas desse momento fúnebre:

À queima das bandeiras seguiu-se o discurso do Ministro da Justiça, Francisco Campos, no qual ele afirmou: “Bandeira do Brasil, és hoje a única. Hasteada a esta hora em todo o território nacional, única e só, não há lugar no coração dos brasileiros para outras flâmulas, outras bandeiras, outros símbolos. Os brasileiros se reuniram em torno do Brasil e decretaram desta vez com determinação de não consentir que a discórdia volte novamente a dividi-lo, que o Brasil é uma só pátria e que não há lugar para outro pensamento do Brasil, nem espaço e devoção para outra bandeira que não seja esta, hoje hasteada por entre as bênçãos da Igreja e a continência das espadas e a veneração do povo e os cantos da juventude. Tu és a única, porque só há um Brasil ─ em torno de ti se refaz de novo a unidade do Brasil, a unidade de pensamento e de ação, a unidade que se conquista pela vontade e pelo coração, a unidade que somente pode reinar quando se instaura pelas decisões históricas, por entre as discórdias e as inimizades públicas, uma só ordem moral e política, a ordem soberana, feita de força e de ideal, a ordem de um único pensamento e de uma só autoridade, o pensamento e a autoridade do Brasil” (Correio da Manhã, 1937, p. 3).

A era Vargas é comumente conhecida como período que vai de 1930 até 1945, mas, na verdade, ela se estende até os dias de hoje e pode ser pensada desde o começo da República.
O professor Antony Mueller, no artigo “O espírito que assombra o Brasil” faz um relato de como o positivismo permeia toda a história republicana brasileira com seus planos de engenharia social, a partir dos anos 1930.

No que pese o fato do golpe militar republicano de 1889 ter sido arquitetado e executado por maçons positivistas, é um copy and paste do modelo republicano americano (o País passa a se chamar Estados Unidos do Brasil, os deputados são eleitos pelo voto distrital, e vocês podem ver na imagem a bandeira adotada),


É importante dizer que até o início formal da era Vargas a República Velha conservou um certo equilíbrio e autonomia regional dos estados enquanto as oligarquias paulistas e mineiras se revezavam no poder nacional, as oligarquias locais, com o que se convencionou chamar de política dos governadores, ou política dos estados, funcionavam como um regime de troca onde seus poderes eram mantidos e garantiam base parlamentar para o presidente. É curioso notar que esses currais eleitorais eram compostos pelas figuras dos coronéis, geralmente líderes das maçonarias locais também, o que demonstra toda a arquitetura da república pensada por seus criadores.

Bom, o fato é que a autonomia estadual vigora na república velha mas não como era no Brasil Colônia ou Brasil Império quando em diversos momentos houve moedas cunhadas localmente; quase nunca a renda de um estado era transferida a outro.

Porém, apesar desse relativo equilíbrio, o embrião da centralização estava contido e agitações nesse período já davam sinais disso.
O movimento tenentista é o principal deles e eclode na década de 1920 com diversas rebeliões e revoluções, a mais simbólica para nós é a Revolução de 1924


(fábrica bombardeada em São Paulo 1924)

E porque eu digo que é a mais simbólica? Nessa revolução, que dura cerca de 30 dias, a cidade de São Paulo é tomada pelos revolucionários e o presidente da província (curiosamente Júlio Prestes que seria rival- e vencedor- contra Getúlio nas eleições de 1930), a debela com bombardeios nos bairros operários da Mooca, Brás e Perdizes.
Isso já nos dá uma pista das forças que se aglutinavam para derrubar a República Velha e aí notadamente podemos perceber o crescente sindicalismo de uma São Paulo que já se tornara uma cidade industrial.
Getúlio, que na época era ministro de Washington Luiz, não apoiava as tentativas tenentistas, mas quando ele foi candidato para suceder Washington Luiz, tem todo o apoio dos tenentistas.
Perdendo a eleição, ele assume após golpe de estado e anistia todos os tenentistas dos anos 1920.

A avassaladora era getulista dá logo as suas caras no começo do governo, criando em 1930 o Ministério do Trabalho, da Indústria e do Comércio, seguindo o plano de sindicalizar e “oficializar” a elite empresarial e sindical. Em 1931 ele oficializa por decreto a sindicalização das classes patronais e laborais; daí segue a criação da Previdência Social em 1935, a Justiça do Trabalho em 1939 e culmina com a Consolidação das Leis Trabalhistas em 1943.

Podemos entender o golpe de Vargas como uma forma de acelerar o projeto unionista que era muito lento durante a República Velha e realizar a tomada de poder pelas forças sindicais, trabalhistas e patronais que já despontavam no país. Como sabemos, esse projeto se dá em escala global e foi deflagrado com Lincoln e a guerra da secessão americana.

Assume o comando e o estado se torna uma ferramenta daquilo que podemos chamar de oligarquias sindicais, e essas oligarquias irão concentrar poderes e privilégios destruindo a sociedade brasileira até então conhecida.

Quando David Gordon escreveu que o livro de Hoppe, Democracia, o deus que falhou, fazia um revisionismo, revertendo conceitos tidos como certos de que a democracia é um avanço da liberdade diante da monarquia aqui faço o mesmo, demonstrando que a era Vargas, apesar de ter sido em grande parte uma ditadura, expandiu de forma acelerada a democracia no Brasil e, portanto, destruiu a liberdade do antigo regime.

Um dos maiores mitos que vigora sobre a atual configuração demográfica brasileira é que a migração nordestina, que se inicia nos anos 1930, se acentua nos anos 1940 e tem seu ápice nos anos 1960 é por conta da seca no sertão. A constatação mais óbvia que se faz, para começo de conversa, é que o sertão nordestino sempre conviveu com períodos de seca e no passado elas não foram capazes de expulsar a população sertaneja da região:

https://pt.wikipedia.org/wiki/Seca_no_Brasil
Sem necessidade de recorrer a conhecimentos praxeológicos avançados, qualquer um pode desconfiar da “coincidência” dessa migração ocorrer ao mesmo tempo em que as leis trabalhistas vão sendo impostas e consolidadas. E aqui, falemos o português claro, “leis trabalhistas” são custos trabalhistas, impostos sobre o trabalho; e quando você impõe um custo adicional ao trabalho, pela lei econômica irrevogável do custo marginal, os trabalhadores menos produtivos estarão automaticamente eliminados do mercado de trabalho.

Os custos trabalhistas impostos por Vargas, visaram tão somente, proteger os poderosos sindicatos do Sul/Sudeste da concorrência de trabalhadores mais baratos do Norte/Nordeste.
O argumento, que às vezes escuto, de que as leis trabalhistas não atingiam os trabalhadores rurais é de pouca validade. O que observamos em deslocamentos de custos marginais é que todos dão um passo para o degrau debaixo, desta forma, o trabalhador mais produtivo ocupa o lugar do trabalhador que era o segundo mais produtivo e assim sucessivamente. Por isso, os menos produtivos foram os mais esmagados por esses custos.
Outra argumentação que não condiz com a realidade é que Vargas foi o responsável pela industrialização brasileira. Isso faz parte da nuvem de propaganda oficial que perdura até hoje. Como Bastiat nos ensina, há aquilo que se vê e aquilo que não se vê. Vargas criou diversas empresas estatais de base que forneciam matéria prima para as indústrias, mas isso é só uma forma diferente de fazer o mesmo: subsidiar um setor da economia que já existia e já demandava subsídios pela força de seu poder político. Antes disso, em sua industrialização por vias de mercado, o crescimento homogêneo se dava em todo o país e havia um mercado de capitais crescente com bolsas de valores (relevantes) em diversos estados que impulsionavam esse desenvolvimento econômico.
Portanto, seguindo a moda mundial de seu tempo, Vargas conduz a economia aos amigos do estado do lado empresarial e sindical. É o fascismo, a ideologia vencedora do século XX, sendo implementada por aqui também.

As consequências sociais de um sistema tão concentrador de poder e riquezas não teriam como ser mais nefastas. Comecei citando a migração e dela continuo: a primeira chaga visível que podemos observar é a destruição completa do cenário urbanístico das cidades brasileiras.
As cidades brasileiras eram pérolas coloniais que foram totalmente desfiguradas a partir de 1930 e mais acentuadamente 1950.
De um lado, São Paulo e Rio de Janeiro, cidades até então harmonicamente europeias com suas particularidades tropicais receberam um volume desproporcional de migrantes e de forma totalmente desordenada, criando bolsões de miséria. As capitais do nordeste também receberam contingentes para as quais não estavam preparadas e não tinham capacidade. A urbanização caótica das cidades brasileiras é uma das vítimas visíveis desse completo desarranjo causado pelo custo marginal ao trabalho imposto pela república sindical varguista.
Mas o povo não migra sem rumo e sem as informações transmitidas pelo mercado. A concentração não foi só de gente, foi também de investimentos. A oligarquia patronal do sul/sudeste também se beneficia do sindicalismo e os subsídios que obtém, sejam eles em forma de indústrias de base, sejam em protecionismos nacionalistas.
Então, temos na região sul/sudeste uma hipertrofia de investimentos enquanto na região norte nordeste uma anemia. E isso vai ser a regra por décadas seguintes até os dias de hoje.

 

(Vale do Anhangabaú nos anos 1920 e nos dias atuais)

Uma cidade ou conurbação com 21 milhões de habitantes é uma aberração qualquer que seja o prisma que se coloque; podemos ver cidades semelhantes na China, na Índia, que são modelos de como não se fazer urbanismo!

Os investimentos, privados e públicos, se concentram na região sudeste exatamente por conta das leis trabalhistas que impuseram custos proibitivos para se contratar os menos produtivos. Investimentos de vulto não conseguem apelar para a informalidade, desta forma, tinham que estar onde houvesse mão de obra que compensasse os custos e o parque industrial brasileiro, que podia ser espalhado de forma equilibrada por todo o país veio se concentrar na grande São Paulo e no Rio de Janeiro.
Costumo dizer que poderíamos ter uma China no nordeste brasileiro a partir dos anos 1930 e 1950; aproveitando-se dos baixos custos de mão de obra, os investimentos poderiam ser espalhados por um processo natural de mercado de busca por menores custos. Se houve uma seca no nordeste, essa foi de investimentos e emprego.

Porém, à margem desse crescimento, os menos produtivos, ao invés de aproveitarem dessa condição para crescer, vieram se aglomerar em bolsões de pobreza nas grandes cidades do sul/sudeste tendo que optar pelo subemprego e cito aqui as duas atividades mais improdutivas que conheço: porteiro de prédio e empregada doméstica.
Gerações inteiras tiveram (e têm) suas vidas produtivas desperdiçadas em tarefas absurdamente banais como tirar pó, arrumar cama ou abrir porta e separar cartas para uma classe média que macaqueia hábitos que apenas os muito de ricos têm. O Brasil é um dos únicos países onde essas profissões são massificadas a ponto de alterar a arquitetura das moradias com quarto de empregada e guarita.

De um lado, uma classe média extremamente mimada e incapaz de fritar um ovo aos 40 anos e de outro um contingente de mão de obra que poderia estar produzindo bens e serviços de fato relevantes, à margem do mercado. A tragédia brasileira passa por analisar esse fenômeno e no momento, nem passa na cabeça das pessoas em debitar essa chaga na conta de Vargas.

Igreja

A migração não é um mero deslocamento em busca de trabalho que aconteça sem que se altere a estrutura social anterior. Como citei, os imigrantes nordestinos se instalaram em bolsões no entorno das grandes cidades do sul/sudeste e abandonaram, esvaziando, diversas cidades do norte/nordeste isso afetou um equilíbrio que sempre existiu no Brasil que era o equilíbrio padre per capta. As cidades brasileiras e suas origens no urbanismo colonial nasciam e cresciam em torno da igreja católica. Basicamente, quase como um cenário no Projac, após a construção da paróquia, vinha o coreto, o espaço público e a cidade no entorno. Quando chegaram às metrópoles, essa gente ficou órfã da Fé, e é exatamente nesses bolsões que surgem as denominações neopentecostais que hoje já contabilizam mais da metade dos fiéis em muitas cidades.
Ironicamente, o catolicismo brasileiro foi uma das grandes vítimas do sindicalismo varguista, e a ironia está em que a CLT teve como uma de suas inspirações a encíclica Rerun Novarum.
Esse vácuo de fé que viviam os imigrantes foi ocupado por neopentecostais influenciados, curiosamente, pelos pentecostais que vieram em 1930, parte de um movimento que se iniciou com a instauração da velha república que tinha uma posição frontal contra a Igreja Católica.
Quando Getúlio, já na presidência, se reaproxima da Igreja Católica, ele não faz voltar nenhum ponto que a velha republica nela debelou. Ele coopta uma Igreja Católica já alijada de sua anterior importância na vida pública e o faz sob a aliança com seu sindicalismo.
Mais uma vez, temos um exemplo de como Vargas alterou o que era o Brasil para algo que hoje vemos com muita clareza.
Esse vazio da fé é uma fratura que levará séculos para ser recobrada.

Aqui podemos ver algumas diferenças entre o “inferno” colonial e o “paraíso” sindical:

Nomes, um efeito colateral da dessacralização

Um efeito que poucos relacionam a essa decadência da Igreja Católica no Brasil é o festival de horror que se tornou o nome dos brasileiros. Ao perder o referencial católico e com o desmanche dos laços familiares, as referências passam a ser as novas influências da cultura televisiva do showbiz, do estrangeirismo, das celebridades, de um lado e do velho testamento de outro; desaparecem os nomes de Santos.

Partidos

Cito novamente a obra, Democracia, o deus que falhou, onde Hoppe chama a atenção para um detalhe que não deve passar desapercebido aos observadores mais atentos, que são os nomes dos partidos triunfantes na era democrática. Cá, como no resto do mundo, podemos observar esse fenômeno que, por si só, já nos diz muita coisa; tudo! eu sou capaz de afirmar.

(lista com os nomes dos partidos dos presidentes antes e depois de Vargas)

Notem os nomes dos partidos a partir da era Vargas.
É como se um vórtice tivesse passado e feito desaparecer todo o passado. A mudança foi tão brusca que nenhuma figura proeminente da República Velha conseguiu retornar para a cena política com alguma relevância depois de 1930 ou de 1945 com a queda de Vargas. Toda a política nacional foi renovada, agora com um novo establishment no comando. O que restava de aristocracia (e muitos membros da República Velha, eram parte de uma elite aristocrática) deu lugar a uma oligarquia sindical calcada nas raízes militares do positivismo.
Quando no começo eu afirmei que a era Vargas se estende muito além de seus mandatos pessoais eu não estava cometendo nenhum exagero de que ela segue firme até os dias de hoje. Não apenas como modelo de estado, mas com membros de uma mesma oligarquia sindical, seja ela trabalhista ou patronal.
Mesmo com quedas e o governo militar de 64, o que se observa na política nacional é uma continuidade desde 1930.
Dutra, eleito após depor Vargas, era ministro e foi apoiado nas eleições por este.
Vargas volta, dando continuidade a agenda nacionalista com a criação de estatais, entre elas a Petrobras; Juscelino se elege pelo PSD; Tancredo Neves fora ministro da justiça de Getúlio, e Jango, além de afilhado de Getúlio, também fora ministro. Os presidentes militares de 64, três foram tenentes de 1930 (Castelo, Médici e Geisel); Fernando Henrique é filho de tenente e Collor é neto de tenente e ex-ministro de Vargas responsável pelo Ministério do Trabalho e pelas leis trabalhistas. Lula vem das hostes sindicais e Dilma, que poucos atentam para o fato, militou a maior parte de sua carreira no PDT que é um dos partidos herdeiros do legado de Vargas em seu oficialismo sindical. Todo o establishment político brasileiro é produto e subproduto seguidor da Era Vargas.
Não é de se espantar que ao observarmos contendas atuais como Uber x Taxi a classe política inteira ignore os fatores econômicos e se importe apenas com a legalidade. Os taxistas sindicalizados fazem parte do Brasil Oficial, os motoristas do Uber não fazem parte desse Brasil Oficial e, portanto, como homens de estado, os políticos apenas se preocupam com o que é oficial. Nada deve ser feito fora do estado, tudo dentro do estado. É o lema que perdura e vigora até hoje, lema da ideologia vencedora do século XX.

Máquina de propaganda

Como isso tudo foi possível?
Como esmagar os mais pobres e a classe produtiva, concentrar poder e privilégios nas mãos de uma oligarquia, eliminar do mapa o antigo regime e manter o poder desse establishment por décadas até os dias de hoje?

Murray Rothbard, o homenageado de hoje, ao comentar sobre o Discurso da Servidão Voluntária de Étienne de La Boétie nos recorda que as pessoas consentem com o despotismo, e que o estabelecimento de uma tirania é mais complicada no começo.

“…a tirania só pode começar a ser imposta por meio da conquista ou do engodo. A conquista pode ser feita por exércitos estrangeiros ou através de um golpe por parte de uma facção interna. O engodo ocorre em casos onde o povo, durante épocas de esforços de guerra, escolhe certas pessoas como ditadores, assim fornecendo a oportunidade para que essas pessoas cimentem seu poder sobre o povo de forma permanente. No entanto, uma vez que ela tenha se iniciado, a manutenção da tirania é permitida e fortificada pela pérfida tortura do hábito, que rapidamente faz com que o povo se acostume com a escravidão.

É verdade que no início serve-se obrigado e vencido pela força; mas os que vêm depois servem sem pesar e fazem de bom grado o que seus antecessores haviam feito por imposição. Desse modo os homens nascidos sob o jugo, mais tarde educados e criados na servidão, sem olhar mais longe, contentam-se em viver como nasceram; e como não pensam ter outro bem nem outro direito que o que encontraram, consideram natural a condição de seu nascimento …”

Vargas se utilizou dessas duas ferramentas: a conquista e o engodo. Perpassamos rapidamente pela conquista que é um método que exige menos acurácia em sua percepção vez que Vargas, ao assumir, destruiu e debelou todos os jornais simpáticos e apoiadores da Republica Velha e vamos analisar o engodo.
Além dos poderes ditatoriais de contar com o exército a sua disposição, Vargas deu início a uma monumental máquina de propaganda para buscar o consentimento dos governados. A criação do DIP (Departamento de Imprensa e Propaganda) é apenas a parte mais óbvia dessa máquina. Seus tentáculos abrangiam toda a produção cultural, literatura, teatro, cinema, esportes, radiodifusão, imprensa. E buscava-se elevar o culto à personalidade. Ele seguia a moda do mundo; diversos ditadores, caudilhos e democratas faziam o mesmo nos anos 1930. Seu correlato nos EUA, Franklin Roosevelt, fazia a mesmíssima coisa, assim como Mussolini entre tantos outros.
Foram impostas as matérias de Educação Moral e Cívica nas escolas e a celebração de datas nacionalistas históricas.
O Brasil, tinha toda uma dinâmica de identidades regionais, com diferentes fluxos migratórios em diferentes regiões, com etnias diferentes e particularidades diversas que ao se perfazer um império, era exatamente por conta do respeito das diferenças regionais.
Vargas partiu para forjar uma identidade nacional única brasileira e um dos fatores escolhidos para isso foi o samba.
É curioso notar que o carnaval, até então uma festa anárquica e desorganizada, passou a se assemelhar aos desfiles de parada militar e usar instrumentos de infantaria a partir dos anos 1930.

 

Muito interessante é ver os sambas enredos campeões (o próprio fato de haver um “campeão de carnaval” deveria nos alertar) e como essa máquina de propaganda agia:

(lista das escolas e sambas campeões)

De 1935 em diante os temas de ufanismo nacional e a exaltação de datas, eventos e muitas dessas letras foram elaboradas pela Liga de Defesa Nacional, de inspiração integralista.
A imprensa privada também sempre foi a imprensa oficial, Assis Chateaubriand teve expansão vertiginosa na era Vargas. E, após o fim e decadência de suas atividades foi suplantado pelas organizações Globo já nos anos 1960/70..

Essa divisão do establishment entre oligarquia empresarial e sindical de um lado e máquina de propaganda de outro pode ser observada no próprio estamento político.
Enquanto no sul/sudeste os eleitos são oriundos das elites sindicais laborais e patronais, no norte/nordeste os políticos são eles mesmos a elite da máquina de propaganda. Sendo uma concessão pública não é de se admirar que eles fossem os detentores dos meios de comunicação.

Segue uma lista de políticos que são detentores de meios midiáticos com grande predominância dos políticos do nordeste.

(lista)

São figuras que dominam há décadas o cenário político em seus respectivos estados.

Não é mero acaso que a família mais rica do Brasil será a família Marinho dona da Rede Globo. Em recente lista da Forbes eles aparecem com algo em torno de 30 bilhões de dólares. É essa máquina que sustenta e mantém, com toneladas de propaganda, uma identidade nacional totalmente artificial que serve de liga para um arranjo ainda mais artificial de unidade nacional. Falsidade essa muito bem percebida pelo artista José Wilker que, como visto nesta entrevista, mesmo sem o domínio teórico de praxeologia pode captar a fragilidade desse arranjo com sua sensibilidade artística.

Sabemos que o unionismo é antagônico à liberdade e que a autonomia regional é o caminho para a autonomia pessoal e para a liberdade: apenas enquanto foi uma colcha de retalhos a Europa produziu uma civilização e uma cultura relevante. Depois das unificações nacionais, o que foi produzido pela Europa?
No Brasil, enquanto vigorou um regime monárquico, que, sim, mais centralizador que os regimes europeus, mas, ainda assim, mantenedor de autonomias regionais impensadas nos dias de hoje é que se formou uma verdadeira identidade e caldo cultural que até hoje persistem apesar da massiva propaganda contrária.

Por fim, e último insight, apresento uma visão inversa sobre as ultimas eleições presidenciais.

Ao afirmar, no início da palestra que o regime suga até a alma dos controlados, quero dizer que o lado vermelho do mapa, assim como o lado dos escoceses que foram a favor da manutenção do domínio inglês, não foi o vencedor; a principal coisa que a dependência mata é o orgulho, a alma se vai. Ao elegerem seus algozes que os mantêm nessa situação de dependência essa gente perdeu até o orgulho próprio. É irônico que uma representante do sindicalismo varguista, o mesmo que jogou o nordeste na miséria para beneficiar os poderosos no sul/sudeste seja eleita pelos perdedores do regime. Eles recebem uma pensão estatal exatamente para não trabalhar e não oferecer concorrência aos que pagam essa pensão, a julgar, os sindicalizados protegidos. E, da mesma forma, são obrigados a comprar os produtos das empresas protegidas da concorrência externa.

A queda do PT se aproxima, o modelo, mais uma vez, mostra sua inconstância de dilapidação do capital e entra, novamente em ciclo de colapso e crise; o establishment sente o golpe, sem dúvida, mas não há no horizonte nada que inspire uma grande mudança.
O Estado varguista sairá dessa crise sem sofrer arranhões e um novo ciclo de transferência de renda e opressão se iniciará depois de juntar os cacos.
Viveremos em breve um período de alívio, quando esse establishment, esfacelado por mais uma crise estará se reorganizando; é apenas nesse ínterim que reside alguma chance de resistência.

8 COMENTÁRIOS

  1. A era Vargas foi uma era de mudancas e progresso,mas os custos dessas mudancas ate hoje nos influenciam e tem pesado em nossos bolsos e precisamos romper com essa cultura estatista,fascista,esse passado e vislumbrar um futuro de progresso baseado na liberdade e menos estado.

  2. Muito bacana essa apresentação. Interessante notar que esse período apontando o que foi descrito no artigo como “fim do Brasil” ou fim “de um Brasil”, além de se inscrever na falsa ideia de industrialização governista – que pode realmente ser entendida como uma espécie de mito -, coincide também com a sovietização de diversos setores de atividade econômica cruciais para o desenvolvimento, notadamente em infraestrutura, como foi o caso dos setores de energia.

  3. Não concordo com a ideia de que empregada doméstica é uma profissão indigna e improdutiva. Hoje em dia está na moda criticar a classe média e usam muito esse argumento da empregada doméstica, dizendo que as pessoas que as contratam são preguiçosos que não sabem arrumar a própria casa. E se a pessoa trabalha tanto que não tem tempo para arrumar a casa? Empregada doméstica não é uma profissão honesta?

  4. A palestra foi fantástica. O material é muito elaborado e fala por si.

    Estamos na espera do próximo Seminário do Instituto Rothbard, o único Instituto que deve ser levado a sério no país das bananas.

    Parabéns, Chiocca!

  5. Excente texto. Muito rico em informações importantes sobre o “pai dos Pobres”. E a consequência do legado nefasto da era getulista. Parabéns !

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