A geração e o estouro da bolha imobiliária nos EUA – e suas lições para o Brasil

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N. do T.: com as notícias cada vez mais constantes sobre fartura de crédito aqui no Brasil para o setor imobiliário, preços em constante ascensão e, agora, a possibilidade de utilizar o próprio imóvel para garantir mais empréstimos (ver aqui e aqui), vale a pena rever como se deu a bolha imobiliária nos EUA, e tentar aprender com suas lições.

 

Toda a turbulência gerada nos mercados de crédito americano e mundial, causada pelo colapso da bolha imobiliária americana, pode ser entendida à luz da teoria dos ciclos econômicos desenvolvida por Ludwig von Mises e F.A. Hayek.  Esses autores mostraram que a expansão do crédito distorce o padrão de gastos e de investimentos no sistema econômico.  Essa distorção, por sua vez, leva a um desperdício de capital (materiais e equipamentos) em larga escala, gerando prejuízos e, consequentemente, preparando o terreno para uma subsequente contração do crédito, exatamente o que ocorreu no segundo semestre de 2007 e que gerou toda a crise em 2008.  (Em prol dos leitores não familiarizados com a expressão, expansão do crédito é a criação de dinheiro pelo sistema bancário e seu consequente empréstimo a juros artificialmente baixos).

A origem de todo esse problema remonta ao estouro da bolha formada na bolsa de valores americana no início da década de 2000.  Em um esforço para evitar as inevitáveis consequências deflacionárias de todo estouro de bolha, o Banco Central americano (o Fed) cortou a taxa básica de juros, reduzindo-a de 6,25% no final de 2000 para apenas 1% já em 2003.

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Esses cortes nos juros foram feitos por meio de várias injeções de dinheiro criado do nada pelo Banco Central no sistema bancário.  A taxa básica de juros é a taxa que os bancos cobram entre si no mercado interbancário para tomar e conceder empréstimos de dinheiro que compõe suas reservas monetárias, reservas essas que eles são obrigados pelo BC a manter em determinado percentual do total de suas contas-correntes. (Ver mais sobre esse mecanismo aqui).

O dinheiro criado pelo BC cai direto na conta que os bancos têm junto ao BC.  Essa conta forma suas reservas. Esse contínuo influxo de novas e adicionais quantidades de dinheiro nas reservas do sistema bancário possibilitou aos bancos criarem mais contas-correntes, para benefício dos tomadores de empréstimos.  Essas novas contas-correntes foram criadas em um múltiplo de dez ou mais vezes a quantidade de novas reservas criadas pelo BC, e possibilitaram a concessão de mais empréstimos em uma escala correspondentemente maior.

Essa acentuada queda nas taxas de juros particularmente encorajou os americanos a pegarem empréstimos para financiar a compra de imóveis.  A razão para tal foi o forte declínio no valor do pagamento mensal das hipotecas, resultado do substancial declínio nas taxas de juros.  Veja o gráfico do declínio nos juros das hipotecas:

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As novas contas-correntes criadas eram formadas por dinheiro criado do nada pelo sistema bancário de reservas fracionárias, e que foi emprestado para tomadores de empréstimo de histórico duvidoso.  O colateral utilizado nesses empréstimos era o imóvel que o tomador estava adquirindo.

Enquanto esse dinheiro recém-criado ia sendo jogado no mercado imobiliária a taxas crescentes, os preços dos imóveis subiram e a maioria das pessoas parecia estar prosperando.

Porém, começando em 2004, e continuando durante todo o ano de 2005 até a primeira metade de 2006, por medo das consequências inflacionárias de sua política, o Fed começou a aumentar gradualmente a taxa básica de juros.  Ele fez isso reduzindo a injeção de dinheiro nas reservas do sistema bancário.  Veja a escalada da taxa básica de juros americana:

Subida juros.jpg

Assim que essa política teve êxito em estancar a aceleração da expansão do crédito que até então estava indo para o mercado imobiliário, os fundamentos para um aumento contínuo nos preços dos imóveis foram removidos — pois a redução da expansão do crédito significou uma redução na demanda por imóveis.  Ademais, a redução da expansão do crédito provocou um aumento nos juros das hipotecas:

subida hipoteca.jpg

Como houve de fato uma queda na expansão do crédito, a demanda por imóveis inevitavelmente teve de cair.  Isso porque um dos principais componentes da demanda por imóveis eram exatamente os fundos gerados pela expansão do crédito.  Um declínio nesse componente gerou um equivalente declínio na demanda geral por imóveis.  O declínio na demanda por imóveis foi, obviamente, seguido de um declínio nos preços dos imóveis.

Os preços dos imóveis também tiveram de cair simplesmente por causa do repentino aumento da oferta de imóveis a venda: como vários imóveis haviam sido comprados na expectativa de que seus preços iriam aumentar continuamente, tão logo ficou comprovado que isso não mais iria acontecer, seus moradores trataram rapidamente de colocá-las a venda e lucrar o que fosse possível.

Essa queda na demanda e nos preços dos imóveis deixou a mostra algo assustador: uma massa de dívida hipotecária que era literalmente impagável.  Ela também revelou uma correspondente massa de capital mal investido e desperdiçado: o capital utilizado para conceder os impagáveis empréstimos hipotecários.  Não apenas, dinheiro, mas também recursos, materiais, mão-de-obra, ferramentas — coisas naturalmente escassas — foram retirados de outros setores e empregados em uma área que se revelou um completo erro.  Houve desperdício de bens que não mais poderão ser utilizados produtivamente.

A perda dessa vasta quantia de capital acabou por solapar todo o resto do sistema econômico americano.

Os bancos e outras entidades que concederam tais empréstimos tornaram-se imediatamente incapazes de continuar com suas operações de empréstimo na mesma escala de antes — e, em alguns casos, em escala nenhuma.  Como seus devedores não mais tinham condições de quitar seus empréstimos, os bancos ficaram sem fundos com os quais conceder mais empréstimos ou mesmo renovar os empréstimos pendentes.  Pra continuarem operando, os bancos não apenas não mais podiam continuar concedendo empréstimos no mesmo volume de antes, como também, em muitos casos, eles próprios tiveram de começar a pedir empréstimos, com o intuito de cumprir compromissos financeiros assumidos anteriormente e que agora estavam vencendo.

Consequentemente, gerou-se uma situação em que havia tanto uma redução da oferta de fundos disponíveis para empréstimo quanto um aumento na demanda por fundos para empréstimo, situação essa que foi apropriadamente descrita pela expressão “sufocamento do crédito” (credit crunch).

O fenômeno do sufocamento do crédito foi reforçado pelo fato de que a expansão do crédito, assim como qualquer outro aumento na quantidade de dinheiro, acaba por elevar os salários e os preços das matérias-primas.  A expansão do crédito, portanto, reduz o poder de compra de todos os fundos de capital da economia.  Isso também gera os mesmos resultados de um sufocamento tão logo as torneiras da expansão do crédito sejam fechadas.  Isso ocorre porque as empresas agora precisam de mais fundos do que imaginavam precisar para completar seus projetos e, por isso, precisam pegar mais empréstimos (ou emprestar menos para os bancos) a fim de obter esses fundos.

(O mesmo fenômeno ocorre em projetos de infraestrutura, para os quais os custos aumentaram dramaticamente ao longo dos anos, o que fez com somas correspondentemente maiores de capital passassem a ser necessárias para completar os mesmos projetos.)

Ademais, o declínio que inevitavelmente ocorre no mercado de ações e no mercado de títulos privados após a expansão do crédito ser interrompida gera uma redução nos ativos disponíveis para o financiamento de atividades empreendedoriais, o que só faz aumentar o fenômeno do sufocamento do crédito.

A situação americana foi essencialmente similar a todos os episódios anteriores de ciclos econômicos criados pela expansão do crédito.  A única diferença é que, no caso americano, a expansão do crédito alimentou um aumento da demanda por imóveis e, ao mesmo tempo, a maioria dos fundos de capital criados por essa expansão do crédito foi investida em imóveis.  Tão logo a demanda por imóveis caiu — como resultado da redução da expansão do crédito —, a maior parte dos fundos de capital investidos no setor imobiliário revelou-se um investimento errôneo.

Na maioria dos ciclos econômicos anteriores, a expansão do crédito alimentava uma demanda adicional por bens de capital, e grande parte dos fundos de capital criados pela expansão do crédito era investida na produção de bens de capital.  Quando a expansão do crédito se reduzia, a demanda por bens de capital caía, e grande parte dos fundos de capital investidos na produção de bens de capital acabava se revelando um investimento errôneo.

Em todos os exemplos de expansão do crédito, o fator que está sempre presente é a introdução no sistema econômico de uma grande massa de fundos de capital que, enquanto dura, tem a aparência de riqueza real e fornece a base para um acentuado aumento no poder de compra e um correspondente aumento nos preços dos ativos.  Infelizmente, assim que a expansão do crédito que criou esses fundos de capital diminui, as bases para a lucratividade dos fundos até então criados pela expansão do crédito são extintas.  Isso ocorre porque esses fundos são normalmente investidos em projetos cuja lucratividade depende de uma demanda que só pode ser mantida pela contínua expansão do crédito.

Após a expansão do crédito ser interrompida, tanto hoje quanto no passado, o sistema econômico sofre uma real implosão do crédito e dos gastos.  A massa de fundos de capital jogada no sistema econômico pela expansão do crédito rapidamente começa a se evaporar (os hedge funds da Bear Stearns e o Lehman Brothers foram um ótimo exemplo), com o potencial de aniquilar outros fundos de capital já existentes na economia.

Como consequência do sufocamento do crédito, empresas com dívidas vincendas simplesmente se tornam incapazes de pagá-las.  Elas não conseguem renovar os empréstimos que pegaram e nem substituí-los.  Essas empresas se tornam insolventes e vão à falência.  Tentativas governamentais de se aliviar as condições de tais empresas podem facilmente precipitar um processo de contração financeira e deflação.

Isso ocorre porque a iminência da incapacidade de se honrar as dívidas leva a um aumento na demanda por dinheiro em caixa.  As empresas precisam elevar seu efetivo em caixa com o intuito de ter os fundos necessários para quitar as dívidas que estão para vencer.  Elas não mais podem contar com a facilidade de obter tais fundos de maneira fácil e lucrativa por meio de empréstimos junto ao sistema bancário — o que elas faziam durante o período da expansão do crédito.  Tampouco elas serão capazes de lucrativamente obter fundos vendendo títulos ou outros ativos em sua posse.  Assim, além da quantidade qualquer de fundos que elas venham a obter de tal forma, elas devem também tentar acumular fundos reduzindo seus gastos.  Essa redução nos gastos, entretanto, gera uma redução nas receitas e nos lucros de todo o sistema econômico, o que reduz ainda mais — e agora de forma generalizada — a capacidade de pagamento das dívidas de toda a economia.

Se tal processo de insolvência gerar um processo de falências bancárias — como houve nos EUA —, a quantidade de dinheiro no sistema econômico será reduzida, pois o dinheiro eletrônico criado pelo sistema bancário de reservas fracionárias desaparece junto com os bancos.  É como se tal dinheiro assumisse a forma de títulos podres que ninguém aceita como pagamento em troca de bens e serviços.

Declínios na quantidade de dinheiro, e no volume de gastos que depende em parte da quantidade de dinheiro que sumiu, resultam em mais falências e mais quebras bancárias, o que por sua vez gera ainda mais declínios na quantidade de dinheiro, bem como mais aumentos na demanda por dinheiro em caixa.  Foi assim que ocorreu na Grande Depressão de 1929-1933.

Dados os poderes ilimitados que o Fed tem hoje para a criação de dinheiro, tal deflação da oferta monetária foi evitada, ao custo de uma injeção de mais de um trilhão de dólares no sistema bancário, o que dobrou a base monetária.  Como explicou Gary North,

Isso significa que os bancos comerciais americanos estão hoje legalmente autorizados a dobrar seu número de empréstimos, algo que iria dobrar a oferta monetária.  Mas os banqueiros estão tão assustados com o atual estado da economia que eles têm se recusado a emprestar.  Eles voluntariamente têm preferido deixar todo o seu excesso de reservas depositado junto ao Fed, valor esse que chega a US$ 1,2 trilhão.  É isso que tem contrabalanceado o aumento da base monetária feito pelo Fed.

O provável resultado futuro, tão logo esse dinheiro começar a ser liberado pelo sistema bancário, será um aumento nos gastos e nos preços de todos os bens, em um grau de magnitude suficiente para superar mesmo o extremante poderoso ímpeto de contração e deflação gerado como resultado do estouro da bolha imobiliária.

Outro resultado do estouro da bolha, este já implementado quase que em sua totalidade, foi a promulgação de ainda mais leis e regulamentações sobre a atividade financeira.  Ignorantes em relação ao papel essencial desempenhado pela expansão do crédito e ao papel do governo na ocorrência dessa expansão creditícia, os políticos e a mídia iniciaram uma implacável campanha acusatória, culpando a débâcle nos poucos aspectos da atividade econômica e financeira que ainda estavam livres do total controle do governo.

Uma enorme depressão só foi evitada pela criação de mais de um trilhão de dólares pelo Fed, algo que inevitavelmente cobrará seu preço futuro.  Se algum dia o mundo quiser se ver livre dessa montanha-russa econômica, com seus altos e baixos, gerada pelo papel-moeda fiduciário e de curso forçado, livremente manipulado por burocratas, a única solução é a adoção de uma moeda livre de manipulações e ingerências, uma moeda que seja escassa por natureza e de difícil criação: o ouro.

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Leia também: A bolha imobiliária em 4 etapas

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