A “guerra civil” americana – uma defesa do separatismo sulista

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America-Civil-WarEmpreendo a difícil e politicamente incorreta tarefa de tentar defender os direitos dos estados norte-americanos do sul durante o período que ficou conhecido como o da “guerra civil” americana (1861-1865). Difícil porque o assunto encontra-se impregnado de um senso-comum que costuma desqualificar e impedir a exposição de outra interpretação e de visões distintas acerca dos fatos históricos. Recorrentemente, os que ousam tentá-lo são tachados de racistas, de escravistas e de preconceituosos, sendo injustamente desmerecidos. Por este motivo, em respeito ao trabalho destes acadêmicos, propus-me a tentar prestar alguns esclarecimentos para o leitor, expondo-lhe uma concepção não usual sobre o assunto, a fim de que tenha acesso a outros lados da questão.
Começo, pois, por me referir a um grande erro, perpetrado pelo uso incorreto da terminologia “guerra civil”. Nunca houve uma guerra civil nos Estados Unidos da América. O que ocorreu foi uma guerra de secessão. A diferença é grande. Numa guerra civil, dois ou mais grupos rivais disputam o controle de um país, como foi, verbi gratia, o notável episódio espanhol, em que republicanos comunistas e nacionalistas franquistas beligeraram durante três anos pelo controle do estado espanhol. No caso americano, os estados do sul não lutaram porque queriam o domínio do país; eles lutaram porque queriam se separar do país. Os sulistas não almejavam comandar a União em Washington; seu real desejo era se separar da União. O mesmo pode ser dito acerca da Revolução Farroupilha (1835-1845) no Rio Grande do Sul.

Elucidada essa questão de mera nomenclatura, podemos, destarte, nos aventurar pela problemática jurídica em torno da guerra de secessão americana. Ocorre que, ao contrário do que muitos pensam (ou são levados a pensar), os estados do sul tinham ao seu dispor teses jurídicas que salvaguardavam o seu direito de se separar da União federal. Não se olvide que a federação era uma criação relativamente recente na época, e que não havia nenhum “manual” universitário que a definisse e impedisse a criação de teses contrárias. Analisemos, então, a situação.

Segundo as aulas de Teoria do Estado ou de Direito Constitucional I, qual é a diferença entre a federação estadunidense e a brasileira (esta última sempre vista como sendo mais autoritária)? O Brasil era um estado centralizado que se “federalizou”, ao passo que as treze colônias americanas, após uma guerra em conjunto pela sua independência, eram treze estados distintos, que, por tratados de direito internacional, aceitaram formar uma confederação e, ad posteriori, uma federação constitucional (a qual, é sabido, podemos meritar aos esforços argumentativos de Hamilton, Madison e Jay).

A consequência desse processo ímpar de formação é que os estados americanos gozam de uma autonomia incomparável com a dos entes federativos estaduais brasileiros. A organização política idealizada pelos founding fathers para os EUA rege-se pelo princípio de que tudo aquilo que não for competência expressa da União cabe aos Estados, o que pode ser inconfundivelmente atestado pela leitura da décima emenda.[1]

Esse princípio foi de vital importância para a argumentação dos estados do sul, pois, eis que, ao contrário da constituição brasileira (CF art. 1º, caput), a carta magna americana não prevê em nenhum de seus artigos que a União é indissolúvel. Uma vez que a constituição é silente em relação à possibilidade de secessão, e tudo aquilo que não estiver na mesma é de competência dos estados, deduziu-se que os estados teriam o direito de se separar da União, à qual eles aderiram por livre e espontânea vontade.

Além disso, os estados de Virginia, New York e Rhode Island, ao assinarem a constituição americana — aceitando, portanto, participar da federação —, incluíram uma cláusula em suas adesões que lhes permitiria se separar da União no caso de o novo governo tornar-se “opressor”. Ora, outro princípio que rege a federação americana é o que diz que não há, nem pode haver, direitos diferentes entre os estados, os quais devem ser radicalmente iguais em dignidade e direitos. Deste modo, podemos concluir que absolutamente todos os estados teriam o direito, conferido aos três supracitados, de se apartar da União.

Hoje, a visão de que as federações são indissolúveis é incontestável e pacífica na doutrina;[2] mas nem sempre foi assim. Até aquela época, o conceito do que seria uma federação ainda estava sendo construído. A Guerra de Secessão americana foi responsável por sepultar e impedir o ressurgimento de qualquer tipo de interpretação que desse azo à liberdade dos estados integrantes da federação. Ela consolidou uma unificação nacional forçada e uma centralização de poderes na União até então nunca antes vista. A partir desse momento, os estados passariam a ser encarados como uma mera subdivisão política de uma única e indivisível nação. Isto é algo de surpreender, pois esta concepção nacionalista era praticamente inexistente na América do Norte daquela época. Prova disso é que a própria consciência da população americana, juntamente com o modo como se referiam ao seu país, mudou. Anteriormente falava-se em “THESE United States”, passando-se a um “THE United States”[3]. Vale dizer, o sentimento nacionalista e a própria “nação americana” estavam sendo inventados naquele momento; mais ou menos na mesma época em que um processo semelhante estava ocorrendo no Brasil, com o movimento romântico do II Reinado (1840-1889) e o esforço destes autores em criar uma identidade nacional brasileira.[4]

Penso, pois, ter ficado claro a questão de que, nos seus aspectos jurídicos, os estados do sul tinham sim um embasamento para a sua decisão de se separar. Mas e quanto à questão da escravidão, que sempre penetra o debate acerca da secessão? Não há dúvidas de que a escravidão é um fenômeno hediondo e que atenta contra o direito natural.[5] Contudo, o que estava em debate não era se a escravidão era certa ou não, mas o direito constitucional de secessão. Aliás, a escravidão, igualmente, jamais fora o debate central naquela época. A guerra não foi travada para libertar os escravos e, talvez com a exceção do Haiti, os EUA foram o único país da América que “precisou” de uma guerra para libertar seus escravos… Todos os demais, Brasil incluso, o fizeram de maneira pacífica (o que não quer dizer, evidentemente, que não houve ao longo da História louváveis resistências negras).

O real motivo pelo qual a guerra foi travada foi a discordância entre os projetos políticos dos estados do norte e do sul americanos. O sul, agroexportador, pretendia o estabelecimento de uma nação pró-livre comércio, com baixas tarifas alfandegárias, ao passo que o norte, mais voltado para uma incipiente produção industrial, intentava proteger seus mercados internos. Uma vez que a União comanda a política externa do país, ambos os lados pelejavam no Congresso propugnando seus interesses. O norte, entretanto, levava vantagem, pois dominava ambas as casas do Congresso, devido a um fato curioso que merece ser referido.

O voto para a House of Representatives (Câmara dos Deputados) é proporcional, como todos os leitores hão de saber, mas, como os negros não eram considerados cidadãos, os estados do norte exigiam que eles não fossem contados como população, de modo que os estados do sul tivessem menos deputados. Um consenso foi encontrado quando os estados do norte concordaram em computar a população negra dos estados do sul como três quintos da branca, ou seja: 1 negro = 3/5 de um branco. Mesmo assim, os estados do sul continuaram em minoria no legislativo federal.[6]

A situação tornou-se incontornável quando da eleição do candidato republicano Abraham Lincoln em 1860. A vitória deste político racista[7] e abolicionista (por mais incoerente que possa parecer) fez com que a Carolina do Sul, seguida depois por Flórida, Texas, Alabama, Georgia, Mississipi e Louisiana, declarassem sua independência, formando os Estados Confederados da América. O resto é história.

Lincoln lutou incansavelmente para preservar a União (e não para libertar os escravos), deixando um saldo de mais de 600.000 mortos (baixas quatro vezes maiores que as da guerra do Vietnã e três vezes as da I Grande Guerra Mundial).[8] Ele saiu vitorioso, mas morreu sem sabê-lo: faleceu assassinado antes do fim da guerra, enquanto assistia à peça Our American Cousin no teatro Ford de Washington, aos 14 de abril de 1865.

 


[1]”X Amendment: The powers not delegated to the United States by the Constitution, nor prohibited by it to the States, are reserved to the States respectively, or to the people.”

[2] Por todos, conferir: Dallari, Dalmo de Abreu. “Elementos de Teoria Geral do Estado”. 28ª edição. Ed. Saraiva. 2009. Pág. 259. “Na federação não existe direito de secessão. Uma vez efetivada a adesão de um Estado este não pode mais se retirar por meios legais. Em algumas Constituições é expressa tal proibição, mas ainda que não o seja, ela é implícita.” [Grifo no original].

[3] Katcher, Phillip. “The Civil War Day by Day”. 2nd edition. Chartwell Books, Inc. 2010. Pág. 189.

[4] Cereja, William Roberto e Magalhães, Thereza Cochar. “Literatura Brasileira”. 3ª edição. Editora Atual. 2005. Pág. 201 e 202.

[5] Para uma condenação da escravidão, conferir: carta-encíclica Catholicae Ecclesiae (1890), de Sua Santidade o Papa Leão XIII (1878-1903).

[6] Woods Jr., Thomas E. “The Politically Incorrect Guide to American History”. 1st edition. Regnery Publishing, Inc. 2004. Pág. 18.

[7] Conferir, por todos, as teses de Lerone Bennett Jr.; “Forced into Glory: Abraham Lincoln’s white dream” e Thomas J. DiLorenzo, The Real Lincoln: A New Look at Abraham Lincoln, His Agenda, and an Unnecessary War e Lincoln Unmasked: What You’re Not Supposed to Know About Dishonest Abe

Em um discurso de 1848, Lincoln chegou a declarar:

“I will say then that I am not, nor ever have been in favor of bringing about in any way the social and political equality of the white and black races, that I am not nor ever have been in favor of making voters or jurors of negroes, nor of qualifying them to hold office, nor to intermarry with white people; and I will say in addition to this that there is a physical difference between the white and black races which I believe will forever forbid the two races living together on terms of social and political equality. And inasmuch as they cannot so live, while they do remain together there must be the position of superior and inferior, and I as much as any other man am in favor of having the superior position assigned to the white race.”

“Digo, portanto, que não sou, nem jamais fui, a favor de criar, de qualquer maneira que seja, a igualdade social e política das raças branca e preta; que não sou, nem nunca fui, a favor de transformar negros em eleitores ou jurados, nem de habilitá-los a exercer cargos públicos, nem de permitir seu casamento com pessoas brancas; e direi, adicionalmente, que há uma diferença física entre as raças branca e preta que, creio eu, irá para sempre proibir as duas de viverem juntas em termos de igualdade social e política. E, visto que elas não podem conviver desta forma, enquanto elas permanecerem em coexistência terá de haver a posição do superior e do inferior, e eu, assim como qualquer outro homem, sou a favor de que a posição superior seja atribuída à raça branca.”

Abraham Lincoln, Debate with Stephen Douglas, Sept. 18, 1858, in Abraham Lincoln: Speeches and Writings, 1832-1858 (New York: Library of America, 1989), pp. 636-637.

Por que, então, ele era abolicionista? Acredita-se que ele desejava, destarte, reservar as novas terras do oeste para os brancos; o que ajudaria a explicar, outrossim, os seus programas de deportação de negros de volta para a África, em especial para a colônia americana da Libéria, sob o pretexto de permitir-lhes “a volta para casa”.

[8]http://en.wikipedia.org/wiki/United_States_military_casualties_of_war e http://www.civilwarhome.com/casualties.htm. Disponíveis em 26/02/2011.

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