Durante a semana passada, analistas financeiros, economistas, políticos e correntistas bancários ao redor de todo o mundo se mostraram ultrajados com o fato de que os líderes europeus — mais especificamente os alemães, que atualmente comandam as principais decisões tomadas em Bruxelas e Frankfurt — pudessem se mostrar tão politicamente temerários, tão economicamente ignorantes e tão emocionalmente insensíveis a ponto de violar a santidade dos depósitos bancários a fim de financiar um pacote de socorro para o Chipre.
Esse coro de condenações pode ter sido decisivo em dar ao parlamento cipriota a confiança necessária para rejeitar de forma unânime as medidas impostas, na esperança de que Berlim ou a Rússia — país natal de boa parte dos correntistas dos bancos cipriotas — iriam se apressar em conceder o pacote de socorro sem exigir contrapartidas.
A decisão de tributar em 10% os depósitos acima de €100.000 e em 7% os depósitos menores que €100.000 — desta forma, infligindo dor tanto nos correntistas mais ricos quanto nos mais pobres — foi descrita quase que universalmente como uma trapalhada histórica. No entanto, e curiosamente, o erro foi justamente o fato de os burocratas da União Europeia terem optado por fazer as coisas de modo aberto e explícito, de uma maneira que não fosse camuflada por truques financeiros. Em vez de optarem pela inflação monetária ou por simplesmente tomar dinheiro de uns para repassar para outros, optaram por uma tributação que incide diretamente sobre aqueles que estão sendo socorridos.
Como escreveu Detlev Schlichter,
A maioria das pessoas nos países desenvolvidos já se acostumou a não se preocupar com a saúde de seu sistema bancário. Elas foram, ao longo de décadas, condicionadas a acreditar que todos os bancos, por serem regulados pelo estado, são também protegidos pelo estado. Sim, mas tal proteção ocorre justamente para que os bancos possam incorrer em ainda mais riscos e se tornarem ainda mais alavancados. A “proteção” garantida pelo estado criou em todos os países um sistema bancário monstruoso que está engolindo os recursos do próprio estado. É impossível encarar os eventos no Chipre como uma surpresa chocante em pleno 2013.
[…]
Perdoem-me, mas minha empatia pelos correntistas cipriotas é bastante limitada. Se você é correntista de um banco cipriota, independentemente de seus depósitos serem maiores ou menores que €100.000, quem você acha que estava garantindo seus depósitos? A Fada Madrinha? Você realmente pensou que em um país tão minúsculo e com um sistema bancário tão bizarramente inchado — um sistema bancário que por anos, e de forma muito pública, vinha adquirindo títulos do governo grego! —, seu governo teria os recursos necessários para proteger todos os correntistas? O socorro dos dois maiores bancos do Chipre está estimado em 60% do PIB do país! E depois do que ocorreu na Grécia, você realmente pensou que os alemães estariam dispostos a continuar pagando sozinhos as contas de todos os outros países?
[…]
Se isso que está sendo proposto ao Chipre fosse realmente uma expropriação, como muitos estão dizendo, então o ato de se abster dessa expropriação — isto é, o expropriador simplesmente não fazer nada — significaria que a ‘vítima’ estaria mantendo sua propriedade, certo? O problema é que se a União Europeia não fizesse nada nesta situação, a maioria dos correntistas, inclusive aqueles que têm menos de €100.000, seriam totalmente dizimados. A escolha dos cipriotas, portanto, não é entre manter tudo ou pagar uma ‘taxa’, mas sim entre pagar uma ‘taxa’ ou perder praticamente tudo.
A realidade é que os correntistas do Chipre já estão pagando e continuarão pagando por todos os tipos de pacotes de socorro e de estímulos. Seja por meio de uma baixa taxa de juros sobre seus depósitos, seja por meio de inflação monetária, de maiores impostos, de maiores custos para empréstimos, ou pelo acúmulo de uma insustentável dívida pública, os cipriotas arcarão com o fardo de sua prodigalidade incorrida no passado. Não há como escapar. O problema é que o plano de socorro criado para o Chipre foi transparente demais, simples demais e direto demais para sobreviver em um mundo dependente do engano, da fraude e da ofuscação. Ele já estava morto antes mesmo de ter sido criado.
Ao redor de todo o mundo, os bancos centrais estão ativamente buscando metas de inflação propositadamente altas. Ora, não seria a inflação monetária — que permite aos governos cobrir parte de seus déficits por meio da criação de dinheiro, medida essa que transfere poder de compra dos poupadores para os tomadores de empréstimo — uma espécie de imposto sobre depósitos? No Reino Unido, por exemplo, os britânicos estão vivendo há três anos com uma taxa de inflação de preços de 3% e juros sobre seus depósitos de praticamente 0%. Espera-se que tal situação continue por pelo menos mais dois anos. Ninguém protesta. No entanto, um imposto de 6,75% no Chipre, a ser cobrado uma só vez sobre os depósitos, é visto como um ato de suprema traição?
[Aqui vale um parênteses para fazermos um comparativo com a situação brasileira. Um brasileiro comum que colocou seu dinheiro na poupança ganhou, de maio até hoje, 5,35%. Se ele tiver deixado o dinheiro parado na conta-corrente, ele não ganhou nada. Se ele for do tipo que tem de transacionar diariamente com dinheiro vivo — como fazem, por exemplo, trabalhadores informais —, ele também não ganhou nada.
Neste mesmo período, o INPC (que mensura a inflação para as famílias mais pobres) foi de 6,77%, os alimentos subiram 19,20%, os serviços encareceram 8,75%, e o IGP-M (que reajusta o aluguel e outros serviços, como TV a cabo) subiu 8,29%.
Conclusão: aquele coitado que deixou o dinheiro na conta-corrente ou aquele que precisa de grandes quantias de dinheiro vivo diariamente (porque é informal) perdeu 16,10% do seu poder de compra em termos de alimentação, 7,70% em termos de aluguel, e 8,05% em termos de serviços.]
Muitos estão lamentando o fato de que, sendo o Chipre membro da zona do euro, seu governo não pode inflacionar e desvalorizar sua moeda para sair desta enrascada. Mas por que tal medida seria moralmente superior? Perder uma parte de seus depósitos não é diferente de perder poder de compra por meio da desvalorização monetária e da inflação. Ambas as medidas resultam em perda do poder aquisitivo. Pedir para um correntista abrir mão de parte de seu dinheiro é uma atitude que ao menos lida com o problema de forma honesta e imediata.
A mesma dinâmica é válida para os fundos de um pacote de socorro. Suponha que a União Europeia aceite conceder mais dinheiro para socorrer os bancos do Chipre. A consequência disso é que os cipriotas, no futuro, terão de pagar os juros e a amortização dessa dívida. Portanto, ao aceitarem um pacote de socorro hoje, eles irão sobrecarregar as gerações futuras com um fardo cuja criação não foi responsabilidade delas. Como isso seria justo e moralmente aceitável?
No que mais, não é correto dizer que os correntistas dos bancos cipriotas — muitos deles cidadãos russos em busca de um paraíso fiscal — são totalmente inocentes e não foram cúmplices neste comportamento imprudente de seus bancos. Segundo relatos da Bloomberg, ao longo dos últimos cinco anos, os depósitos em euros nos bancos cipriotas apresentaram um rendimento cumulativo superior a 24%, quase o dobro do rendimento proporcionado por contas bancárias equivalentes na Alemanha. Os bancos do Chipre foram capazes de oferecer tais retornos porque se expuseram a ativos de alto risco (como os títulos do governo grego). O que há de tão errado em pedir que aqueles que incorreram em altos riscos com o intuito auferir retornos maiores aceitem perder algo quando suas decisões se revelam erradas?
Os cidadãos do Chipre, como membros da União Europeia, tinham a opção de colocar seus depósitos em qualquer banco da União Europeia. Mesmo se pagarem as taxas propostas no pacote de socorro, os correntistas do Chipre — ao menos os mais antigos, aqueles que mantiveram seu dinheiro nos bancos do Chipre por um longo período de tempo — terão ganhado mais dinheiro por terem mantido sua poupança em aplicações de alto retorno nos bancos do Chipre do que se tivessem depositado nos bancos alemães, cujo retorno é bem menor. Sendo assim, que Rubicão é esse que estamos atravessando?
O temor internacional que predominou na semana passada não era de que o cidadão comum do Chipre não mais fosse capaz de conseguir se sustentar, ou de que mafiosos russos fossem perder parte de suas questionáveis fortunas, mas sim de que uma corrida bancária no Chipre fosse levar a pânicos similares na Grécia, na Espanha ou no mundo em geral. Como resultado, os problemas vivenciados por uma insignificante economia estão sendo vistos como uma ameaça a todo o edifício financeiro global. Este é apenas mais um sinal de que nosso sistema financeiro atual se baseia exclusivamente na confiança — algo que, no final, pode ser totalmente efêmero.
Não obstante os insuperáveis desafios matemáticos que aqueles países extremamente endividados têm de enfrentar, os investidores seguem tendo a confiança de que os bancos centrais serão capazes de engendrar um retorno ao crescimento econômico sustentável sem criar uma inflação galopante e sem desencadear uma nova recessão por meio de um prematuro aperto monetário. Isso, mesmo na melhor das circunstâncias, já seria uma tarefa vultosa. Mas se um pequeno problema como o Chipre foi capaz de abalar toda essa confiança, quão robusta ela realmente é?
No final, este episódio do Chipre deixa ainda mais evidente o quão deletéria é a existência de seguros governamentais sobre depósitos bancários. Ao oferecer a ilusão de segurança sistêmica aos depósitos bancários, as garantias governamentais acabam por encorajar a imprudência tanto dos bancos quanto dos depositantes. Se você é um banqueiro e sabe que o governo irá proteger os depósitos de seus correntistas, qual o seu estímulo em ser prudente e não fazer apostas arriscadas no mercado? Se você é um correntista e sabe que o governo está protegendo seu dinheiro, qual o seu estímulo em procurar se informar sobre as atitudes de seu banco? Qual o seu estímulo em procurar bancos prudentes e em evitar bancos arrojados? Mais ainda: qual o estímulo de um banqueiro ser prudente em vez de arrojado?
Seguros sobre depósitos fornecem aos bancos os mesmos incentivos que um seguro federal contra enchentes fornece a imobiliárias que querem construir em zonas suscetíveis a inundação. Aversão ao risco e preferência dos consumidores são poderosas forças que poderiam trazer uma extremamente necessária disciplina ao sistema bancário. No atual arranjo, o banco que for mais prudente e honesto perderá mercado para os imprudentes e desonestos, pois estes poderão por algum tempo oferecer retornos maiores.
_____________________________________________
Leia tembém: