O estado resolve ou cria conflitos?

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“Se as pessoas querem viver juntas e pacificamente, então é impossível evitar o recurso da tomada coletiva de decisões, o que significa que decisões não-unânimes terão de ser impingidas.  E como os interesses de todos os indivíduos não podem ser absolutamente idênticos, então é necessário haver uma agência com poderes coercitivos capaz de impingir sobre todo o coletivo essa decisão”.

O argumento acima é frequentemente feito por pessoas bem intencionadas que tentam justificar a necessidade de haver um estado, mesmo que este seja voltado exclusivamente para os serviços de justiça e segurança.

No entanto, essa idéia não apenas é incompleta, como também é falsa.  Contrariamente ao afirmado, não é difícil imaginar uma cooperação humana pacífica sem a necessidade de qualquer tipo de tomada coletiva de decisões.

Em primeiro lugar, é importante observar que o fato de haver diversidade de interesses individuais não implica que conflitos entre esses indivíduos têm necessariamente de ocorrer.  Duas condições adicionais são necessárias.  Eu quero que chova e meu vizinho quer que faça sol.  Nossos interesses são contrários.  No entanto, nem eu nem ele controlamos o sol ou as nuvens.  Logo, nossos interesses divergentes não possuem consequências práticas.  Interesses divergentes só se transformam em problemas práticos quando os interesses envolvem objetos controlados ou controláveis — ou seja, bens econômicos ou meios de ação.

Adicionalmente, mesmo que esses interesses divergentes envolvam bens econômicos, não haverá nenhum conflito caso esses interesses envolvam bens distintos — ou seja, bens fisicamente separados.

Só haverá conflito se os interesses divergentes envolverem um único bem em comum.  E, para que tais interesses divergentes sejam direcionados para o mesmo estoque de bens, é necessário haver escassez.  Sem escassez, não há possibilidade de conflitos.

Entretanto, mesmo sob condições de escassez, os conflitos não são “inevitáveis”.  Ao contrário, todos os conflitos podem sim ser evitados, desde que todos os bens sejam propriedade privada de indivíduos específicos, e desde que sempre seja reconhecido o quê pertence a quem.

Nesse cenário de propriedade privada plena, os interesses de indivíduos distintos podem ser os mais divergentes possíveis — e ainda assim não haverá conflitos enquanto esses interesses envolverem exclusivamente a propriedade privada de cada indivíduo.

Adicionalmente, para evitar conflitos desde o início da formação de uma sociedade, tudo o que é necessário fazer é que a propriedade privada seja fundamentada em atos de apropriação original — ou seja, por meio de ações em vez de por meio de meras palavras.  O apropriador de um bem até então sem proprietário se torna seu proprietário (sem que haja conflito, justamente porque ele foi o primeiro a se apropriar dela).

Essa propriedade sobre bens e lugares “apropriados originalmente” por uma pessoa implica seu direito de utilizar e transformar esses bens e locais da maneira que mais lhe aprouver, desde que ela, com isso, não altere forçosamente a integridade física dos bens e lugares originalmente apropriados por outra pessoa. Em particular, uma vez que um bem ou um local foi apropriado originalmente por uma pessoa que — nas palavras de John Locke — “misturou seu trabalho” a esse bem ou local, então a propriedade desse bem ou local somente poderá ser legada a terceiros por meio de uma transferência voluntária — contratual — de um título de propriedade.

Nesse arranjo, toda a propriedade, direta ou indiretamente, é adquirida ou transferida por meio de uma corrente mutuamente benéfica e livre de conflitos.

Consequentemente, a resposta à pergunta “podem indivíduos com interesses divergentes coexistirem pacificamente sob condições de escassez?” é: sim, caso reconheçam a instituição da propriedade privada e seus fundamentos, os quais se manifestam direta ou indiretamente por meio de atos de apropriação original.

No que mais, essa resposta é apoditicamente — isto é, não-hipoteticamente — verdadeira, mesmo que ela envolva uma questão empírica.  Somente a propriedade privada pode fazer com que conflitos — que ocorrem sob condições de escassez — sejam evitáveis.

E somente o princípio da aquisição de propriedade por meio da apropriação original, ou por meio de transferências mutuamente benéficas de um proprietário anterior para um posterior, possibilita que os conflitos sejam evitados por completo — desde o início da humanidade até o final.  Nenhuma outra solução existe.  Qualquer outra regra seria contrária à natureza do homem como um agente racional.

Vale ressaltar que a propriedade de bens até então não-apropriados não pode ser estabelecida por meio de uma simples declaração (“este bem sem dono agora é meu!”).  Se a propriedade pudesse ser adquirida por meio de uma simples declaração (em vez de por meio de atos de apropriação ou transferência), os conflitos não apenas não poderão ser evitados, como ainda passarão a ser inevitáveis.

Portanto, para evitar que haja aqueles conflitos que seriam inevitáveis em outros contextos, a privatização original de bens deve ocorrer por meio de ações: por meio de atos de apropriação original daquilo que anteriormente eram “coisas”.  Somente por meio de ações, que ocorrem no tempo e no espaço, pode um elo objetivo ser estabelecido entre um indivíduo e um bem específico.  (Um elo objetivo é um elo averiguável intersubjetivamente).  E apenas o primeiro apropriador de algo até então sem dono pode adquirir esse algo sem haver conflito.  Pois, por definição, sendo o primeiro apropriador, ele não pode entrar em conflito com outros indivíduos ao se apropriar do bem em questão, pois todas as outras pessoas apareceram somente depois de sua apropriação.

Entra o estado

O estado é normalmente definido como a autoridade suprema sobre um determinado território.  É o monopolista supremo da aplicação da lei e da justiça.  É a agência que exerce o monopólio compulsório da jurisdição de seu território.  É o tomador supremo de decisões.  É o árbitro e juiz último de todos os casos de conflito, incluindo aqueles conflitos que envolvem ele próprio e seus funcionários.

Os defensores da existência de um estado argumentam que sua existência é necessária porque é necessário haver uma agência que detenha o monopólio da coerção e que, por meio deste monopólio, retire de circulação outros membros da sociedade dispostos a coagir terceiros inocentes.

O primeiro problema já se faz evidente: como é possível determinar, de forma inequívoca, quem está exercendo coerção e quem está apenas se defendendo violentamente da coerção de outros sem antes termos determinado quem é o proprietário de quê?

A definição de propriedade tem de preceder a definição de coerção.

Adicionalmente, como pode uma instituição se auto-proclamar a autoridade suprema de um território se ela nãoadquiriu essa condição nem por meio de um ato de apropriação original e nem por meio de uma transferência feita pelos apropriadores originais?

É justamente por causa dessa gênese obscura do estado, que podemos falar que seus impostos, suas regulamentações e suas leis são inerentemente coercivas.  Impostos não podem ser vistos como um pagamento de aluguel (que é um contrato voluntário do qual qualquer indivíduo pode se abster), e as regulamentações não podem ser comparadas às regras de um condomínio ou de um clube (também cuja associação é voluntária).

Se o estado for proteger a propriedade utilizando uma polícia estatal, então ele terá de coercivamente coletar impostos.  No entanto, impostos são expropriação.  Desta maneira, o estado paradoxalmente se transforma em um expropriador protetor da propriedade.  Ademais, um estado que quer manter a lei e a ordem, mas que pode ele próprio criar leis, será ao mesmo tempo um transgressor e um mantenedor da lei.

E isso tem de ficar claro: o estado não nos defende; ao contrário, o estado nos agride, confisca nossa propriedade e a utiliza para se defender a si próprio.  A definição padrão do estado é essa: o estado é uma agência caracterizada por duas feições exclusivas e logicamente conectadas entre si.

Primeiro, o estado é uma agência que exerce o monopólio compulsório da jurisdição de seu território; o estado é o tomador supremo de decisões.  Ou seja, o estado é o árbitro e juiz supremo de todos os casos de conflito, incluindo aqueles conflitos que envolvem ele próprio e seus funcionários.  Não há qualquer possibilidade de apelação que esteja acima e além do estado.

Segundo, o estado é uma agência que exerce o monopólio territorial da tributação.  Ou seja, é uma agência que pode determinar unilateralmente o preço que seus súditos devem pagar pelos seus serviços de juiz supremo.

Baseando-se nesse arranjo institucional, é possível seguramente prever quais serão as consequências:

a) em vez de impedir e solucionar conflitos, alguém que possua o monopólio da tomada suprema de decisões irá gerar e provocar conflitos com o intuito de resolvê-los em benefício próprio.  Isto é, o estado não reconhece e protege as leis existentes, mas as distorce e corrompe por meio da legislação.  Contradição número um: o estado é, como dito, um transgressor mantenedor das leis.

b) em vez de defender e proteger alguém ou alguma coisa, um monopolista da tributação irá invariavelmente se esforçar para maximizar seus gastos com proteção e ao mesmo tempo minimizar a real produção de proteção.  Quanto mais dinheiro o estado puder gastar e quanto menos ele tiver de trabalhar para obter esse dinheiro, melhor será a sua situação.  Contradição número dois: o estado é, como dito, um expropriador protetor da propriedade.

O estado opera em um vácuo jurídico.  Não existe nenhum contrato entre o estado e seus cidadãos.  Não está determinado contratualmente o que de fato pertence a quem; consequentemente, não está determinado o que deve ser protegido.  Não está determinado qual serviço o estado deve fornecer, nem o que deve acontecer caso o estado falhe em cumprir seu dever, e nem qual preço o “consumidor” de tais “serviços” deve pagar.  Ao contrário: o estado determina unilateralmente as regras do jogo, podendo mudá-las, por mera legislação, durante o jogo.

Há também outra questão importante relacionada a essa agência compulsória (o estado): mesmo que sua existência se baseasse na aceitação unânime dos cidadãos, ainda assim tal instituição seria injusta.  Consenso não é sinônimo nem de justiça e nem de verdade.  Um acordo que leve à criação de um estado é inválido, pois isso contradiz a natureza das coisas.

Em qualquer época e em qualquer lugar (e na ausência de qualquer harmonia pré-estabelecida), um bem escasso pode ter apenas um proprietário — caso contrário, se cada bem for público, haverá conflitos em vez de harmonia.  No entanto, a propriedade múltipla sobre os mesmos bens é exatamente o que o estado gera.

Mesmo aqueles indivíduos que defendem a existência de um estado não transferiram todas as suas propriedades para o estado; eles continuam se considerando proprietários (e não inquilinos).  No entanto, eles concederam ao estado o poder de ser o tomador supremo de decisões relacionadas a todos os conflitos territoriais.  Isso faz com que o estado seja, com efeito, o proprietário efetivo de todos os bens e de todas as terras do país.

O preço a ser pago por esse acordo “injusto” — contrário à natura das coisas — é o conflito permanente.  O estado poderá, por exemplo, se colocar a favor dos invasores de terra.

Conclusão

Conflitos são possíveis, mas não são inevitáveis.  Entretanto, não faz sentido considerar a instituição de um estado como uma solução para o problema de eventuais conflitos, pois é justamente a criação de um estado o que faz com que os conflitos sejam inevitáveis e permanentes.

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Leia também:

O fundamento lógico para a privatização total

A produção privada de serviços de segurança

A ética e a economia da propriedade privada

Reflexões sobre a origem e a estabilidade do estado

1 COMENTÁRIO

  1. Excelente texto: profundo sem ser extenso! Um aperitivo que atrai o leitor para a obra de Hoppe, que deve ser lida e entendida por qualquer interessado no futuro da Humanidade.

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