Capítulo VIII. A sociedade humana
SEGUNDA PARTE
AÇÃO NA SOCIEDADE
VIII. A SOCIEDADE HUMANA
1. Cooperação humana
Sociedade é ação concertada, cooperação.
A sociedade é a consequência do comportamento propositado e consciente. Isso não significa que os indivíduos tenham firmado contratos por meio dos quais teria sido formada a sociedade. As ações que deram origem à cooperação social, e que diariamente se renovam, visavam apenas à cooperação e à ajuda mútua, a fim de atingir objetivos específicos e individuais. Esse complexo de relações mútuas criadas por tais ações concertadas é o que se denomina sociedade. Substitui, pela colaboração, uma existência isolada — ainda que apenas imaginável — de indivíduos. Sociedade é divisão de trabalho e combinação de esforços. Por ser um animal que age, o homem torna-se um animal social.
O ser humano nasce num ambiente socialmente organizado. Somente nesse sentido é que podemos aceitar quando se diz que a sociedade — lógica e historicamente — antecede o indivíduo. Com qualquer outro significado, este dito torna-se sem sentido ou absurdo. O indivíduo vive e age em sociedade. Mas a sociedade não é mais do que essa combinação de esforços individuais. A sociedade em si não existe, a não ser através das ações dos indivíduos. É uma ilusão imaginá-la fora do âmbito das ações individuais. Falar de uma existência autônoma e independente da sociedade, de sua vida, sua alma e suas ações, é uma metáfora que pode facilmente conduzir a erros grosseiros.
É inútil perguntar se é a sociedade ou o indivíduo que deve ser considerado como fim supremo, e se os interesses da sociedade devem ser subordinados aos do indivíduo ou vice-versa. Ação é sempre ação de indivíduos. O elemento social ou relativo à sociedade é certa orientação das ações individuais. A categoriafim só tem sentido quando referida à ação. A teologia e a metafísica da história podem discutir os fins da sociedade e os desígnios que Deus pretende realizar no que concerne à sociedade, da mesma maneira que discutem a razão de ser de todas as outras partes do universo. Para a ciência, que é inseparável da razão — instrumento evidentemente inadequado para tratar de problemas desse tipo -, seria inútil envolver-se em especulações desta natureza.
No quadro da cooperação social podem emergir, entre os membros da sociedade, sentimentos de simpatia e amizade e uma sensação de comunidade. Esses sentimentos são a fonte, para o homem, das mais agradáveis e sublimes experiências. É o mais precioso adorno da vida; elevam a espécie animal homem às alturas de uma existência realmente humana. Entretanto, esses sentimentos não são como tem sido afirmado, os agentes que engendraram as relações sociais. É fruto da cooperação social e só vicejam no seu quadro; não precederam o estabelecimento de relações sociais e não é a semente de onde estas germinam.
Os fatos fundamentais que fizeram existir a cooperação, a sociedade e a civilização, e que transformaram o animal homem num ser humano, é o fato de que o trabalho efetuado valendo-se da divisão do trabalho é mais produtivo que o trabalho solitário, e o fato de que a razão humana é capaz de perceber esta verdade. Não fosse por isso, os homens permaneceriam sempre inimigos mortais uns dos outros, rivais irreconciliáveis nos seus esforços para assegurar uma parte dos escassos recursos que a natureza fornece como meio de subsistência. Cada homem seria forçado a ver todos os outros como seus inimigos; seu intenso desejo de satisfazer seus próprios apetites o conduziria a um conflito implacável com seus vizinhos. Nenhum sentimento de simpatia poderia florescer em tais condições.
Alguns sociólogos têm afirmado que o fato subjetivo original e elementar na sociedade é uma “consciência da espécie”.[1] Outros sustentam que não haveria sistemas sociais se não houvesse um “senso de comunidade ou de propriedade comum”.[2] Podemos concordar, desde que estes termos um pouco vagos e ambíguos sejam corretamente interpretados. Podemos chamar de consciência da espécie, senso de comunidade ou senso de propriedade comum, o reconhecimento do fato de que todos os outros seres humanos são virtuais colaboradores na luta pela sobrevivência, porque são capazes de reconhecer os benefícios mútuos da cooperação, enquanto que os animais não têm essa faculdade.
Entretanto, não devemos esquecer que são os dois fatos essenciais acima mencionados que fazem existir tal consciência ou tal senso de existência. Num mundo hipotético, onde a divisão do trabalho não aumentasse a produtividade, não haveria sociedade. Não haveria qualquer sentimento de benevolência e de boa vontade.
O princípio da divisão do trabalho é um dos grandes princípios básicos do devenir cósmico e da mudança evolucionária. Os biologistas tinham razão em tomar emprestado da filosofia social o conceito de divisão do trabalho e em adaptá-lo a seu campo de investigação.
Existe divisão do trabalho entre as várias partes de qualquer organismo vivo. Mais ainda, existem no reino animal, colônias integradas por seres que colaboram entre si; tais entidades, formadas, por exemplo, por formigas ou abelhas, costumam ser chamadas, metaforicamente, de “sociedades animais”. Mas não devemos jamais nos esquecer de que o traço característico da sociedade humana é a cooperação propositada; a sociedade é fruto da ação humana, isto é, apresenta um esforço consciente para a realização de fins. Nenhum elemento desse gênero está presente, ao que se saiba, nos processos que resultaram no surgimento dos sistemas estruturais e funcionais de plantas e de corpos animais ou no funcionamento das sociedades de formigas, abelhas e vespas. A sociedade humana é um fenômeno intelectual e espiritual. É a consequência da utilização deliberada de uma lei universal que rege a evolução cósmica, qual seja a maior produtividade da divisão do trabalho. Como em todos os casos de ação, o reconhecimento das leis da natureza é colocado a serviço dos esforços do homem desejoso de melhorar suas condições de vida.
2. Uma crítica da visão holística e metafísica da sociedade
Segundo as doutrinas do universalismo, do realismo conceitual, do holismo, do coletivismo e de alguns representantes da Gestaltpsychologie, a sociedade é uma entidade que vive sua própria vida, independente e separada das vidas dos diversos indivíduos, agindo por sua própria conta e visando a seus próprios fins, que são diferentes dos pretendidos pelos indivíduos. Assim sendo, é evidente que pode surgir um antagonismo entre os objetivos da sociedade e os objetivos individuais. Para salvaguardar o florescimento e futuro desenvolvimento da sociedade, torna-se necessário controlar o egoísmo dos indivíduos e obrigá-los a sacrificar seus desígnios egoístas em benefício da sociedade. Chegando a esta conclusão, todas as doutrinas holísticas têm forçosamente de abandonar os métodos tradicionais da ciência humana e do raciocínio lógico e adotar uma profissão de fé teológica ou metafísica. Forçosamente têm de admitir que a Providência, através de seus profetas, apóstolos e líderes carismáticos, obrigam os homens — que são perversos por natureza, isto é, dispostos a perseguir seus próprios fins — a entrar no caminho certo que o Senhor ou oWeltgeist ou a história quer que eles trilhem.
Esta filosofia é a mesma que desde tempos imemoriais caracteriza as crenças de tribos primitivas. Tem sido um elemento de todos os ensinamentos religiosos. O homem é obrigado a respeitar a lei promulgada por um poder super-humano e obedecer às autoridades, encarregadas por este poder de fazer cumprir a lei. A ordem criada por esta lei, à sociedade humana, é consequentemente obra de uma Divindade e não do homem. Se o Senhor não tivesse interferido e não tivesse iluminado a humanidade pecadora, a sociedade não teria surgido. Não há dúvida de que a cooperação social é uma bênção para os homens; não há dúvida de que o homem só conseguiu livrar-se do barbarismo e da miséria moral e material de seu estado primitivo porque se organizou em sociedade. Entretanto, por si mesmo, jamais encontraria o caminho da sua própria salvação, uma vez que a adaptação às exigências da cooperação social e a submissão aos preceitos da lei moral lhe impunham restrições por demais pesadas. Do ponto de vista de sua débil inteligência, consideraria qualquer renúncia a alguma vantagem esperada como um mal e uma privação. Não seria capaz de perceber as vantagens incomparavelmente maiores, mas posteriores, que a renúncia a prazeres imediatos e visíveis lhe proporcionaria. Se não fosse pela revelação sobrenatural, não teria jamais percebido o que o destino exigia que fizesse para seu próprio bem e o da sua descendência.
A teoria científica elaborada pela filosofia social do racionalismo e do liberalismo do século XVIII e pela moderna economia não recorre a nenhuma interferência miraculosa de poderes sobre-humanos. Toda vez que o indivíduo substitui a ação isolada pela ação concertada, resulta uma melhora imediata e perceptível de sua situação. As vantagens advindas da cooperação pacífica e da divisão do trabalho são universais. Beneficiam imediatamente quem assim age e não apenas, futuramente, os seus descendentes. Aquilo que o indivíduo sacrifica em favor da sociedade é amplamente compensado por vantagens ainda maiores. Seu sacrifício é apenas temporário e aparente; renuncia a um ganho menor para poder obter um maior em seguida. Nenhum ser razoável deixa de perceber fato tão evidente. O que motiva a intensificação da cooperação social — ampliando a divisão de trabalho, fortalecendo a proteção legal e garantindo a paz — é o desejo de todos os interessados em melhorar suas próprias condições de vida. Ao defender o seu próprio — corretamente compreendido — interesse, o indivíduo contribui para intensificar a cooperação e a convivência pacífica. A sociedade é fruto da ação humana, isto é, do desejo humano de diminuir seu desconforto tanto quanto lhe seja possível. A fim de explicar seu surgimento e evolução, não é necessário recorrer a uma doutrina, certamente ofensiva a uma pessoa verdadeiramente religiosa, segundo a qual a criação original foi tão defeituosa, que reiteradas intervenções sobre-humanas seriam necessárias para evitar seu fracasso.
O papel histórico da teoria da divisão do trabalho tal como foi elaborada pela economia política inglesa, de Hume a Ricardo, consistiu em demolir completamente todas as doutrinas metafísicas relativas à origem e ao funcionamento da cooperação social. Consumou a emancipação espiritual, moral e intelectual da humanidade, que fora iniciada pelo epicurismo. Substituiu a antiga ética heterônoma e intuicionista por uma moralidade racional e autônoma. A lei e a legalidade, o código moral e as instituições sociais não são mais reverenciados como decretos insondáveis da Providência. Sua origem é humana e o único critério que lhes deve ser aplicado é o da sua adequação ao bem estar humano. O economista utilitarista não diz: Fiat justitia, pereat mundus.[3] O que diz é: Fiat justitia, ne pereat mundus.[4]
Não pede ao homem que renuncie ao seu bem estar em benefício da sociedade. Recomenda lhe que compreenda quais são os seus verdadeiros interesses. Aos seus olhos, a grandeza de Deus não se manifesta pela diligente interferência nos diversos interesses de príncipes e de políticos, mas por dotar as criaturas com a razão e com o impulso para a busca da felicidade.[5]
O problema essencial de todas essas filosofias sociais do tipo universalista, coletivista, holística é o seguinte: como identificar a verdadeira lei, o autêntico profeta de Deus e a autoridade legítima? Pois muitos pretendem terem sido enviados pela Providência e cada um prega um evangelho diferente. Para o crente fiel, não pode haver dúvida; tem plena confiança de haver adotado a única doutrina verdadeira. Mas é exatamente essa firmeza de convicções que torna os antagonismos irreconciliáveis. Cada grupo está disposto a fazer prevalecer seus próprios princípios. Como não há argumentação lógica capaz de decidir entre os vários credos dissidentes, não resta outro meio para resolver tais disputas a não ser o conflito armado. As doutrinas sociais não racionalistas, não utilitaristas e não liberais têm de provocar conflitos armados e guerras civis até que um dos adversários seja aniquilado ou subjugado. A história das grandes religiões é um registro de batalhas e guerras como também o é a história das pseudorreligiões modernas que são o socialismo, a estatolatria e o nacionalismo.
A intolerância e a propaganda apoiadas na espada do verdugo ou do carrasco são inerentes a qualquer sistema de ética heterônoma. As leis de Deus ou do Destino reivindicam uma validade universal e proclamam que todos os homens devem obediência às autoridades que elas declaram serem legítimas. Enquanto durou o prestígio dos códigos de moralidade heterônomos e seu corolário filosófico — o realismo conceitual — não houve lugar para a tolerância e para a paz duradoura. Quando uma luta cessava, era somente para se reunirem forças para nova batalha. A ideia de tolerância para com pontos de vista divergentes só pôde prosperar quando as doutrinas liberais quebraram o feitiço do universalismo. Para a filosofia utilitarista, a sociedade e o Estado deixam de ser considerados como instituições para manutenção de uma ordem mundial que, por considerações inacessíveis à mente humana, agradava à Divindade, embora manifestamente contrariasse os interesses temporais de muitos ou mesmo da imensa maioria dos que vivem hoje em dia. A sociedade e o Estado são, ao contrário, o principal meio para que qualquer pessoa possa atingir os fins a que se propõe. São criações do esforço humano; sua sustentação e seu aperfeiçoamento são tarefas que não diferem essencialmente das demais preocupações da ação humana. Os defensores de uma moralidade heterônoma e da doutrina coletivista não conseguem demonstrar racionalmente a correção de seu conjunto de princípios éticos nem a superioridade ou a exclusiva legitimidade de seu ideal social. São obrigados a pedir às pessoas que aceitem credulamente seu sistema ideológico e que se submetam à autoridade que elas consideram como legítima; ou então silenciar o dissidente e impor-lhe a submissão.
Haverá sempre, naturalmente, indivíduos ou grupos de indivíduos de inteligência tão curta, que não conseguem perceber os benefícios que a cooperação social lhes proporciona. Há outros cuja solidez moral e força de vontade, são tão fracas, que não conseguem resistir à tentação de obter uma vantagem efêmera através de ações prejudiciais ao funcionamento natural do sistema social. Isto porque o ajustamento dos indivíduos às exigências da cooperação social requer sacrifícios. Em verdade são sacrifícios apenas temporários e aparentes, uma vez que são mais do que compensados pelas vantagens incomparavelmente maiores que a vida em sociedade proporciona. Mas, no instante mesmo em que renunciamos uma satisfação desejada, sentimos certo desconforto, e não é qualquer pessoa que percebe benefícios posteriores e se comporta em função disso. O anarquismo sustenta que a educação poderia fazer com que todos compreendessem qual seria o comportamento mais condizente com os seus interesses; devidamente instruídos, todos se conformariam com as regras de conduta indispensáveis à preservação da sociedade. Os anarquistas afirmam que uma ordem social na qual ninguém tivesse privilégios à custa de seus concidadãos poderia existir sem necessidade de qualquer compulsão ou coerção para impedir ações prejudiciais à sociedade. Tal sociedade ideal poderia prescindir do Estado e do governo, isto é, poderia prescindir do poder de polícia que é o aparato social de coerção e compulsão.
Os anarquistas deixam de perceber o fato inegável de que algumas pessoas são ou muito limitadas intelectualmente ou muito fracas para se ajustar espontaneamente às condições da vida social. Mesmo se admitirmos que todos os adultos sadios sejam dotados da faculdade de compreender as vantagens da cooperação social e de agir consequentemente, ainda assim restaria o problema das crianças, dos velhos e dos loucos. Podemos concordar com a afirmação de que pessoas que agem de maneira antissocial devem ser consideradas como doentes mentais e receber cuidados médicos. Mas, enquanto não forem curados e, enquanto existirem crianças e velhos, algo precisa ser feito para que não se coloque em risco a sociedade. Uma sociedade anarquista estaria à mercê de qualquer indivíduo. A sociedade não pode existir sem que a maioria das pessoas esteja disposta a impedir, pela ameaça ou pela ação violenta, que minorias venham a destruir a ordem social. Este poder é atribuído ao Estado ou ao governo.
O Estado ou o governo é o aparato social de compulsão e coerção. Tem o monopólio da ação violenta. Nenhum indivíduo tem o direito de usar violência ou ameaça de violência se o governo não o investir neste direito. O Estado é essencialmente uma instituição para a preservação de relações pacíficas entre os homens. Não obstante, para preservar a paz, deve estar preparado para reprimir as tentativas de violação da paz.
A doutrina social liberal, baseada nos ensinamentos da ética utilitarista e da economia, vê o problema da relação entre governo e governados de um ângulo diferente daquele do universalismo e do coletivismo. O liberalismo entende que os governantes, que são sempre uma minoria, não podem permanecer indefinidamente no poder sem o apoio consentido da maioria dos governados. Qualquer que seja o sistema de governo, a base sobre a qual é construído e que o sustenta é sempre o entendimento dos governados de que obedecer e ser leal a este governo serve melhor os seus próprios interesses do que a insurreição e o estabelecimento de um novo regime. A maioria tem o poder de rejeitar um governo impopular e usa este poder quando se convence de que o seu bem estar assim o exige. Em longo prazo, não pode haver governo impopular. A guerra civil e a revolução são os meios pelos quais as maiorias descontentes derrubam governantes e métodos de governo que não lhes convêm. Para preservar a paz social, o liberalismo é favorável ao governo democrático. A democracia, portanto, não é uma instituição revolucionária. Ao contrário, é precisamente o modo de evitar revoluções e guerras civis, porque possibilita o ajustamento pacífico do governo à vontade da maioria. Quando os homens no poder e suas políticas, desagradam à maioria, na primeira eleição são substituídos por outros que defendem outras políticas.
O conceito de governo majoritário ou governo pelo povo como recomenda o liberalismo não visa à supremacia do medíocre, do inculto ou dos bárbaros. Os liberais também acham que uma nação deve ser governada pelos mais aptos a esta tarefa. Mas acreditam que a aptidão para governar é mais bem demonstrada pela capacidade de convencer os seus cidadãos do que pelo uso da força. Nada garante, evidentemente, que os eleitores confiarão o poder ao candidato mais competente. Mas nenhum outro sistema poderia oferecer tal garantia. Se a maioria da nação está dominada por princípios falsos e prefere candidatos indignos, não há outro remédio a não ser tentar mudar suas ideias, explicando princípios mais consistentes e recomendando homens melhores. Nenhuma minoria conseguirá êxitos duradouros ao recorrer a outros métodos.
O universalismo e o coletivismo não podem aceitar a solução democrática para o problema do poder. Em sua opinião, o indivíduo, ao agir de acordo com o código ético, não o faz em benefício direto de seus interesses particulares, mas, ao contrário, renuncia aos seus próprios objetivos em benefício dos desígnios da Divindade ou da comunidade. Ademais, a razão, por si só, não é capaz de conceber a supremacia dos valores absolutos e a validade incondicional da lei sagrada, nem de interpretar corretamente cânones e mandamentos.
Portanto, na visão do universalismo e do coletivismo, é inútil tentar convencer a maioria pela persuasão e conduzi-la, amigavelmente, ao caminho certo. Os que receberam a inspiração celestial, iluminados por tal carisma, têm o dever de pregar o evangelho aos dóceis e de recorrer à violência contra os intratáveis. O líder carismático é o vigário da Divindade, o representante da comunidade, instrumento da história. É infalível e tem sempre razão. Suas ordens são a norma suprema.
O universalismo e o coletivismo são necessariamente sistemas de governo teocrático. A característica comum de todas as suas variantes é a postulação de uma entidade sobre-humana à qual os indivíduos devem obediência. O que as diferencia uma das outras é apenas a denominação que dão a esta entidade e o conteúdo das leis que proclamam em seu nome. O poder ditatorial de uma minoria não encontra outra forma de legitimação a não ser apelando para um suposto mandato recebido de uma autoridade suprema e sobre-humana. Pouco importa se o autocrata baseia sua autoridade no direito sagrado dos reis ou na missão histórica da vanguarda do proletariado; nem se o ser supremo se denomina Geist (Hegel) ou Humanité(Auguste Comte). Os termos sociedade e Estado, como empregados pelos adeptos contemporâneos do socialismo, do planejamento e do controle social das atividades dos indivíduos, têm o significado de uma divindade. Os padres dessa nova religião atribuem a seu ídolo todas aquelas virtudes que os teólogos atribuem a Deus: onipotência, onisciência, bondade infinita, etc.
Se admitirmos que exista, acima e além das ações individuais uma entidade imperecível que visa a seus próprios fins, diferentes dos homens mortais, teremos já estruturado o conceito de um ser sobre-humano. Não podemos, então, fugir da questão sobre que fins têm precedência, sempre que houver um conflito: se os do Estado ou sociedade, ou os do indivíduo. A resposta a esta questão já está implícita no próprio conceito de Estado ou sociedade como entendido pelo coletivismo e pelo universalismo. Postularam-se a existência de uma entidade que por definição é mais elevada, mais nobre e melhor do que os indivíduos, não pode haver qualquer dúvida de que os objetivos desse ser eminente devem prevalecer sobre os dos míseros mortais. (É verdade que certos amantes de paradoxos — Max Stirner[6], por exemplo — se divertem invertendo as coisas e, assim, sustentam que a precedência é do indivíduo). Se a sociedade, ou o Estado, é uma entidade dotada de vontade e intenção e de todas as outras qualidades que lhe são atribuídas pela doutrina coletivista, então é simplesmente absurdo confrontar as aspirações triviais do pobre indivíduo com seus majestosos desígnios.
O caráter quase teológico de todas as doutrinas coletivistas torna-se evidente nos seus conflitos mútuos. Uma doutrina coletivista não proclama a superioridade do ente coletivo in abstrato; proclama sempre a proeminência de um determinado ídolo coletivista e, ou nega liminarmente a existência de outros ídolos do mesmo gênero, ou os relega a uma posição subordinada e auxiliar em relação ao seu próprio ídolo.
Os adoradores do Estado proclamam a excelência de um determinado Estado, qual seja o seu próprio Estado; os nacionalistas, a excelência da sua própria nação. Se dissidentes contestam o seu programa, anunciando a superioridade de outro ídolo coletivista, sua única resposta é repetir muitas vezes: nós estamos certos porque uma voz interior nos diz que nós estamos certos e vocês estão errados. Os conflitos entre coletivistas de seitas ou credos antagônicos não podem ser resolvidos pela discussão racional; só podem ser resolvidos pelo recurso à força das armas. As alternativas aos princípios liberais e democráticos do governo da maioria são os princípios militares do conflito armado e da opressão ditatorial.
Todas as variantes de credos coletivistas estão unidas na sua implacável hostilidade às instituições políticas fundamentais do sistema liberal: governo da maioria, tolerância para com as opiniões divergentes, liberdade de pensamento, de expressão e de imprensa, igualdade de todos perante a lei. Essa união dos credos coletivistas nas suas tentativas de destruir a liberdade deu origem à suposição equivocada de que a controvérsia política atual seja entre individualismo e coletivismo. Na verdade, é uma luta entre o individualismo de um lado e uma variedade de seitas coletivistas do outro. E o ódio e hostilidade mútuos entre essas seitas são ainda mais ferozes que sua aversão ao sistema liberal. Não é uma seita marxista uniforme que ataca o capitalismo, mas um bando de grupos marxistas. Esses grupos — por exemplo, stalinistas, trotskistas, mencheviques, seguidores da II Internacional, entre outros — lutam uns contra os outros de forma desumana e brutal. Ademais, existem muitas outras seitas não marxistas que aplicam os mesmos métodos atrozes nas suas lutas internas. Se o coletivismo vier a substituir o liberalismo, o resultado será uma luta sangrenta e interminável.
A terminologia corrente deturpa inteiramente os fatos. A filosofia comumente denominada individualismo é uma filosofia de cooperação social e de intensificação progressiva dos vínculos sociais. Por outro lado, a aplicação das ideias coletivistas só pode resultar na desintegração social e na luta armada permanente. É claro que todas as variedades de coletivismo prometem a paz eterna a partir do dia de sua vitória final e da derrota completa de todas as outras ideologias e seus defensores. Entretanto, para que estes planos sejam realizados, é necessária uma mudança radical no gênero humano. Os homens devem ser divididos em duas classes: de um lado, o ditador onipotente, quase divino, e, do outro, as massas, que devem abdicar da vontade e do raciocínio próprio para se tornarem meros peões no tabuleiro do ditador. As massas devem ser desumanizadas, para que se possa fazer de um homem o seu senhor divinizado. Pensar e agir, as características primordiais do homem, tornar-se-iam o privilégio de um só homem. Não é necessário mostrar que tais desígnios são irrealizáveis. Os impérios milenaristas dos ditadores são fadados ao fracasso; nunca duram mais do que alguns anos. Já assistimos à queda de muitas destas ordens “milenares”. As remanescentes não terão melhor sorte.
O atual ressurgimento das ideias coletivistas causa principal das agonias e desastres de nosso tempo, tem sido tão bem-sucedido, que fez esquecer as ideias essenciais da filosofia social liberal. Hoje em dia, mesmo aqueles que são a favor das instituições democráticas ignoram essas ideias. Os argumentos que invocam para justificar a liberdade e a democracia estão infectados por erros coletivistas; suas doutrinas são muito mais uma distorção do que uma adesão ao verdadeiro liberalismo. Em sua opinião, as maiorias têm sempre razão simplesmente porque têm o poder de derrotar qualquer oposição; governo majoritário equivale à ditadura do partido mais numeroso e a maioria no poder não sente necessidade de se refrear na utilização do seu poder nem na condução dos negócios públicos. Logo que uma facção consegue obter o apoio da maioria dos cidadãos e, desse modo, assume o controle da máquina governamental, considera-se com a faculdade de negar à minoria todos aqueles direitos democráticos por meio dos quais conseguiu alcançar o poder.
Este pseudoliberalismo, evidentemente, é a própria antítese da doutrina liberal. Os liberais não divinizam as maiorias nem as consideram infalíveis; não sustentam que o simples fato de uma política ser apoiada por muitos seja prova de seus méritos para o bem comum. Não recomendam a ditadura da maioria nem a opressão violenta das minorias dissidentes. O liberalismo visa a estabelecer uma constituição política que assegure o funcionamento pacífico da cooperação social e a intensificação progressiva das relações sociais mútuas. Seu objetivo principal é evitar conflitos violentos, guerras e revoluções que necessariamente desintegram a colaboração social e fazem os homens retornarem ao barbarismo primitivo, quando todas as tribos e grupos políticos viviam permanentemente em luta uns com os outros. Como a divisão do trabalho necessita de uma paz duradoura, o liberalismo procura estabelecer um sistema de governo capaz de preservar a paz: a democracia.
A praxeologia e o liberalismo
O liberalismo, no sentido com que esta palavra foi empregada no século XIX, é uma doutrina política. Não é uma teoria, e sim a aplicação das teorias desenvolvidas pela praxeologia, e especialmente pela economia, aos problemas suscitados pela ação humana na sociedade.
Como doutrina política, o liberalismo não é neutro em relação a valores e fins últimos que se pretendem alcançar pela ação. Pressupõe que todos, ou pelo menos a maioria das pessoas, desejam atingir certos objetivos, e lhes informa sobre os meios adequados para a realização de seus planos. Os defensores das doutrinas liberais sabem perfeitamente que os seus ensinamentos só têm validade para as pessoas que estejam comprometidas com essa escolha de valores.
Enquanto a praxeologia e, portanto, também a economia empregam os termos felicidade e diminuição do desconforto num sentido puramente formal, o liberalismo lhes confere um significado concreto. Pressupõe que as pessoas preferem a vida à morte, a saúde à doença, o alimento à fome, a abundância à pobreza. Indica ao homem como agir em conformidade com essas valorações.
É comum qualificar estas preocupações como materialistas e acusar o liberalismo de incorrer num materialismo grosseiro e de negligenciar as aspirações “mais elevadas” e “mais nobres” da humanidade. Nem só de pão vive o homem, dizem os críticos, ao menoscabar a mediocridade e a desprezível baixeza da filosofia utilitária. Entretanto, estas diatribes exaltadas não têm fundamento porque deformam grosseiramente os ensinamentos do liberalismo.
Primeiro: os liberais não afirmam que os homens deveriam empenhar-se para alcançar os objetivos mencionados acima. O que sustentam é que a imensa maioria prefere uma vida de saúde e abundância à miséria, à fome e à morte. A correção desta afirmativa é incontestável. Prova disso é o fato de que todas as doutrinas antiliberais — os programas teocráticos dos diversos partidos religiosos, estatistas, nacionalistas e socialistas — adotam a mesma atitude em relação a estas questões. Todos prometem a seus seguidores uma vida de abundância. Nunca se atreveram a dizer que a implementação do seu programa prejudicaria o bem estar das pessoas. Muito ao contrário, todas essas facções reafirmam insistentemente que a realização dos planos dos seus rivais resultaria no empobrecimento geral, enquanto que os seus planos proporcionariam abundância aos seus adeptos. Os partidos cristãos, quando se trata de prometer às massas um nível de vida mais alto, não são menos exaltados em suas palavras do que os nacionalistas ou os socialistas. As igrejas modernas falam mais sobre a elevação de salários e de preços agrícolas do que sobre os dogmas da doutrina cristã.
Segundo: os liberais não desdenham as aspirações intelectuais e espirituais dos homens. Ao contrário, são estimulados por um ardente entusiasmo pela perfeição moral e intelectual, pela sabedoria e pela excelência estética. Mas sua visão desses nobres e elevados interesses é muito diferente da visão primária de seus adversários. Não compartilham a ingênua opinião daqueles que creem que qualquer sistema de organização social é capaz de encorajar o pensamento filosófico e científico a produzir obras-primas de arte e de literatura e de tornar as massas mais cultas. Entendem que tudo o que a sociedade pode fazer neste particular é proporcionar um ambiente que não coloque obstáculos insuperáveis no caminho dos gênios e libere suficientemente o homem comum de preocupações materiais para que possa interessar-se por outras coisas além de simplesmente ganhar sua subsistência. No seu entender, o melhor meio de tornar o homem mais humano é combater a pobreza. A sabedoria, as ciências e as artes florescem melhor num mundo de abundância do que num mundo de pobreza.
É uma distorção dos fatos acusar o período liberal de um suposto materialismo. O século XIX não foi somente um século de progresso sem precedente quanto a técnicas de produção e a conforto material das massas. Fez muito mais do que aumentar a duração média da vida humana: suas realizações artísticas e científicas são imperecíveis. Foi uma era que assistiu ao surgimento de músicos, escritores, poetas, pintores e escultores que são imortais; revolucionou a filosofia, a economia, a matemática, a física, a química e a biologia. E, pela primeira vez na história, tornou as grandes obras e os grandes pensamentos acessíveis ao homem comum.
Liberalismo e religião
O liberalismo se baseia numa teoria puramente racional e científica de cooperação social. As políticas que recomenda são a aplicação de um sistema de conhecimento que não tem nada a ver com sentimentos, com credos intuitivos para os quais não se possam apresentar provas logicamente suficientes, com experiências místicas, nem com percepções pessoais de fenômenos sobre-humanos. Neste sentido, podem-lhe ser atribuídos os epítetos frequentemente mal compreendidos e erroneamente interpretados — de ateísta e agnóstico. Seria, entretanto um erro grave concluir que as ciências da ação humana e a política derivada de seus ensinamentos — o liberalismo — sejam antiteístas e hostis à religião. Opõem-se radicalmente a todo sistema teocrático, mas são inteiramente neutras em relação a crenças religiosas que não pretendem interferir na condução dos assuntos sociais, políticos e econômicos.
A teocracia é um sistema social que depende de um título sobre-humano para sua legitimação. A lei fundamental de um regime teocrático traduz-se por um insight que não é passível de exame racional e não pode ser demonstrado por métodos lógicos. Seu critério máximo é a intuição, que dota a mente com uma certeza subjetiva sobre coisas que não podem ser concebidas pela razão e pelo raciocínio. Quando esta intuição refere-se a um dos tradicionais sistemas, que predica a existência de um Criador Divino, soberano do universo, é religioso. Quando se refere a outro sistema, é chamada de crença metafísica. Portanto, um sistema de governo teocrático não precisa amparar-se em uma das grandes religiões do mundo. Pode ser o produto de doutrinas metafísicas que rejeitam todas as igrejas e seitas tradicionais e que se orgulha de seu caráter antiteísta e antimetafísico.
Nos dias de hoje, os partidos teocráticos mais poderosos se opõem ao cristianismo e a todas as religiões que derivaram do monoteísmo judaico. O que os caracteriza como teocrático é seu esforço de organizar os assuntos terrenos da humanidade segundo um conjunto de ideias cuja validade não pode ser demonstrada pela razão. Pretendem que seus líderes estejam dotados de um conhecimento inacessível ao resto da humanidade, oposto às ideias sustentadas por aqueles a quem foi negado o carisma. Os líderes carismáticos foram investidos, por um poder místico superiores, da missão de dirigir os interesses de uma humanidade transviada. Somente eles são iluminados; todos os demais são ou cegos e surdos, ou malfeitores.
É fato que muitas variantes das grandes religiões históricas foram contaminadas por tendências teocráticas. Seus apóstolos estavam animados de uma paixão pelo poder a fim de subjugar e aniquilar todos os grupos dissidentes. Entretanto, não devemos confundir religião com teocracia.
William James considera como religiosos “os sentimentos, atos e experiências dos indivíduos em sua solidão, na medida em que acreditam ter uma relação com o que consideram ser o divino”.[7] Enumera as seguintes crenças como características da vida religiosa: que o mundo visível é parte de um universo mais espiritual do qual retira sua significação principal; que a união ou a relação harmoniosa com este universo superior é nosso verdadeiro fim; que a oração ou a comunhão interior com o espírito desse universo mais elevado — seja ele “Deus” ou “a lei” — é um processo real e efetivo do qual flui uma energia espiritual que produz efeitos tanto materiais como psicológicos. A religião continua James, também compreende as seguintes características psicológicas: um novo encantamento que se agrega à vida como um dom, tomando a forma tanto de um arrebatamento lírico como de um apelo à seriedade e ao heroísmo, juntamente com uma sensação de segurança e de paz, assim como uma disposição para o afeto e o amor em relação aos outros.[8]
Esta caracterização das experiências e sentimentos religiosos da humanidade não faz qualquer referência à organização da cooperação social. A religião, como James a entende, é uma relação puramente pessoal e individual entre o homem e uma divina Realidade, sagrada e misteriosa, que inspira respeito e temor. Impõe ao homem certo modo de conduta individual. Mas não faz nenhuma referência em relação aos problemas de organização social. São Francisco de Assis, o maior gênio religioso do Ocidente, jamais se interessou por política ou por economia. Queria ensinar aos seus discípulos como viver piamente; mas nunca imaginou elaborar um plano para organizar a produção, nem incitou seus seguidores a recorrerem à violência contra dissidentes. Não pode ser responsabilizado pela interpretação de seus ensinamentos feita pela ordem religiosa que fundou.
O liberalismo não coloca obstáculos no caminho do homem que deseja ajustar sua conduta pessoal e seus interesses privados segundo a forma como ele, pessoalmente, ou sua igreja, ou seita interpretam o evangelho. Mas se opõe radicalmente a qualquer tentativa de impedir a discussão racional dos problemas de bem estar social mediante um apelo à intuição religiosa e à revelação. Não impõe a ninguém o divórcio ou a prática do controle da natalidade. Mas combate àqueles que querem impedir outras pessoas de discutirem livremente os prós e os contras desses assuntos.
Segundo o entendimento liberal, o objetivo da lei moral é forçar os indivíduos a ajustarem sua conduta às exigências da vida em sociedade, a se absterem de quaisquer atos contrários à preservação da cooperação social pacífica e ao aprimoramento das relações inter-humanas. Os liberais acolhem prazerosamente o apoio que ensinamentos religiosos possam dar a estes preceitos morais, que eles também aprovam, mas se opõem a todas aquelas regras que certamente haverão de provocar a desintegração social, qualquer que seja a fonte de onde provenham.
É uma distorção dos fatos dizer, como o fazem muitos defensores da teocracia religiosa, que o liberalismo se opõe à religião. Onde for admitido o princípio da intervenção da igreja nos assuntos temporais, as diversas igrejas, confissões e seitas lutarão entre si. Ao separar a Igreja do Estado, o liberalismo estabelece a paz entre as diversas facções religiosas e dá a cada uma delas a oportunidade de pregar seu evangelho sem ser molestada.
O liberalismo é racionalista. Sustenta que é possível convencer a imensa maioria de que os seus próprios interesses, corretamente entendidos, serão mais bem atendidos pela cooperação pacífica no quadro da sociedade do que pela luta intestina e pela desintegração social. Tem plena confiança na razão humana. Pode ser que esse otimismo seja infundado e que os liberais estejam errados. Se for assim, o futuro da humanidade é desesperador.
3. A divisão do trabalho
A divisão do trabalho, com sua contrapartida, a cooperação humana, constitui o fenômeno social básico.
A experiência ensina ao homem que a ação em cooperação é mais eficiente e mais produtiva do que a ação isolada de indivíduos autossuficientes. As condições naturais determinantes da vida e do esforço humano fazem com que a divisão do trabalho aumente o resultado material por unidade de trabalho despendido. Esses fatos naturais são:
Primeiro: a inata desigualdade dos homens com relação à sua capacidade de realizar diversos tipos de trabalho. Segundo: a distribuição desigual dos recursos naturais, não humanos, sobre a superfície da terra. Pode-se também considerar estes dois fatos como um mesmo fato, qual seja, a diversidade da natureza que faz do universo um complexo de infinita variedade. Se a superfície da terra fosse de tal ordem que as condições físicas de produção fossem as mesmas em qualquer parte, e se os homens fossem entre si tão iguais como o são dois círculos de mesmo diâmetro na geometria euclideana, não teriam surgido, entre os homens, a divisão do trabalho.
Há ainda um terceiro fato: o de existirem tarefas cuja realização excede as forças de um só homem e exige o esforço conjunto de muitos. Algumas tarefas requerem uma quantidade de trabalho que nenhum homem sozinho seria capaz de despender, pelo simples fato de sua capacidade de trabalho ser limitada. Outras poderiam ser realizadas por um indivíduo, mas o tempo que teria que despender seria tão longo, que o resultado só seria alcançado tarde demais, não compensando o trabalho despendido. Em ambos os casos, somente o esforço conjunto torna possível atingir o fim pretendido.
Se houvesse apenas esta terceira condição, certamente a cooperação temporária teria surgido entre os homens. Entretanto, tais alianças transitórias para realizar tarefas específicas que estão acima da capacidade de um só indivíduo não teriam ocasionado uma cooperação social duradoura. As tarefas que só podiam ser executadas dessa maneira não eram muito numerosas nos primeiros estágios da civilização. Além disso, nem sempre todos os interessados estariam de acordo em considerar que o trabalho em questão fosse mais urgente e necessário do que outras tarefas que cada um poderia realizar sozinho. A grande sociedade humana, englobando todos os homens e todas as suas atividades, não se originou de tais alianças ocasionais. A sociedade é muito mais do que uma aliança passageira feita com um propósito específico e que se dissolve logo que o objetivo é alcançado, mesmo que seus participantes estejam dispostos a refazê-la sempre que necessário.
Quando, na divisão de trabalho, um indivíduo ou uma parcela de terra é superior, pelo menos em um aspecto, aos outros indivíduos ou parcelas de terra, fica evidente o aumento de produtividade daí decorrente. Se A pode produzir por unidade de tempo 6p ou 4q, e B apenas 2p, ou então 8q, A e B, trabalhando isoladamente, produzirão em média 4p + 6q; se dividirem o trabalho e cada um cuidarem apenas de executar o trabalho em que é mais eficiente, produzirão 6p + 8q. Mas o que acontece quando A é mais eficiente do que B, não só na produção de p, mas também na produção de q?
Foi esse problema que Ricardo levantou, para resolvê-lo em seguida.
4. A lei de associação de Ricardo
Ricardo formulou a lei da associação para demonstrar quais são as consequências da divisão do trabalho quando um indivíduo ou um grupo coopera com outro indivíduo ou grupo menos eficiente sob todos os aspectos. Seu objetivo era investigar os efeitos do comércio entre duas regiões desigualmente dotadas pela natureza, pressupondo que os produtos, mas não os trabalhadores e os bens de produção acumulados (bens de capital), pudessem livremente circular de uma região para outra. A divisão do trabalho entre as duas áreas, como mostra a lei de Ricardo, aumentará a produtividade do trabalho e é, portanto, mais vantajosa, mesmo que as condições materiais de produção de qualquer bem sejam mais favoráveis em uma dessas áreas do que na outra. É mais vantajosa para a região mais bem-dotada concentrar seus esforços na produção de bens em que sua superioridade seja maior e deixar para a região menos bem-dotada a produção de outros bens onde a superioridade da primeira seja menor. Este paradoxo — que seja mais vantajoso a uma determinada região não aproveitar condições domésticas mais favoráveis à produção de uma mercadoria e adquiri-la de outra região onde as condições de produção sejam menos favoráveis — é o resultado da imobilidade do capital e do trabalho, aos quais não é permitido o acesso aos locais onde as condições de produção são mais favoráveis.
Ricardo tinha plena consciência de que esta sua lei da vantagem comparativa, formulada principalmente para lidar com um problema específico de comércio internacional, era um caso particular da mais universal lei da associação.
Se A é mais eficiente que B de tal maneira que necessite de 3 horas para produzir uma unidade de p, enquanto B precisa de 5 horas, e de 2 horas (contra 4 horas necessárias a B) para produzir uma unidade de q, resulta que ambos sairão ganhando se A se limitar a produzir q e deixar para B a produção de p. Se cada um deles dedicar 60 horas à produção de p e 60 horas à produção de q, o resultado do trabalho de A será 20p + 30q; o de B será 12p + 15q; e os dois somados, 32p + 45q. Mas A, limitando-se produzir somente q, produz 60qem 120 horas, enquanto B, limitando-se a produzir p, produz no mesmo tempo 24p. A soma de suas atividades será portanto 24p + 60q, a qual — como para A, p tem uma relação de substituição de 3/2 de q, e para B esta relação é de 5/4 de q — significa uma produção maior do que 32p + 45q. Portanto, é evidente que a divisão de trabalho traz vantagens para todos que dela participam. A colaboração dos mais talentosos, mais capazes e mais esforçados com os menos talentosos, menos capazes e menos esforçados resulta em benefício para ambos. Os ganhos obtidos com a divisão do trabalho são recíprocos.
A lei da associação nos faz compreender as tendências que resultaram na intensificação progressiva da cooperação humana. Concebemos assim o incentivo que induziu as pessoas a não se considerarem simplesmente adversárias na luta pela apropriação dos limitados meios de subsistência fornecidos pela natureza. Constatamos o que as impeliu, e permanentemente as impele, a se juntarem para colaborar. Cada passo na direção de um mais elaborado sistema de divisão do trabalho favorece os interesses de todos os que dele participam. Para compreender por que o homem não permaneceu solitário em busca de alimento e abrigo, como os animais, apenas para si ou, quando muito, para sua companheira e sua prole não precisamos recorrer à miraculosa interferência divina nem à hipótese vazia de sentido de um impulso inato para associação. Tampouco precisamos supor que os indivíduos isolados ou as hordas primitivas um belo dia se comprometeram, por contrato, a estabelecer vínculos sociais. O fator que fez nascer a sociedade primitiva e que contribui diariamente para seu desenvolvimento é a ação humana estimulada pela percepção da maior produtividade alcançada pela divisão do trabalho.
Nem a história, nem a etnologia, nem qualquer outro ramo do conhecimento pode fornecer uma descrição da evolução do homem desde os bandos de ancestrais não humanos até os primitivos grupos sociais de que nos informam as escavações, os mais antigos documentos da história e as notícias dos exploradores e viajantes que encontraram tribos selvagens. A tarefa da ciência no que se refere às origens da sociedade só pode consistir em mostrar os fatores que podem e devem resultar na associação e na sua progressiva intensificação. A praxeologia resolve o problema. Se, e na medida em que, pela divisão do trabalho obtém-se maior produtividade do que a obtida pelo trabalho isolado, e se, e na medida em que, o homem seja capaz de perceber este fato, a ação humana tende, naturalmente, para a cooperação e para a associação; o homem torna-se um ser social não por sacrificar seus interesses em favor de um mítico Moloch, a sociedade, mas porque pretende melhorar seu próprio bem estar. A experiência ensina que esta condição — maior produtividade alcançada pela divisão do trabalho — se torna efetiva porque sua causa — a desigualdade inata dos homens e a desigual distribuição geográfica dos fatores naturais de produção — é real. É este fato que nos permite compreender o curso da evolução social.
Erros comuns sobre a lei de associação
Muitos sofismas têm surgido em virtude da lei de associação de Ricardo, mais conhecida como lei das vantagens comparativas. A razão é óbvia. Esta lei contraria todos aqueles que procuram justificar o protecionismo e o isolamento econômico, ao deixar claro que sua única justificativa é a defesa dos interesses egoístas de alguns produtores ou a preparação para a guerra.
O principal objetivo de Ricardo ao formular esta lei foi refutar uma objeção levantada contra a liberdade de comércio internacional. O protecionista pergunta: num regime de livre comércio, qual seria o destino de um país no qual as condições de produção fossem menos favoráveis do que em todos os outros países? Ora, num mundo onde haja liberdade de movimentação, não apenas para mercadorias, mas também para bens de capital e mão de obra, um país tão mal dotado para produção deixaria de ser usado como local de qualquer atividade humana. Se as pessoas têm mais vantagem não explorando as possibilidades físicas oferecidas por este país — porque são comparativamente desvantajosas -, não se estabelecerão nele e o deixarão desabitado como as regiões polares, as tundras e os desertos. Mas Ricardo lida com um mundo cujas condições são determinadas por assentamentos humanos já existentes, um mundo no qual os bens de capital e a mão de obra estão ligados ao solo por determinadas instituições. Em tais circunstâncias, o livre comércio, isto é, a liberdade apenas para circulação de mercadorias, não pode resultar num estado de coisas tal, que capital e trabalho sejam distribuídos pela superfície da terra de acordo com as maiores ou menores oportunidades físicas oferecidas à produtividade do trabalho. É aqui que a lei das vantagens comparativas começa a funcionar. Cada país se dedica aos setores de produção para os quais pode oferecer, comparativamente, embora não absolutamente, condições mais favoráveis. Para os habitantes de um país, é mais vantajoso se abster de explorar algumas oportunidades que sejam — absoluta e tecnologicamente — mais propícias e importar mercadorias produzidas em outro país em condições que são — absoluta e tecnologicamente — menos vantajosas do que os recursos domésticos não utilizados. O caso é análogo ao de um cirurgião que acha mais conveniente contratar alguém para fazer a limpeza da sala de operação e dos instrumentos, embora ele mesmo fosse mais eficiente também nesta tarefa, e, assim, poder dedicar-se exclusivamente à cirurgia, atividade em que sua superioridade é maior.
O teorema das vantagens comparativas não tem nada a ver com a teoria do valor da economia clássica. Não lida com valor nem com preços. É um julgamento analítico; a conclusão está implícita nas duas premissas segundo as quais os fatores de produção tecnicamente possíveis de transportar têm produtividades diferentes de acordo com sua localização e têm sua mobilidade institucionalmente restringida. Este teorema pode, sem prejuízo da correção de suas conclusões, deixar de lado problemas de valoração, porque lhe é possível recorrer a um conjunto de suposições simples. Estas suposições são: que apenas duas mercadorias sejam produzidas; que estas mercadorias tenham livre circulação; que para a produção de cada uma delas sejam necessários dois fatores; que um destes fatores (pode ser tanto trabalho como bens de capital) seja idêntico na produção de ambas as mercadorias, enquanto o outro fator (uma propriedade específica do solo) seja diferente para cada um dos dois processos; que a maior escassez do fator comum a ambos os processos determine a extensão da exploração do fator diferente. Considerando-se estas suposições, que possibilitam estabelecer as relações de substituição entre os dispêndios do fator comum e o produto obtido, o teorema responde à questão levantada.
A lei da vantagem comparativa é independente da teoria clássica de valor, como também o é da lei dos rendimentos, cujo raciocínio é semelhante. Em ambos os casos podemos contentar-nos em comparar apenas os recursos empregados e o produto obtido.
Usando a lei dos rendimentos, comparamos a quantidade produzida de uma mesma mercadoria. Usando a lei da vantagem comparativa, comparamos a quantidade produzida de duas mercadorias diferentes. Tal comparação é possível porque se supõe que para a produção de cada uma, além de um fator específico, somente são utilizados fatores não específicos de mesma natureza.
Alguns críticos censuram a hipótese simplista da lei da vantagem comparativa. Entendem que a moderna teoria do valor exige uma reformulação da lei em conformidade com o princípio do valor subjetivo. Somente tal reformulação poderia fornecer uma demonstração conclusiva e satisfatória. Entretanto, não querem este cálculo feito em termos monetários. Preferem recorrer àqueles métodos de análise da utilidade que eles consideram como um meio de fazer cálculo de valor em termos de utilidade. Veremos mais adiante que essas tentativas de eliminar os termos monetários do cálculo econômico são ilusórias. Carecem de coerência e são contraditórias, resultando defeituoso qualquer sistema que nelas se baseie. Nenhum método de cálculo econômico é possível, a não ser o que se baseia em preços monetários estabelecidos pelo mercado.[9]
As premissas simples que serviram de base à lei da vantagem comparativa não têm exatamente, para os economistas modernos, o mesmo significado que tiveram para os economistas clássicos. Alguns seguidores da escola clássica as consideravam como o ponto de partida de uma teoria do valor no comércio internacional. Sabemos hoje que estavam equivocados. Ademais, já percebemos que, em relação à determinação de valores e preços, não há diferença entre comércio doméstico e internacional. O que leva as pessoas a distinguirem entre mercado interno e mercado externo é apenas uma diferença nos dados, isto é, diferentes condições institucionais que restringem a circulação dos fatores de produção e das mercadorias.
Se não quisermos lidar com a lei da vantagem comparativa adotando as suposições simplificadas utilizadas por Ricardo, devemos empregar abertamente o cálculo monetário. Não devemos incidir no erro de supor que uma comparação entre a utilização de fatores de produção de vários tipos e a produção de mercadorias de vários tipos pode ser feita sem a ajuda do cálculo monetário. Ao considerarmos o caso do cirurgião e seu ajudante, devemos dizer: se o cirurgião pode empregar o seu tempo de trabalho, que é limitado, para realizar operações pelas quais ele recebe 50 dólares por hora, é de o seu interesse empregar um ajudante, para manter seu instrumentos em ordem, pagando-lhe 2 dólares por hora, embora este ajudante necessite de três horas para fazer o que o cirurgião faria em uma hora. Ao comparar as condições de dois países, devemos dizer: se as condições são de tal ordem que, na Inglaterra, a produção de 1 unidade de cada uma das mercadorias a e b necessita o dispêndio de 1 dia de trabalho do mesmo tipo de mão de obra, enquanto que na Índia, com o mesmo investimento de capital, para produção de a são necessários 2 dias e, para b, 3 dias, e se os bens de capital, tanto quanto a e b, podem circular livremente da Inglaterra para a Índia e vice-versa, enquanto que a mão de obra não pode ser deslocada de um lugar para o outro, os salários na Índia para a produção de a tendem a ser 50% e, para a produção de b, 33%, 1/3 em relação aos salários na Inglaterra. Se o salário na Inglaterra é de 6 xelins, os salários na Índia seriam equivalentes a 3 xelins na produção de a e a 2 xelins na produção de b. Tal discrepância de salários para trabalho do mesmo tipo não pode perdurar, se existe mobilidade da mão de obra no mercado interno da Índia. Os trabalhadores se deslocariam da produção de b para a produção de a; esta migração faria reduzir os salários na fabricação de a e aumentá-los na fabricação de b. Finalmente, os salários da Índia seriam idênticos em ambas as indústrias. A produção de atenderia a expandir-se e a superar a concorrência inglesa. Por outro lado, a produção de b deixaria de ser rentável na Índia e acabaria desativada, enquanto que se expandiria na Inglaterra. O mesmo raciocínio se aplica quando consideramos que a diferença nas condições de produção consiste também, ou exclusivamente, no montante do capital de investimento necessário.
Tem sido afirmado que a lei de Ricardo era válida apenas na sua época e que não tem validade hoje, quando as condições são diferentes. Ricardo via a diferença entre comércio doméstico e comércio internacional pela diferente mobilidade que o capital e o trabalho tinham num caso e no outro. Se supusermos que a circulação de capital, trabalho e mercadorias são livres, só existiria diferença entre comércio interno e comércio internacional na medida em que se considerasse o custo de transporte.
Neste caso, seria supérfluo formular uma teoria de comércio internacional distinta daquela do comércio interno. O capital e o trabalho se distribuiriam na superfície da terra de acordo com as melhores ou piores condições oferecidas à produção pelas diversas regiões. Haveria zonas mais densamente povoadas e mais bem equipadas com capital e outras menos densamente povoadas e com menos capital. Prevaleceria no mundo uma tendência à equalização dos salários para o mesmo tipo de trabalho.
Ricardo, entretanto, parte da suposição de que há mobilidade de capital e trabalho apenas no interior de cada país, e não entre os diversos países. Investiga as consequências da livre circulação de mercadorias nestas condições. (Se também não há circulação de mercadorias, então cada país está isolado economicamente, autárquico, e não existe comércio internacional). A teoria da vantagem comparativa responde a esta questão. É certo que a hipótese de Ricardo era, em larga medida, válida na sua época. Mais tarde, durante o século XIX, as condições mudaram. A imobilidade do capital e do trabalho cedeu terreno; transferências internacionais de capital e mão de obra se tornaram cada vez mais frequentes.
Então veio a reação. Hoje, capital e trabalho estão novamente com sua mobilidade restringida. A realidade atual volta a coincidir com as premissas ricardianas.
Os ensinamentos da teoria clássica de comércio internacional estão acima de quaisquer mudanças nas condições institucionais. Permitem-nos estudar os problemas envolvidos em qualquer situação que imaginarmos.
5. Os efeitos da divisão do trabalho
A divisão do trabalho é o resultado da reação consciente do homem à multiplicidade de condições naturais. Por outro lado, é em si mesmo um fator que acentua essas diferenças. Atribui às diversas regiões geográficas funções específicas no complexo do processo de produção. Faz de algumas áreas, zonas urbanas, de outras, zona rural; localiza os vários ramos da indústria, mineração e agricultura em locais diferentes. Mais importante ainda é o fato de que a divisão do trabalho intensifica a desigualdade inata dos homens. O treinamento e a prática de tarefas específicas ajustam melhor os indivíduos às exigências de suas atividades; os homens desenvolvem algumas de suas faculdades inatas e tolhem o desenvolvimento de outras. Surgem às vocações, as pessoas se tornam especialistas.
A divisão do trabalho divide os vários processos de produção em tarefas mínimas, muitas das quais podendo ser realizadas por dispositivos mecânicos. Este fato tornou possível o uso de máquinas e provocou o assombroso progresso das técnicas de produção. A mecanização é fruto da divisão do trabalho, sua consequência mais benéfica, e não sua causa e sua fonte. A maquinaria especializada movida a motor só poderia ser empregada num ambiente social onde predominasse a divisão do trabalho. Cada avanço na direção do uso de máquinas mais especializadas, mais refinadas e mais produtivas exige uma maior especialização das tarefas.
6. O indivíduo na sociedade
A praxeologia, ao estudar o indivíduo isolado, agindo por conta própria e independentemente de seus semelhantes, assim procede para permitir uma melhor compreensão dos problemas da cooperação social. Não assegura que tais seres humanos solitários e autárquicos tenham algum dia existido, nem que o estágio social da história do homem tenha sido precedido por uma era de indivíduos independentes, vagando como animais em busca de comida. A humanização biológica dos ancestrais não humanos do homem e o surgimento dos primitivos laços sociais constituem um mesmo processo. O homem apareceu no cenário dos eventos terrestres como um ser social. O homem isolado, insocial, é uma construção fictícia.
Vista pelo ângulo do indivíduo, a sociedade é o grande meio para atingir todos os fins. A preservação da sociedade é uma condição essencial de quaisquer planos que um indivíduo pretenda realizar. Mesmo o delinquente contumaz que não consegue ajustar sua conduta às exigências da vida num sistema social de cooperação não está disposto a renunciar a nenhuma das vantagens que resultam da divisão do trabalho. Não pretende, conscientemente, destruir a sociedade. O que pretende é apropriar-se de uma parcela da riqueza produzida em conjunto, maior do que aquela que a ordem social lhe consignaria. Ficaria muito infeliz se o comportamento antissocial se generalizasse, acarretando como resultado inevitável o retorno ao estágio de primitiva indigência.
É uma ilusão pensar que o indivíduo, ao renunciar às alegadas benesses de um quimérico estado natural para integrar a sociedade, privou-se de certas vantagens e tem, por isso, direito a uma indenização para compensar o que perdeu. A ideia de que alguém poderia viver melhor se não existisse a sociedade humana, e que, portanto teria sido lesado pela própria existência da sociedade, é uma ideia absurda. Graças à maior produtividade da cooperação social, a população mundial cresceu a um nível muito superior ao que teria crescido, se o rudimentar grau de divisão do trabalho tivesse continuado a prevalecer. Todos os homens usufruem um padrão de vida muito mais elevado do que os seus ancestrais selvagens. A condição natural do homem é de extrema pobreza e insegurança. É uma tolice romântica lamentar o fim daqueles tempos felizes de barbarismo primitivo. Os que lamentam o fim dessa época, se nela tivessem vivido, não teriam atingido a idade adulta, e se o tivessem, estariam privados das oportunidades e amenidades que a civilização proporciona. Jean-Jacques Rousseau e Frederick Engels se tivessem vivido naquele estado primitivo que descrevem com uma ternura nostálgica, não teriam tido o tempo necessário aos seus estudos, nem teriam escrito seus livros.
Um dos privilégios que o indivíduo desfruta em sociedade é o privilégio de viver apesar de doente ou incapacitado fisicamente. O animal doente está condenado à morte. Sua fraqueza torna-lhe difícil encontrar comida e repelir o ataque de outros animais. Os selvagens surdos, míopes ou aleijados não sobrevivem. Mas estes defeitos não privam o homem da possibilidade de se ajustarem à vida em sociedade. A maioria dos nossos contemporâneos sofre de alguma deficiência física que a biologia considera patológica. Nossa civilização é, em grande parte, obra desses homens. As forças eliminadoras da seleção natural são grandemente reduzidas pelas condições sociais. É por isso que alguns afirmam que a civilização tende a deteriorar as qualidades hereditárias dos membros da sociedade.
Tais julgamentos são compreensíveis se consideramos a humanidade com os olhos de um criador que pretende produzir uma raça de homens dotados de certas características. Mas a sociedade não é um haras funcionando com o objetivo de produzir um determinado tipo de homem. Não há nenhum critério “natural” para estabelecer o que é desejável e o que é indesejável na evolução biológica do homem. Qualquer padrão que se escolha é arbitrário, meramente subjetivo, em suma, um juízo de valor. Os termos melhoria racial ou degeneração racial são desprovidos de sentido quando não estão relacionados com planos específicos elaborados para definir o futuro da humanidade.
Na verdade, o homem civilizado está ajustado para viver em sociedade e não para viver como um caçador numa floresta virgem.
A fábula da comunhão mística
A teoria praxeológica da sociedade é exprobrada pela fábula da comunhão mística. A sociedade, afirmam os defensores dessa doutrina, não é o produto da ação propositada do homem; não é a cooperação e a divisão de tarefas. Deriva de profundezas insondáveis, de um impulso intrínseco à natureza essencial do homem. É, para um grupo, fecundação pelo espírito, que é Realidade Divina, e participação no poder e no amor de Deus, em virtude de uma unio mystica.[10] Para outro grupo, a sociedade é um fenômeno biológico; é consequência da voz do sangue, o laço que une os descendentes da mesma ancestralidade com seus ancestrais e entre si; é a harmonia mística entre o lavrador e o solo por ele cultivado.
É verdade que esses fenômenos psíquicos realmente existem. Existem pessoas que sentem a união mística e colocam esta experiência acima de tudo; e existem homens que creem escutar a voz do sangue e que sentem com o coração e a alma o aroma inconfundível de sua terra natal. A experiência mística e o êxtase arrebatador são fatos que a psicologia deve considerar reais, como qualquer outro fenômeno psíquico. O erro das doutrinas de comunhão não consiste na sua afirmativa de que tais fenômenos realmente existem, mas na crença de que são fatos primordiais não suscetíveis de exame racional.
A voz do sangue, que aproxima o pai de seu filho, não era ouvida pelos selvagens que não percebiam a relação causal entre coabitação e gravidez. Hoje, como esta relação é conhecida de todo o homem que tenha total confiança na fidelidade de sua esposa pode percebê-la. Mas, se tem dúvidas quanto à fidelidade da esposa, a voz do sangue não lhe informa nada. Ninguém jamais se aventurou a afirmar que as dúvidas relativas à paternidade pudessem ser esclarecidas pela voz do sangue. A mãe que tenha cuidado de seu filho desde seu nascimento pode ouvir a voz do sangue. Mas, se perde o contacto com a criança muito cedo, pode mais tarde identificá-la por meio de alguma marca no corpo, como por exemplo, aquelas manchas e cicatrizes a que costumavam recorrer os novelistas. Mas o sangue é mudo, se tais observações e as conclusões daí derivadas não lhe fazem falar. A voz do sangue, afirmam os racistas alemães, misteriosamente une todos os membros do povo alemão. Mas a antropologia nos revela que a nação alemã é uma mistura de descendentes de várias raças, sub-raças e linhagens, e não um grupo homogêneo descendente de uma mesma ancestralidade. O eslavo recentemente germanizado, e que só há pouco tempo mudou o seu nome de família por outro cujo som pareça mais germânico, pode acreditar que tenha ligações substanciais com os alemães. Mas não sente nenhum impulso interior impelindo-o a se juntar a seus irmãos e primos que permaneceram tchecos ou poloneses.
A voz do sangue não é um fenômeno original e primordial. É instigada por considerações racionais. Quando um homem acredita estar relacionado com outras pessoas por uma ancestralidade comum, desenvolve sentimentos que são poeticamente descritos como a voz do sangue.
O mesmo se pode dizer do êxtase religioso e do misticismo do solo. A união mística de um crente devoto está condicionada pela sua familiaridade com os ensinamentos básicos de sua religião. Somente aqueles a quem tenha sido ensinada a grandeza e a glória de Deus podem experimentar a comunhão direta com Ele. O misticismo do solo está ligado ao desenvolvimento de determinadas ideias geopolíticas. Assim, pode ocorrer que habitantes da planície ou do litoral incluam na imagem do solo, ao qual se consideram ardorosamente unidos e apegados, regiões montanhosas que lhes são desconhecidas e a cujas condições não conseguiriam adaptar-se, somente por este território pertencer ao corpo político do qual são ou gostariam de ser membros. Por outro lado, frequentemente, não incluem nessa imagem do solo, cuja voz pretende ouvir, áreas vizinhas com uma estrutura geográfica muito semelhante à do local onde vivem, só porque essas áreas fazem parte de uma nação estrangeira.
Os vários membros de uma nação ou grupo linguístico e os agrupamentos por eles formados nem sempre estão unidos por sentimentos de amizade e boa vontade. A história de cada nação é um repertório de antipatias recíprocas e mesmo de ódio entre suas subdivisões. Bastam lembrar os ingleses e os escoceses, os ianques e os sulistas, os prussianos e os bávaros. Foram as ideologias que superaram tais animosidades e que inspiraram a todos os membros de uma nação ou grupo linguístico os sentimentos de comunidade e de solidariedade que os nacionalistas de nossos dias consideram como um fenômeno natural e original.
A mútua atração sexual entre macho e fêmea é inerente à natureza animal do ser humano e independe de qualquer raciocínio ou teorização. Podemos qualificá-la de original, vegetativa, instintiva ou misteriosa; não há inconveniente em afirmar metaforicamente que faz com que dois seres se sintam um só. Podemos considerá-la como uma comunhão mística de dois corpos, uma comunidade. Entretanto, nem a coabitação nem o que a precede ou sucede geram a cooperação social e os modos de vida em sociedade. Os animais também se juntam para cruzar, mas não desenvolveram relações sociais. A vida em família não é apenas um produto da relação sexual. Não é, de modo algum, nem natural, nem necessário que pais e filhos vivam juntos como se faz em uma família. A relação sexual não resulta necessariamente na formação da família. A família humana é resultado do pensamento, do planejamento e da ação. É este o fato que a distingue radicalmente dos grupos animais que, por analogia, chamamos de famílias animais.
A experiência mística da comunhão ou comunidade não é a fonte das relações sociais, mas o seu produto.
O reverso da fábula da comunhão mística é a fábula da repulsão natural e original entre raças e nações. Tem sido dito que um instinto ensina o homem a distinguir entre congêneres e estrangeiros e a detestar os últimos. Os descendentes de raças nobres abominam qualquer contacto com os membros de raças inferiores. Para refutar esta assertiva, basta mencionar a existência da mistura racial. Como não existe atualmente na Europa nenhuma raça pura, somos forçados a concluir que, entre os membros das diversas raças que um dia se estabeleceram no continente europeu, havia atração sexual e não repulsão. Milhões de mulatos e outros mestiços são a evidência viva da falsidade da afirmativa de que existe uma repulsão natural entre as várias raças.
Da mesma forma que o sentimento místico de comunhão, o ódio racial não é um fenômeno natural inato no homem. É o produto de ideologias. Mas mesmo que existisse algo como um ódio natural e inato entre as várias raças, nem por isso a cooperação social seria inútil nem invalidaria a teoria da associação de Ricardo. A cooperação social nada tem a ver com amor pessoal, nem com um mandamento que nos diz para amarmos uns aos outros. As pessoas não cooperam sob a égide da divisão do trabalho porque amam ou deviam amar uns aos outros. Cooperam porque assim servem melhor a seus próprios interesses. Não é o amor, nem a caridade ou qualquer outro sentimento afetuoso, mas sim o egoísmo, corretamente entendido, que originalmente impeliu o homem a se ajustar às exigências da sociedade, a respeitar as liberdades e direitos de seus semelhantes e a substituir a inimizade e o conflito pela cooperação pacífica.
7. A grande sociedade
Nem toda relação inter-humana é uma relação social. Quando grupos de homens se acometem mutuamente em guerras de extermínio total, quando homens lutam entre si tão impiedosamente como se estivessem destruindo animais e plantas perniciosos, existe, entre as partes combatentes, recíproco efeito e mútua relação, mas não sociedade. Sociedade é ação conjunta e cooperação, na qual cada participante vê o sucesso alheio como um meio de atingir o seu próprio.
As lutas que as tribos e hordas primitivas travavam entre si pelos pontos de água limpa, pelos locais de caça e pesca, pelas pastagens e pelos despojos, eram impiedosas guerras de aniquilação. Eram guerras totais. Do mesmo gênero foram os primeiros encontros, no século XIX, entre os europeus e os aborígenes dos territórios até então inacessíveis. Mas já na era primitiva, muito antes do tempo sobre o qual nos ensinam os documentos históricos, outro tipo de procedimento começou a se desenvolver. As pessoas, mesmo na guerra, preservavam alguns rudimentos de relação sociais previamente estabelecidos; ao lutar contra povos com os quais nunca tinham tido qualquer contato, começaram a considerar a ideia de que entre seres humanos, não obstante a inimizade do momento seria possível encontrar, posteriormente, formas de cooperação. As guerras eram empreendidas para causar dano ao adversário; mas os atos de hostilidade não eram mais cruéis e impiedosos no pleno sentido dessas expressões. Os beligerantes começaram a respeitar certos limites que numa luta contra homens — diferentemente de contra animais — não deveriam ser ultrapassados. Acima do ódio implacável e do frenesi de destruição e de aniquilação, uma noção social começou a prevalecer. Emergiu a ideia de que todo adversário devia ser considerado como um parceiro potencial numa futura cooperação e que este fato não devia ser negligenciado na condução das operações militares. A guerra deixava de ser considerada como o estado normal das relações inter-humanas. As pessoas começavam a perceber que a cooperação pacífica é a melhor maneira de proceder na luta pela sobrevivência. Podemos mesmo dizer que, quando as pessoas perceberam que é melhor escravizar os derrotados do que matá-los, os guerreiros, embora ainda lutando, estavam também pensando na paz que viria em seguida. A escravidão foi, em larga medida, um passo preliminar no sentido da cooperação.
O reconhecimento de que, mesmo na guerra, nem todo ato deve ser considerado como permissível, que existem atos de guerra legítimos e outros ilícitos, que existem leis, isto é, afinidades sociais que estão acima de todas as nações, mesmo daquelas que estão momentaneamente em luta, foi o que finalmente estabeleceu a Grande Sociedade, que engloba todos os homens e todas as nações. As várias sociedades regionais passaram a constituir uma única sociedade ecumênica.
Os beligerantes não fazem a guerra de forma selvagem, como as bestas, mas, respeitando normas de guerra “humanas” e sociais, renunciam ao uso de alguns métodos de destruição a fim de obter a mesma concessão de seus adversários. Na medida em que tais regras são respeitadas, existem relações sociais entre as partes em luta. Os atos de hostilidade são não apenas associais, mas antissociais. É impróprio definir o termo “relações sociais” de tal maneira que inclua, nesta definição, ações que tenham por objetivo a aniquilação de outras pessoas e a frustração de suas atividades.[11] Onde as únicas relações entre os homens são as dirigidas ao mútuo detrimento, não existe sociedade nem relações sociais.
A sociedade não é apenas interação. Há interação — influência recíproca — de todas as partes do universo: do lobo com o carneiro devorado; do micróbio com o homem que ele mata; da pedra que cai com o objeto sobre o qual ela cai. A sociedade, ao contrário, implica sempre a cooperação de homens com outros homens, de forma a permitir que todos os participantes atinjam seus próprios fins.
8. O instinto de agressão e destruição
Tem sido dito que o homem é um predador cujos instintos naturais e inatos impelem a lutar, a matar e a destruir. A civilização, ao criar um laxismo humanitário antinatural que aliena o homem de sua origem animal, teria abrandado esses impulsos e apetites. Fez do homem civilizado um poltrão decadente que tem vergonha de sua animalidade e orgulhosamente qualifica de humanitarismo sua depravação. Para impedir uma maior degeneração da espécie humana, é imperativo libertá-la dos efeitos perniciosos da civilização.
Porque a civilização é tão somente uma invenção engenhosa dos seres inferiores. Estes lacaios são fracos demais para enfrentar os heróis vigorosos, são covardes demais para suportar o merecido castigo de sua completa aniquilação, e são preguiçosos e insolentes demais para serem usados como escravos. Por isso, recorreram a um artifício astucioso. Reverteram os eternos padrões de valor, fixados de forma absoluta pelas imutáveis leis da natureza; propagaram uma moralidade que qualifica como virtude sua própria inferioridade e como vício a proeminência dos nobres heróis. Essa rebelião moral dos escravos deve ser desfeita por uma transposição de todos os valores. A ética dos escravos, esse produto vergonhoso do ressentimento dos mais fracos, deve ser inteiramente rejeitada; deve ser substituída pela ética dos fortes ou, para ser mais preciso pela supressão de qualquer restrição de natureza ética. O homem deve tornar-se um digno descendente de seus ancestrais, as nobres bestas dos tempos passados.
Usualmente essas doutrinas são chamadas de darwinismo social ou sociológico. Não é necessário examinar se esta terminologia é apropriada ou não. De qualquer forma, é um erro atribuir os epítetos evolucionário e biológico a ensinamentos que, tranquilamente amesquinhando toda a história da humanidade, desde a época em que o homem começou a se alçar acima da existência puramente animal de seus ancestrais não humanos, qualificam-na de marcha contínua em direção à degeneração e à decadência. A biologia, para avaliar as mutações ocorridas nos seres vivos, não dispõe de nenhum outro critério que não seja procurar saber se essas mutações foram ou não bem-sucedidas em seu objetivo de ajustar os indivíduos às condições de seu meio ambiente e, portanto, aumentar suas chances na luta pela sobrevivência. É um fato o de que a civilização, quando avaliada por este critério, deve ser considerada como um benefício e não como um mal. Possibilitou ao homem não ser derrotado na luta contra todos os outros seres vivos, fossem eles animais ferozes ou ainda os mais perniciosos micróbios; multiplicou os meios de subsistência do homem; aumentou sua altura, sua agilidade, sua versatilidade e a duração média de sua vida; deu ao homem o domínio inconteste da terra; multiplicou os números populacionais e elevou o padrão de vida a um nível nunca imaginado pelos rudes habitantes das cavernas da era pré-histórica. Certamente essa evolução bloqueou o desenvolvimento de certas habilidades e dons que lhes haviam sido úteis na luta pela vida e que perderam a utilidade nas novas condições. Por outro lado, desenvolveu outros talentos e habilidades que são indispensáveis à vida em sociedade.
Não obstante, uma visão evolucionária e biológica não deve sofismar quanto a essas mudanças. Para o homem primitivo, punhos fortes e combatividade eram tão úteis como o conhecimento da aritmética e da gramática o é para o homem moderno. É totalmente arbitrário, e certamente contrário a qualquer critério biológico, considerar como naturais e adequadas à natureza humana apenas aquelas características que foram úteis ao homem primitivo e condenar os talentos e competências extremamente necessários ao homem civilizado como sinais de degenerescência e de deterioração biológica. Recomendar ao homem que recupere as condições físicas e intelectuais de seus ancestrais pré-históricos é tão absurdo quanto pedir-lhe que renuncie ao seu andar ereto e que deixe crescer o rabo.
Vale a pena lembrar que alguns dos que mais se distinguiram na exaltação dos impulsos selvagens de nossos bárbaros antepassados eram tão frágeis, que sua saúde não teria suportado as exigências do “viver perigosamente”. Nietzsche, mesmo antes de seu colapso mental, era tão doente, que o único clima que podia suportar era o do vale do Engadin e alguns distritos italianos. Não teria tido condições de realizar o seu trabalho, se a sociedade civilizada não tivesse protegido seus delicados nervos contra a rudeza da vida. Os apóstolos da violência escreveram seus livros sob o manto protetor da “segurança burguesa”, que tanto ridicularizavam e depreciavam. Eram livros para publicar seus sermões incendiários, porque o liberalismo, que desprezavam, lhes garantia liberdade de imprensa. Ficariam desesperados se tivessem que renunciar às vantagens da civilização desdenhada pela sua filosofia. Que espetáculo, ver o tímido escritor que foi Georges Sorel ir tão longe ao seu elogio à brutalidade, a ponto de condenar o sistema moderno de educação por este enfraquecer a inata violência do homem.[12]
Podemos admitir que, no homem primitivo, a propensão a matar e destruir e a disposição para a crueldade fossem inatas. Podemos também supor que, nas condições daqueles tempos, as tendências agressivas e homicidas favorecessem a preservação da vida. Houve um tempo em que o homem foi uma besta brutal (não é necessário investigar se o homem pré-histórico era carnívoro ou herbívoro). Mas não devemos nos esquecer de que era fisicamente um animal fraco; não teria podido enfrentar os grandes predadores se não estivesse equipado com uma arma especial: a razão. O fato de que o homem é um ser racional, e de que, portanto, não cede, sem inibições, a qualquer impulso e determina sua conduta segundo uma deliberação racional, não deve ser considerado como não natural de um ponto de vista zoológico. Falar de conduta racional significa dizer que o homem, diante do fato de não poder satisfazer todos os seus impulsos, desejos e apetites, renuncia àqueles que consideram menos urgentes. Para não comprometer o funcionamento da cooperação social, o homem é forçado a se abster de satisfazer aqueles desejos cuja satisfação pudesse perturbar o estabelecimento de instituições sociais. Não há dúvida de que tal renúncia seja penosa. Não obstante, o homem fez a sua escolha. Renunciou à satisfação de alguns desejos incompatíveis com a vida social e deu prioridade à satisfação daqueles desejos que só podem ser realizados, pelo menos de forma plena, mediante um sistema de divisão do trabalho. E assim empreendeu o caminho que conduz à civilização, à cooperação social e à prosperidade.
Esta decisão não é irreversível e final. A escolha dos pais não elimina a liberdade de escolher dos filhos. Estes podem reverter à decisão anterior. Podem, diariamente, proceder a uma inversão de valores e preferir o barbarismo à civilização ou, como colocam alguns autores, a alma ao intelecto, o mito à razão e a violência à paz. Mas terão de escolher. Não é possível ter, ao mesmo tempo, coisas incompatíveis.
A ciência, do ponto de vista de sua neutralidade quanto a valores, não condena os apóstolos da violência por exaltarem o frenesi da morte e os prazeres loucos do sadismo. Os julgamentos de valor são subjetivos, e a sociedade liberal reconhece o direito que todos possuem de expressar livremente seus sentimentos. A civilização não extirpou a tendência original à agressão, à sede de sangue e à crueldade que caracterizaram o homem primitivo.
Em muitos homens civilizados, estas tendências estão adormecidas, mas despertam tão logo as barreiras desenvolvidas pela civilização cedam. Lembremo-nos dos horrores inqualificáveis dos campos de concentração nazistas. Os jornais continuamente nos informam sobre crimes abomináveis que atestam os impulsos bestiais latentes. As novelas e filmes mais populares são os que lidam com violência e derramamento de sangue. As corridas de touros e brigas de galo continuam atraindo multidões.
Se um autor diz: “a ralé tem sede de sangue e eu com ela”, pode estar tão certo quanto ao afirmar que o homem primitivo também tinha prazer em matar. Mas erra, se omitir o fato de que a satisfação desses desejos sádicos põe em perigo a existência da sociedade; ou quando afirma que a civilização “verdadeira” ou a “boa” sociedade são uma consequência de pessoas que despreocupadamente procuram satisfazer suas paixões violentas, homicidas e cruéis; ou, ainda, quando sustenta que a repressão dos impulsos de brutalidade comprometem a evolução do gênero humano e que a substituição do humanitarismo pelo barbarismo salvaria o homem da degenerescência. A divisão do trabalho e a cooperação social repousam no ajuste conciliatório das disputas. Não é a guerra, como dizia Heráclito, mas a paz, que é a fonte de todas as relações sociais. Existem outros desejos inatos no homem, além dos instintos sanguinários. Se ele deseja satisfazer esses outros desejos, terá de abafar o impulso de matar.
Quem deseja preservar a vida e a saúde tem de compreender que o respeito pela vida e pela saúde de outras pessoas serve melhor a seus propósitos do que o procedimento inverso. Podemos lamentar que o mundo seja assim. Mas tais lamentações não alteram a realidade concreta.
É inútil censurar esta afirmação, fazendo referência à irracionalidade. Todos os impulsos instintivos desafiam o exame pela razão porque a razão lida apenas com os meios para atingir os fins desejados e não com os fins últimos em si. Mas o que distingue o homem de outros animais é precisamente o fato de ele não ceder, sem alguma vontade própria, a um impulso instintivo. O homem usa a razão para escolher entre satisfações incompatíveis de desejos opostos.
Não se deve dizer às massas: “satisfaz os teus desejos homicidas: é genuinamente humano e contribui melhor ao seu bem estar”. Deve-se dizer: “se quiseres satisfazer tua sede de sangue, deves estar preparado para renunciar a muitos outros desejos. Queres comer, beber, viver numa boa casa, vestir-te e mil outras coisas que só a sociedade pode proporcionar. Não podes ter tudo, tens de escolher. Viver perigosamente e o frenesi do sadismo podem ser do teu agrado, mas são incompatíveis com a segurança e a fartura que também não queres perder”.
A praxeologia, como ciência, não pode usurpar o direito do indivíduo de escolher e agir. As decisões finais cabem aos homens e não aos teóricos. A contribuição da ciência à vida e à ação não consiste em estabelecer julgamentos de valor, mas em esclarecer em que condições o homem deve agir, e em elucidar os efeitos dos diversos modos de ação. Coloca à disposição do agente homem todas as informações necessárias de maneira a que a escolha seja feita com pleno conhecimento de suas consequências. Prepara, por assim dizer, uma estimativa de custos e benefícios. Estaria falhando na sua tarefa, se omitisse dessa estimativa um dos itens que poderiam influenciar as decisões e escolhas das pessoas.
Equívocos correntes da moderna ciência natural especialmente do darwinismo
Alguns dos atuais adversários do liberalismo, tanto de direita como de esquerda, apoiam suas teses em interpretações erradas das contribuições da moderna biologia.
1. Os homens não são iguais. O liberalismo do século XVIII e, da mesma forma, o igualitarismo de nossos dias partem da “verdade autoevidente” que afirma que “todos os homens são criados iguais, e são dotados pelo Criador com certos direitos inalienáveis”. Entretanto, dizem os advogados de uma filosofia biológica da sociedade, a ciência natural já demonstrou, de maneira irrefutável, que os homens são diferentes. No quadro da observação experimental dos fenômenos naturais, não há espaço para o conceito de direitos naturais. A natureza é insensível em relação à vida e à felicidade de qualquer pessoa. A natureza é necessidade e regularidade férreas. É um disparate metafísico juntar a “escorregadia” e vaga noção de liberdade com as leis absolutas e invariáveis da ordem cósmica. Assim, a ideia básica do liberalismo é desmascarada como uma falácia.
Ora, é verdade que o movimento liberal e democrático dos séculos XVIII e XIX tirou uma boa parte de sua força da doutrina da lei natural e dos direitos inatos e imprescritíveis do indivíduo. Essas ideias, que foram originariamente desenvolvidas pela filosofia antiga e pela teologia judaica, impregnaram o pensamento cristão. Algumas seitas anticatólicas fizeram delas o ponto focal de seus programas políticos. Uma longa série de filósofos eminentes as consolidou. Tornaram-se populares e foram a força mais poderosa a atuar na evolução em direção à democracia. Ainda hoje, têm muitos adeptos. Seus defensores não se importam com o fato incontestável de Deus ou a natureza não terem criado os homens iguais, como prova a evidência de que muitos nascem sãos e fortes, enquanto outros nascem aleijados e deformados. Para eles, todas as diferenças se devem à educação, às oportunidades e às instituições sociais.
Mas os ensinamentos da filosofia utilitarista e da economia clássica não têm nada a ver com a doutrina do direito natural. Para elas, o que realmente importa é a utilidade social.
Recomendam governo popular, propriedade privada, tolerância e liberdade. Não por serem naturais e justos, mas por serem benéficos. A essência da filosofia de Ricardo é a demonstração de que a cooperação social e a divisão do trabalho são benéficas tanto aos grupos de homens que sob todos os aspectos, são mais eficientes e superiores, como aos grupos de homens menos eficientes e inferiores. Bentham, o radical, clamava:“Direitos naturais é puro nonsense; direitos naturais e imprescritíveis, nonsense retórico”.[13] Para ele, “o único objetivo do governo devia ser a maior felicidade do maior número possível de membros da comunidade”.[14] Consequentemente, ao investigar o que devia ser considerado um direito, não se preocupa com as ideias preconcebidas concernentes aos planos e intenções de Deus ou da natureza, eternamente inacessíveis aos homens mortais; procura descobrir o que melhor promove o bem estar e a felicidade do homem. Malthus mostrou que a natureza, ao limitar os meios de subsistência, não reconhece a nenhum ser vivo o direito à existência, e que o homem, ao deixar-se levar imprudentemente pelo impulso natural da proliferação, jamais se livraria do espectro da fome. Afirmava ele que a civilização e o bem estar humanos só poderiam desenvolver-se na medida em que o homem aprendesse a controlar os seus apetites sexuais por meio de restrições de ordem moral. Os utilitaristas não combatem o governo arbitrário e os privilégios por serem contrários à lei natural, mas por serem prejudiciais à prosperidade. Recomendam igualdade perante a lei civil, não porque os homens sejam iguais, mas porque tal política é benéfica à comunidade. Ao rejeitar as noções ilusórias de lei natural e igualdade humana, a moderna biologia não fez mais do que repetir o que os utilitaristas defensores do liberalismo e da democracia já haviam ensinado antes, e de maneira bem mais persuasiva. É óbvio que nenhuma doutrina biológica poderá jamais invalidar o que a filosofia utilitarista predica em relação à utilidade social do governo democrático, da propriedade privada, da liberdade e da igualdade perante a lei.
A preponderância atual de doutrinas favoráveis à desintegração social e ao conflito violento resulta não de uma alegada adaptação da filosofia social às descobertas da biologia, mas sim da rejeição quase universal da filosofia utilitária e da teoria econômica. As pessoas substituíram a ideologia “ortodoxa” da harmonia dos interesses corretamente entendidos — isto é, os interesses em longo prazo de todos os indivíduos, grupos ou nações — por uma ideologia de conflitos irreconciliáveis entre classes e entre nações. Os homens estão lutando uns contra os outros porque estão convencidos de que a liquidação e extermínio de adversários é o único meio de promover o seu próprio bem estar.
2. As implicações sociais do darwinismo. A teoria da evolução como exposta por Darwin, afirma uma escola do darwinismo social, demonstrou claramente que, na natureza, não há nada que se possa chamar de paz ou respeito pela vida e bem estar de outrem. Na natureza, o que existe é a permanente luta e o implacável aniquilamento dos fracos, que não conseguem se defender. Os planos do liberalismo para uma paz eterna — tanto nas relações domésticas como nas internacionais — são o produto de um racionalismo ilusório em contradição evidente com a ordem natural.
Entretanto, o conceito de luta pela existência, que Darwin tomou emprestado a Malthus e aplicou à sua teoria, deve ser entendido num sentido metafórico. Seu significado está na afirmação de que um ser vivo resiste ativamente às forças que possam prejudicar a sua própria vida. Essa resistência, para ser bem-sucedida, deve ajustar-se às condições do meio ambiente onde o ser em questão deseja subsistir. Não é necessariamente uma guerra de extermínio, como nas relações entre os homens e os micróbios morbíficos. A razão tem demonstrado que, para o homem, o meio mais adequado de melhorar sua condição é a cooperação social e a divisão do trabalho. Estas são as ferramentas mais importantes na sua luta pela sobrevivência. Mas só funcionam onde exista a paz. As guerras, as guerras civis e as revoluções são prejudiciais ao sucesso do homem na sua luta pela existência, porque desarticulam o aparato da cooperação social.
3. A razão e o comportamento racional, qualificados de antinaturais. A teologia cristã condenou as funções animais do corpo humano e descreveu a “alma” como algo externo aos fenômenos biológicos. Numa reação excessiva contra esta filosofia, alguns contemporâneos têm uma propensão para desvalorizar tudo aquilo que diferencia o homem dos outros animais. Aos seus olhos, a razão humana é inferior aos instintos e impulsos animais; é antinatural e, portanto, inferior. Para eles, os termos racionalismo e comportamento racional têm uma conotação de opróbrio. O homem perfeito, o homem verdadeiro, é um ser que obedece mais aos seus instintos primordiais do que à sua razão.
A verdade evidente é que a razão, o traço mais característico do homem, também é um fenômeno biológico. Não é mais nem menos natural do que qualquer outra característica da espécie homo sapiens, como, por exemplo, o caminhar ereto e a falta de pelagem.
[1] F.H. Giddings, The Principles of Sociology. Nova Iorque, 1926, p.17.
[2] R.M. MacIiver, Society. Nova Iorque, 1937, p. 6-7.
[3] Faça-se justiça, (embora) o mundo seja destruído. (N.T.)
[4] Faça-se justiça, (e) o mundo não será destruído. (N.T.)
[5] Muitos economistas, entre eles Adam Smith e Bastiat, acreditavam em Deus. Portanto, admiravam nos fatos que haviam descoberto o zelo providencial do “Grande Diretor da Natureza”. Os críticos ateus os condenam por isso. Entretanto, estes críticos não percebem que zombar das referências à “mão invisível” não invalida os ensinamentos essenciais da filosofia social racionalista e utilitarista. É preciso compreender que a alternativa é a seguinte: ou a associação é um processo humano porque atende melhor aos interesses dos indivíduos e os indivíduos em si são capazes de perceber as vantagens que derivam de ajustar suas vidas às regras da cooperação social, ou então um ser superior impõe sobre homens relutantes a subordinação à lei e às autoridades sociais. Pouco importa se chamamos esse ser superior de Deus, Weltgeist *, Destino, História,Wotan** ou Forças Produtivas, e que título seja conferido aos seus apóstolos, os ditadores.
* – O Espírito do Mundo. (N.T.)
** – Deus da Guerra e da Sabedoria. (N.T.)
[6] Ver Max Stirner (Johann Kaspar Schmidt). The Ego and his Own. Trad. S.T. Byngton, Nova Iorque, 1907.
[7] W. James, The Varieties of Religious Experience. 35. ed., Nova Iorque, 1925, p. 31.
[8] Ibid, p. 485-486.
[9] Ver adiante p. ……..
[10] União espiritual de um indivíduo com um deus, ou com algum outro ser superior, ou com um líder. (N.T.)
[11] Esta é a terminologia usada por Leopold von Wiese, Allgemeine Soziologie, Munique, 1924, vol. 1, p. 10 e segs.
[12] George Sorel, Réflexions sur la violence. 3. ed., Paris, 1912, p. 269.
[13] Bentham, Anarchical Fallacies; Being an Examination of the Declaration of Rights Issued During the French Revolution, in Works, (Bowring), vol. 2, p. 501.
[14] Bentham, Principles of the Civil Code, in Works, vol. 1, p. 301.