Estamos condenados?
Em meados de março, você notou as redes sociais em polvorosa. Longos textos declarando que se não fizéssemos nada, o fim estaria próximo. Filtros em avatares dizendo “salvem o planeta”. Supostos especialistas, em seus 15 minutos de fama, afirmando que estávamos esgotando nossos recursos naturais. Abaixo-assinados exigindo que governos fizessem algo para evitar uma catástrofe iminente. Todo esse alvoroço era por causa da “Hora da Terra”, um movimento que pedia às pessoas para desligar as luzes por uma hora e “demonstrar apoio à proteção do nosso planeta”.
Quatro meses depois, você percebeu uma movimentação semelhante nessas mesmas redes. Justiceiros sociais proclamando que o capitalismo estava nos levando para o abismo. Gráficos mostrando que precisávamos de quase duas Terras para fornecer todos os recursos naturais que consumíamos. Uma folhinha de calendário com um certo dia destacado em vermelho, mostrando que, naquele dia, havíamos cruzado uma linha perigosa. Toda essa movimentação porque, no final de julho, haveria o “Dia da Sobrecapacidade da Terra”, o dia em que ultrapassaríamos a capacidade de suporte do planeta.
Tudo isso o deixou preocupado, afinal todos nós dependemos dos recursos naturais, sejam bens, sejam serviços. O meio ambiente nos oferece tanto bens naturais, como água, alimentos, madeira, combustível, fibras, remédios e precursores de produtos industriais, quanto serviços que ajudam a sustentar e a satisfazer a vida humana, como a prevenção de enchentes e secas, a manutenção do solo, a polinização, o controle de pragas, a regulação do clima e a contemplação de belezas cênicas. Como ficará tudo isso se estamos esgotando rapidamente nossos recursos?
Por causa desse discurso, ao comprar, digamos, um carro com os frutos do seu suado esforço, você ouve algumas pessoas ao seu redor o cobrando com veemência: “Como assim? Vai continuar consumindo excessivamente ou está disposto a fazer sacrifícios? Graças a gente irresponsável como você é que estamos indo para o buraco!” Mais uma vez, só encenação de virtude, que é usada como desculpa para dar mais poder a políticos. “Será que sou uma pessoa tão má assim?” — você se questiona — “Só quero ir para o trabalho com mais conforto! Será que estou mesmo contribuindo para a ruína das próximas gerações?”
Calma! Como diria o mochileiro das galáxias, “não entre em pânico”. Se não violar a autopropriedade de ninguém, não é preciso se sentir culpado por nada ao procurar melhorar seu bem-estar. Devido aos avanços fornecidos pelo mercado, e apesar das interferências estatais, as coisas não estão tão ruins quanto parecem. Na verdade, a situação está melhorando, ao contrário do que os arautos do fim dos tempos apregoam. O livro “Mais por menos”, publicado em 2019 pelo engenheiro estadunidense Andrew McAfee, ilustrou bem como trocas voluntárias levam a uma utilização mais racional dos recursos naturais.
McAfee argumentou que estamos vivenciando uma espécie de “desmaterialização”, não no sentido de que estamos usando menos itens, mas no de que as quantidades usadas de energia e de materiais – os recursos naturais que consumimos – estão diminuindo, mesmo com crescimentos populacional e econômico. Para exemplificar, o autor citou os Estados Unidos, em que o consumo de matérias-prima como madeira, cimento, cobre e alumínio se estabilizou ou diminuiu a partir do início deste século. Ele também mostrou que, embora a produtividade agrícola tenha aumentado no período, o uso de água, fertilizantes e terra caiu.
Na última década, McAfee escreveu, enquanto a economia dos Estados Unidos cresceu 45% e sua população 8%, a energia consumida no país diminuiu em 2%. Essa tendência também aparece no mundo como um todo. O desacoplamento entre crescimento econômico, crescimento populacional e consumo de recursos naturais refuta a ideia de que preservação e mercado não podem andar lado a lado. “Ah, você está usando dados para embasar sua posição, você é um empirista! Você está contradizendo o que escreveu nos primeiros capítulos de seu próprio livro!” — brada triunfalmente nosso ativista ambiental.
Não, querido justiceiro, esses dados são apenas corroborações do que podemos deduzir logicamente, como já havia escrito. Trocas voluntárias são sempre éticas e mais eficientes. Do ponto de vista econômico, podemos deduzir que tanto empreendedores quanto consumidores levam em conta a disponibilidade dos recursos naturais no futuro em um ambiente de livre-mercado. Lembre-se, capitalismo diminui a preferência temporal – isto é, leva a uma mentalidade de longo prazo – em decorrência da expectativa de que o consumo no futuro será melhor ou maior do que no presente.
Por um lado, essa baixa preferência temporal faz com que empreendedores pensem não nos seus ganhos imediatos, mas sim nos seus lucros ao longo do tempo, fazendo com que procurem preservar os recursos naturais. Por outro lado, consumidores também têm interesse em conservar tais recursos. Se há um produto de que eles gostam e cuja produção dependa de certos recursos naturais, eles têm todos os incentivos para desejar que esses recursos não sejam exauridos. Portanto, à medida que abandonamos o socialismo, a tendência é de que conservemos melhor os recursos naturais.
Daí decorre que a melhor estratégia para a preservação do meio ambiente é privatizar esses recursos, permitindo que seus donos lucrem com eles e satisfaçam as preferências subjetivas dos consumidores. Nesse caso, os donos podem defender e usar racionalmente tais recursos, evitando a tragédia dos comuns. Empreendedores podem desenvolver novas tecnologias que diminuam os custos, reduzindo o consumo de recursos naturais, e que aumentem a produtividade, tornando o retorno futuro maior. Assim, novas tecnologias e maiores produtividades não são ameaças aos recursos naturais, mas sim estímulos para preservá-los.
Os efeitos da intervenção estatal
O mar de Aral localiza-se na Ásia Central, entre o sul do Cazaquistão e o norte do Usbequistão, e é abastecido principalmente pelos rios Amu Darya e Syr Darya. Até 1960, era o quarto maior lago de água salgada do mundo, com cerca de 68.000 km2 de área, maior do que o estado do Rio de Janeiro. Nessa época, a região fazia parte da União Soviética e estava submetida ao planejamento central do governo socialista de Moscou. Como Mises havia alertado quatro décadas antes, no socialismo, o cálculo econômico é impossível, levando necessariamente a uma alocação irracional de recursos, incluindo os naturais.
Não deu outra. No final dos anos 1950, os burocratas do governo de Nikita Kruschev decidiram “estimular a agricultura”, passando a cultivar no entorno do lago especialmente algodão. Para irrigar as plantações, construíram canais para os quais desviaram água dos dois principais rios que abasteciam o lago. Boa parte dessa água desviada, entre um e três quartos conforme a época, era perdida por infiltração e evaporação. A partir de 1960, sem suas principais fontes de água, o lago começou a secar. Além disso, sem a água doce dos rios o abastecendo, sua salinidade começou a aumentar.
Em cinquenta anos, o nível d’água baixou mais de 20 metros, a área diminuiu para 20% do que era antes, o volume de água se reduziu para 10% do original, e a salinidade aumentou mais de 12 vezes. O encolhimento do lago também alterou o clima local, reduzindo a precipitação em dois terços. Assim, o dessecamento do lago foi acompanhado pela desertificação, que diminuiu a cobertura vegetal em 40%. Sem a proteção da vegetação, a frequência das tempestades de areia aumentou bastante. Graças à salinização, à desertificação e à erosão, seis milhões de hectares de terra arável foram perdidos.
Para compensar a diminuição no volume de água e na qualidade do solo, mais pesticidas passaram a ser usados nas plantações de algodão, o que levou a um problema de contaminação. A ictiofauna do lago foi brutalmente impactada. A indústria pesqueira, que, no auge, empregava 40.000 pessoas e era responsável por um sexto de todos os peixes consumidos na União Soviética, colapsou. Tudo isso impactou a população local, que até hoje tem uma baixa expectativa de vida e uma alta taxa de mortalidade infantil. Não por acaso, a tragédia do mar de Aral tem sido considerada “o pior desastre ambiental da história”.
Esse relato é apenas um entre os vários casos de intervencionistas que julgaram saber o que era melhor para a sociedade e usaram os fuzis estatais para impor agressivamente suas políticas. Em maior ou menor grau, todos os estados são assim. O socialismo, ao violar nosso direito natural à autopropriedade, faz com que os recursos naturais sejam necessariamente sub ou sobreutilizados. Ainda, cria conflitos insolúveis e se alimenta deles para aumentar o grau de controle social. Seria possível escrever um livro inteiro só relatando esses casos, mas vou me ater a um outro exemplo, mais recente, aqui do Brasil.
O estado adora usar as camadas mais desfavorecidas para justificar sua existência. Uma pequena dose de pílula vermelha já basta para que vejamos que, na verdade, o estado usa tais camadas para se legitimar psicossocialmente, ao mesmo tempo que as escraviza e as impede de prosperar. Uma das maneiras pelas quais o estado as impede de prosperar é por meio das agências reguladoras, controladas por políticos, que encarecem os custos das transações e impõem barreiras de entrada a um dado setor. Uma delas é a Agência Nacional do Petróleo, que regula o setor de petróleo, gás natural e biocombustíveis no país.
Não deveria haver nenhuma regulação para a oferta de energia, mas, graças à nossa legislação positivista, por algum motivo políticos se julgam no direito de decidir se um produtor rural pode ou não pode produzir álcool combustível – etanol – em sua propriedade. Microdestilarias de etanol são importantes, pois geram empregos, aumentam a oferta energética e elevam a produtividade agrícola. Mesmo usando seu capital, em sua terra, sem violar a autopropriedade de ninguém, um pequeno produtor rural não pode produzir e comercializar etanol sem a bênção de políticos.
Embora hoje seja proibida, essa produção de álcool em pequena escala já é viável economicamente. Com um investimento inicial relativamente baixo, um pequeno produtor consegue montar uma microdestilaria e usar o etanol tanto para consumo próprio quanto para revenda. Para produzir o biocombustível, o produtor pode usar sobras de alimentos, sem valor comercial. No caso da batata-doce, por exemplo, podem-se usar os 30% da colheita que são perdidos por não terem qualidade para a alimentação. Palhas de arroz, sobras de cachaça, cascas de madeira, entre outras, também podem ser usadas para produzir o álcool etílico.
Os resíduos das microdestilarias podem ainda ser usados para alimentar os animais ou fertilizar as lavouras, aumentando a produtividade e gerando riqueza. Note como o mercado funciona: recursos naturais que não eram aproveitados passam a ser graças a um desenvolvimento tecnológico. Recursos que antes eram desperdiçados podem agora ser usados para gerar energia. Porém, algo já viável tecnológica e economicamente, com o potencial de gerar uma revolução tanto energética quanto alimentícia, fica parado devido a proibições exdrúxulas de uma agência reguladora e de decretos executivos.
No momento em que escrevo este texto, há um projeto em trâmite que autoriza microdestilarias de etanol, com um limite de 10.000 litros diários, mas ele ainda está passando por várias comissões da Câmara e não tem previsão de ser votado em plenário. E por que 10.000 litros e não 9.999 ou 10.001? Bom, mais um limite arbitrário da legislação positivista. Mas mesmo que isso venha a ser aprovado por deputados e senadores e que, depois, seja sancionado pelo presidente, o absurdo de uma atividade pacífica não poder ser exercida sem a permissão de políticos continuará.
Os benefícios da livre iniciativa
Os recursos naturais que existem no planeta não possuem valor intrínseco, isto é, não têm valor por si só. Eles passam a ter valor somente a partir do momento em que seres humanos identificam que tais recursos são capazes de atender nossas necessidades e melhorar nosso bem-estar, sem que precisemos despender uma quantidade exagerada de trabalho para usá-los. E a verdade é que ainda usamos muito pouco do que a Terra nos dá: do mais de um trilhão de quilômetros cúbicos de recursos naturais existentes no planeta, usamos apenas cerca de 100 quilômetros cúbicos – ou 0,00001%.
Embora escassa em um dado momento, a oferta de recursos naturais economicamente utilizáveis não é fixa, mas sim algo que tende a aumentar com o tempo, conforme nossa capacidade tecnológica melhora. Há 2.000 anos, um poço de petróleo não tinha valor nenhum, mas hoje é algo extremamente valioso. Daqui a 2.000 anos, talvez esse poço valha muito pouco, se os seus usos atuais forem mais bem satisfeitos por outros recursos. Apenas a atividade empreendedorial dentro de um livre-mercado é que otimiza essa criação de valor e cria incentivos para que recursos naturais sejam usados eficiente e parcimoniosamente.
Em seu livro “Mais por menos”, McAfee discutiu quatro processos pelos quais esse uso mais eficiente e mais parcimonioso é estimulado dentro do livre-mercado. Primeiro, há a “substituição”, que torna itens velhos e ineficientes obsoletos à medida que desenvolvemos novas tecnologias. Segundo, há o “afinamento”, que torna as coisas menores e mais leves, demandando menos recursos. Terceiro, há a “otimização”, que leva a cadeias de produção mais eficazes. Quarto, há a “evaporação”, que faz com que certos itens não sejam mais necessários conforme seus fins sejam incorporados a outros objetos.
No livre-mercado, empreendedores são espontaneamente levados a usar os recursos naturais de modo eficiente. Esses quatro processos que implicam menores custos só são de fato incentivados em um ambiente no qual os consumidores precisam ser agradados e em que há competição ferrenha para satisfazê-los. E isso só ocorre se não houver barreiras de entrada e distorções no sistema de preços. Nesse caso, não é necessário acreditar ingenuamente que as pessoas vão agir contra sua natureza. A busca por lucro em um ambiente de livre-mercado necessariamente leva a um uso mais disciplinado dos recursos naturais.
Por exemplo, ao contrário do estado, que transforma lagos em desertos, o mercado amplia a oferta de água via contenção, transposição, canalização, dessalinização, construção de poços artesianos, captação de água pluvial e reúso. “Ah, mas o prefeito daqui construiu um açude que abastece toda a cidade! E ainda tem uma empresa estatal que distribui a água para todos!” — protesta nosso ativista. Pois é, mas isso acontece graças a um sistema de roubo institucionalizado, os impostos, o que é antiético. E o fato que políticos controlam esse sistema é uma garantia de que a oferta de água será cara e ruim.
Um caso que ilustra bem isso é o que aconteceu na cidade do Rio de Janeiro, no início de 2020, quando moradores notaram, ao abrirem suas torneiras, que a água supostamente potável, fornecida por uma empresa monopolista estatal, tinha cor e sabor desagradáveis. Alguns cidadãos sentiram ardência nos olhos e ânsia de vômito após consumi-la. Aparentemente, essa contaminação estava relacionada com o despejo de esgoto no rio Guandu, principal manancial hídrico da cidade, que elevava a concentração de coliformes fecais e favorecia a proliferação de uma alga.
O nível de contaminação era tão alto que as estações de tratamentos não conseguiam tornar aceitável a qualidade da água. Como a captação e a distribuição de água eram um monopólio estatal, não havia nada que o morador carioca pudesse fazer. Em um livre-mercado, qualquer um poderia buscar soluções para o problema. Empreendedores poderiam, motivados pelo lucro, captar água de outro rio, da chuva ou do mar, tratando-a e dessalinizando-a quando fosse o caso. Nesse caso, um empreendedor que fornecesse água com esgoto – e, ainda por cima, por um alto preço – seria eliminado pela competição sem nenhum dó.
Em um ambiente de livre-mercado, portanto, se a água se torna um recurso demandado e raro, o inevitável aumento de preço cria os incentivos corretos para que empreendedores entrem nesse ramo, criem soluções inovadoras e procurem suprir a demanda. Isso, por sua vez, leva a um aumento na oferta e, consequentemente, a um posterior barateamento desse recurso natural. Por exemplo, a despeito das interferências estatais, já há cisternas de baixo custo e de fácil instalação, que captam e armazenam a água da chuva, capazes de suprir até metade do consumo hídrico de uma residência.
Além disso, inovações criadas por empreendedores para aumentar a oferta de água podem elevar ainda mais a produtividade agrícola, como uma solução desenvolvida pelo cientista norueguês Kristian Olesen. Sua empresa Desert Control desenvolveu uma tecnologia chamada de “nanoargila líquida”, que, quando combinada a solos arenosos, permite que a areia retenha água, possibilitando o cultivo de alimentos. O produto é aplicado no próprio sistema de irrigação da plantação. Como ele favorece a retenção de água, aquilo que seria perdido por infiltração fica nas camadas superficiais do solo, tornando-as férteis.
Felizmente para Olesen, não havia uma “Agência Nacional da Nanoargila”, e ele teve a liberdade para empreender, arriscar seu capital e buscar uma solução inovadora para aumentar a disponibilidade hídrica em solos arenosos. Se sua solução satisfizer seus potenciais clientes, ele fará jus ao seu merecido lucro. Quando o estado deixa, o mercado traz soluções inovadoras. Como já diz o ditado popular, “muito ajuda quem não atrapalha”. Mas isso é pedir demais, não é? O estado não só dificulta ao máximo a vida de quem está buscando aumentar a oferta de recursos naturais, como, muitas vezes, pune boas iniciativas.
Exemplificando, em 2014, um músico goiano que morava em Anápolis, preocupado com questões ambientais, decidiu criar um sistema de filtragem para reciclar e reutilizar a água que usava em sua casa. Com esse sistema, ele conseguiu reduzir bastante o seu consumo doméstico, diminuindo, consequentemente, o valor de sua conta de água. Como recompensa, ele recebeu a visita de um funcionário da empresa monopolista estatal, que o acusou de fazer uma ligação clandestina e o penalizou com uma taxa extra. Pois é, é assim que o estado premia quem se preocupa com o meio ambiente…
Quando o estado deixa os cidadãos em paz, porém, surge uma ordem espontânea que tende a racionalizar o uso dos recursos naturais. Em sua tese de doutorado, publicada em 1972, o antropólogo estadunidense John Cordell relatou o caso de pescadores artesanais em Valença, uma cidade no litoral sul da Bahia, entre Salvador e Ilhéus. Desde o início do século passado, eles pescavam em um estuário próximo à vila em que moravam. Para sorte desses pescadores, os políticos locais não prestavam atenção ao que eles faziam, permitindo que tivessem autonomia o suficiente para desenhar seus próprios arranjos sociais.
Inicialmente, houve vários conflitos provocados pelas diferentes técnicas tradicionais que usavam: redes de emalhe, redes de arrasto, tarrafas, armadilhas ou linha e anzol. Quando os pescadores procuravam peixes no mesmo local, muitas vezes seus equipamentos se entrelaçavam e se danificavam, o que levava a disputas violentas. Com o tempo, os pescadores encontraram um arranjo que resolvia boa parte de seus problemas. Eles dividiram o estuário em várias áreas conforme a técnica usada, de modo que, em um dado local, não havia mais diferentes tipos de equipamento, e sorteavam a ordem em que os locais eram usados.
Por muito tempo, nenhuma outra comunidade de pescadores se interessou por aquele estuário, de forma que, por apropriação original, eles eram os legítimos donos daquele lugar. As coisas caminhavam em paz e os pescadores seguiam sua rotina – que não era fácil, mas que garantia o sustento de suas famílias. Ainda que imperfeito, especialmente porque não havia um sistema de justiça privada que resolvesse eventuais conflitos relacionados ao direito de propriedade privada, os pescadores de Valença naturalmente encontraram um arranjo social satisfatório.
Mas eis que, nos anos 1960, entraram os planejadores centrais. Nessa década, políticos e tecnocratas decidiram que era necessário “modernizar” a pesca naquela região. O governo federal, via Banco do Brasil, estabeleceu uma linha de crédito para a compra de redes de náilon, mais eficientes do que as de fibras naturais que os pescadores de Valença tradicionalmente usavam. Esses pescadores, porém, segundo os critérios do banco, não eram qualificados para pleitear o empréstimo. “Vocês sequer têm conta no banco, como querem pegar dinheiro emprestado?” — devem ter escutado à época.
Entretanto, os cidadãos mais abastados da cidade foram considerados pelo banco aptos a pleitear o crédito, e alguns deles realizaram empréstimos para comprar as redes de náilon. Com tais redes devidamente compradas e com dinheiro no bolso, esses cidadãos puderam contratar pessoas sem nenhuma experiência para pescar na região. Esses novos pescadores invadiram o estuário de Valença e ignoraram qualquer arranjo que havia ali. Lembre-se: sempre que o direito natural à propriedade privada é ignorado, conflitos insolúveis aparecem e recursos, inclusive os naturais, tendem a ser usados à exaustão.
Dito e feito. Com essa invasão de pescadores, surgiram conflitos violentos entre os novos e os antigos. Houve troca de tiros, pescadores mortos e feridos, equipamentos destruídos, um caos… Todos os pedacinhos do estuário eram intensamente disputados pelos novos e antigos pescadores. Aquela “tragédia dos comuns” se repetiu ali, com o consequente esgotamento do recurso natural explorado, os peixes. Em pouco tempo, a área teve de ser abandonada, porque já não era mais possível subsistir dela. Como sempre, a intervenção estatal, o planejamento central e a violação de propriedade privada trouxeram desgraça.
A questão da reciclagem
No seu apartamento, Cláudia tem quatro lixeiras para diferentes tipos de materiais recicláveis: metal, papel, plástico e vidro. A duras penas, ela criou o hábito de separar o lixo conforme o material. Uma vez por semana, religiosamente, ela leva os sacos de lixo, devidamente separados, para o posto de coleta próximo da sua residência. Cláudia volta para casa de peito estufado, orgulhosa de si mesmo: “Fiz minha parte, estou ajudando a transformar o mundo em um lugar melhor! Ah, se todos fossem tão conscientes quanto eu!” Bom, sinto lhe informar, mas talvez ela não esteja ajudando o meio ambiente nesse caso.
Como já nos ensina o ditado, “de boas intenções o inferno está cheio”. A propaganda estatal nos diz que a reciclagem reduz a extração de mais recursos naturais, o que implica que mais recursos são conservados e menos energia é consumida. A princípio, isso faz sentido – a ideia de reciclar recursos naturais parece algo nobre e bom, tanto econômica quanto ambientalmente. A reciclagem pode até nos fazer sentir bem, mas, da maneira como ela vem sendo feita hoje em dia, seus efeitos talvez sejam contrários àqueles pretendidos, seja em relação à melhora do bem-estar humano, seja em relação à saúde do planeta.
O vilão dessa história é, mais uma vez, o estado, que interfere nas trocas voluntárias, obriga agressivamente cidadãos pacíficos a fazer o que não fariam normalmente, distorce o sistema de preços e garante uma alocação irracional de recursos. Graças a essa interferência, algo que poderia ser de fato benéfico se transforma em um pesadelo diário para a maioria das pessoas. Há países em que as regras para a reciclagem são tão complexas que é quase necessário ter uma espécie de “pós-doutorado em separação de lixo” para conseguir realizar a tarefa. Em vez de preocupação com o ambiente, temos controle social.
O que frequentemente é esquecido em toda essa questão da reciclagem é que seu processo também demanda recursos naturais e também gera resíduos. Nesse caso, será que reciclar é sempre a melhor escolha? Será que não estamos gastando mais recursos ao optar por isso? O ponto é que como não há direitos de propriedade claramente definidos sobre os recursos naturais, como os aterros sanitários tendem a ser públicos e como não existe um livre-mercado para o serviço de reciclagem, não temos as informações necessárias para tomar decisões corretas nessa questão.
O que podemos afirmar praxeologicamente é que a intromissão do estado implica necessariamente desperdício de recursos naturais. Senão, vejamos. Em relação à produção de lixo em si, a necessidade de políticos e ativistas ambientais imporem seu controle social superestima o problema. Não, não vamos morrer sufocados sob uma pilha de entulho. Na verdade, se pegássemos todo o lixo sólido a ser produzido nos próximos mil anos e o colocássemos em um único local, ele ocuparia somente 114 quilômetros quadrados, aproximadamente 0,001% da área do Brasil ou um terço do arquipélago de Ilhabela.
Disso podemos concluir que a falta de áreas para a construção de aterros sanitários é outro mito. Se a área necessária para acomodar o lixo sólido é pequena, certamente há ainda vários locais apropriados, devidamente afastados de centros urbanos, para se construírem novos aterros. Caso a demanda por espaço para aterros sanitários fosse assim tão alta e sua oferta tão baixa, o preço da terra para esse uso seria tão elevado, que haveria gente deixando de plantar soja ou criar bois em suas fazendas para transformá-las em depósitos de lixo. Mesmo com as interferências econômicas estatais, não é isso que vemos.
Além disso, para reciclar um dado material precisamos coletá-lo, triá-lo, transportá-lo e processá-lo. Isso exige mão-de-obra, caminhões, combustível e usinas, o que também consome recursos naturais. Sem contar o custo de dar um fim adequado aos resíduos produzidos no processo. Isso é vantajoso? Provavelmente, não. Considerando esses fatores, o custo da reciclagem quase sempre – com exceção, talvez, do alumínio – excede o custo de extrair e processar novos recursos naturais e, depois, despejar seus resíduos em aterros. “Você só está levando em conta o custo econômico! E os custos sociais e ambientais?” — protesta o ativista.
Não, não, como já vimos, isso está tudo ligado. Os programas de reciclagem atuais funcionam como todas as regulações estatais: primeiro, investe-se pesadamente em propaganda para convencer os eleitores da sua necessidade e, segundo, usam-se quaisquer meios à disposição para implementar e manter o programa, independentemente dos desperdícios. Como o estado opera fora do mercado, não se preocupa com receitas e despesas. Se precisar de mais verba, simplesmente rouba mais dinheiro do setor produtivo. Logo, o estado não possui nenhum estímulo para otimizar tais programas.
Mesmo que as empresas que prestem o serviço de reciclagem sejam privadas, elas operam dentro do paradigma estatal. Tais empresas dependem de repasses, normalmente das prefeituras, que extorquem seus munícipes com uma série de impostos. Se o que as empresas de reciclagem ganham não é suficiente para cobrir o que foi acordado na licitação, a diferença é subsidiada com parte do que foi extorquido. Ademais, para separar previamente o lixo, muitas vezes essas empresas dependem dos esforços dos cidadãos, que, assim, se transformam em mão-de-obra não paga – ou, em português bem claro, escravos.
Se o nosso objetivo for otimizar o uso de recursos naturais e tornar programas de reciclagem racionais, a única opção é o livre-mercado. Só nele é que somos capazes de equacionar as demandas da sociedade e a oferta de recursos naturais com o serviço de reciclagem. Como buscam lucros, empreendedores têm um grande incentivo para minimizar custos, o que inclui diminuir o consumo de recursos naturais. Logo, se uma empresa, em um livre-mercado, tiver lucro reciclando este ou aquele material, podemos ter certeza de que mais recursos estão sendo salvos do que gastos. Se tiver prejuízo, reciclar não é a melhor opção.
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Fontes
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