Até aqui, temos nos dedicado predominantemente ao estudo da Economia, depois de oferecer as considerações epistemológicas que fundamentam esse estudo. Passaremos agora à esfera do pensamento ético-jurídico, onde a Escola Austríaca, sobretudo pelas mãos de seus últimos cultores, também nos legou formidáveis contribuições.
Em primeiro lugar, antes que continuemos, é preciso fazer algumas distinções, para que você saiba exatamente onde termina a Economia e começa a Ética, termina esta e começa o Direito, termina este e começa a Moral, e saiba o que cada uma dessas coisas é, e não as confunda nem as misture.
Se me permitem aventurar algumas definições, baseadas no conhecimento que adquiri desses assuntos, diria que Economia (com E maiúsculo) é a Ciência Econômica, que é o estudo da economia (com E minúsculo), que por sua vez defino como o movimento do capital. A Economia, portanto, é aquela ciência que estuda o movimento do capital. Ela se baseia na praxeologia, que estuda a ação tal como é (ciência descritiva a priori).
A Ética, por seu turno, e a meu ver, é a ciência que estuda o dever-ser objetivo, ou seja, a ação tal como deveria ser, constituindo uma ciência normativa a priori. É impossível, portanto, confundir Ética com Economia, embora ambas estejam intimamente ligadas.
A Economia pertence ao campo do que Mises chama de proposições existenciais, que são afirmações cujo propósito é descrever a realidade tal como ela é – apontando a existência ou não existência de alguma coisa. “Elas afirmam algo a respeito do estado de todo o universo ou de partes do universo. No que diz respeito a elas, questões de verdade e falsidade são significativas”.[1] Exemplos de juízos assim são: o céu é azul, estou com fome, dois mais dois é quatro. Ainda no entender de Mises, tais proposições se opõem aos chamados julgamentos de valor, que são juízos baseados em preferências, valores e gostos pessoais, a exemplo de: prefiro banana a uva, o matrimônio é sagrado, deve-se respeitar os mais velhos. Quanto a esses últimos, diz Mises, “não pode existir qualquer questão de verdade e falsidade. São definitivos e não estão sujeitos a qualquer tipo de prova ou evidência”.[2] Para deixar claro, a proposição “eu gosto de banana” pode, sim, ser verdadeira ou falsa, pois alguém pode de fato gostar ou não de banana, mas entenda que essa assertiva se refere a um determinado gosto ou preferência pessoal, e é nesse sentido que ela se faz um julgamento de valor.
Essas duas categorias de proposições, aliás, deve-se dizer, são mais comumente conhecidas como juízos de fato e juízos de valor. Contudo, há uma terceira categoria cujas sentenças nem dizem algo descritivo sobre a realidade, nem se resumem a mera expressão de valor pessoal: são as proposições normativas a priori, que expressam um dever-ser objetivo. É nelas que a Ciência da Ética se baseia.
Obviamente, se a Ética não se baseasse em proposições objetivamente verdadeiras, ela não seria uma ciência, e sim um mero conjunto de normas e valores mutáveis ao longo do tempo – i.e., uma moral. O que diferencia a Ética da Moral é que esta se constitui de normas subjetivas e contingentes, que portanto mudam conforme o tempo, o lugar e a pessoa, ao passo que a Ética possui normas objetivas, universais e eternas, ou seja, que não variam conforme o sujeito, o local e a época. Ambas, todavia, a moral e a ética, sempre podem ser violadas. A diferença é que uma violação da Ética não pode ser racionalmente justificada, sendo portanto uma transgressão de maneira objetiva. Já a violação de uma regra moral depende da subjetividade de quem julga. Por exemplo, para algumas pessoas, matar animais é altamente imoral, e para outras é não só moral como necessário. Cada um possui a sua moral – i.e., o seu conjunto de valores – e não há maneira cientificamente objetiva de definir quem está certo. Cada um vive a sua vida conforme acha melhor. Mas, no que diz respeito à Ética, ao dever-ser objetivo, as coisas mudam, pois aí as regras se tornam absolutamente inarredáveis, e quem for contra elas estará indo contra si mesmo (falaremos disso mais adiante).
Já sabemos, então, que a Economia é o estudo descritivo do funcionamento do capital, baseado na praxeologia, que investiga a essência da ação, isto é, como a ação de fato é, constituindo-se portanto de juízos de fato. Sabemos também que a Ética é o estudo da ação humana tal como deve ser, de um ponto de vista racional e objetivo, constituindo-se de juízos normativos a priori; e, finalmente, que a Moral é um conjunto de normas e valores variantes de acordo com lugar, tempo e pessoa, e vem a fundar-se sobre juízos de valor. (Nem por isso a moral deve ser desdenhada, já que na prática ela prepondera na condução da história humana.) Mas cabe ainda apresentar e esclarecer o significado de um quarto conceito capital, sem o que esta nova etapa dos nossos estudos ficaria incompleta: o conceito de Direito.
Desse conceito existem três acepções principais que você deve conhecer: direito enquanto ciência, direito enquanto ordenamento jurídico, e direito enquanto direito subjetivo.
O Direito enquanto ciência é a Ciência Jurídica (antigamente chamada de Jurisprudência). O Direito enquanto ordenamento jurídico é o conjunto das leis de uma determinada sociedade, tal como o Direito Brasileiro, o Direito Alemão e o Direito Canônico. E o direito enquanto direito subjetivo é uma espécie de poder ou possibilidade de agir que o indivíduo tem frente ao ordenamento que lhe permite reivindicar alguma coisa, a exemplo do direito de ir e vir, o direito de propriedade, o direito ao voto, o direito a educação, e outros.[3] Essas três acepções serão facilmente discerníveis ao longo do curso.
Por fim, com a licença do leitor, gostaria de oferecer a minha definição de justiça. Ocorre que, depois de conhecer as principais concepções de justiça que aparecem na história do pensamento ocidental, busquei o que havia de comum nessas concepções e cheguei a uma definição que considero indicar a essência da palavra, qual seja: justiça é a conformidade com um dever-ser. Porque, sempre que se diz que isso ou aquilo é justo, quer-se dizer que um fenômeno ou ação está conforme uma determinada regra ou valor que se pressupõe. Por exemplo, quando se diz “a vida é justa”, está-se dizendo que a vida é como deveria ser, e quando se diz que é injusta, então que é como não deveria ser. Da mesma forma com ações: as que são ditas justas, no olhar do observador, são aquelas que estão conforme ideias normativas e valorativas desse mesmo observador, e as injustas, aquelas que se afastam dessas ideias. Assim, podemos dizer que existem duas categorias fundamentais de justiça: a justiça objetiva, baseada no dever-ser objetivo e investigada pela Ética, e as mais diversas justiças subjetivas, baseadas nos infinitos juízos de valor dos homens e impassíveis de crítica racional.
Conquanto todos nós tenhamos nossa ideia particular de justiça e nossos valores mais estimados, este estudo se focará na Ética, isto é, no estudo objetivo do dever, em busca de determinar o que é objetivamente justo e, dessa forma, erigir um sistema ético-jurídico baseado na natureza das coisas e da razão – pragmático e transcendental.
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Notas
[1] Mises, Teoria e História, p. 29.
[2] Mises, idem.
[3] Miguel Reale, Lições Preliminares de Direito, pp. 62-63.