Nos dias de hoje, o fenômeno da repartição da herança tem sido uma fonte interminável de conflitos no seio das famílias angolanas e não só. Tios não falam com sobrinhos, esposas se isolam do convívio com a família do esposo falecido, laços familiares no geral são cortados; tudo isso por conta de uma sucessão mal feita ou feita fora dos padrões culturais ancestrais, resultando na desestruturação familiar, surgimento de órfãos e maximização do fenômeno da mendicância. De um lado, fruto da aculturação jus positivista da sociedade, há aqueles que defendem que a herança é pertença exclusiva da esposa e dos filhos do de cujus, (herdeiros) e de outro lado, há aqueles que influenciados pela cultura ou tradição, defendem o alargamento da herança para mais membros da família, tais como: pais, irmãos, sobrinhos, tios etc.
Bem, recorrendo a teoria da propriedade privada, que é aquela que nos permite resolver todo e qualquer tipo de conflitos, o primeiro passo para resolver conflitos relacionados a herança será o de assumir a auto propriedade enquanto a fonte de todas formas de propriedades. Na verdade, a repartição da herança é mais sobre determinar a quem pertence ou de quem é a propriedade do corpo do de cujus e só depois sobre os bens por ele deixados. Como já dissemos acima, todas as outras formas de propriedades são derivações da propriedade mãe que é a auto propriedade ou a propriedade sobre o próprio corpo.
Desse modo, toda auto propriedade é propriedade de auto propriedades anteriores e também de outras auto propriedades posteriores de si derivadas. Dito de forma mais simples: se A gera B e este C, pela teoria da propriedade privada, C é também sequencialmente propriedade de A. Só que, por se tratar de propriedades independentes e impossíveis de serem arroladas como simples bens, as auto propriedades derivadas assumem também a auto propriedade de onde derivam no caso da morte. Portanto, no caso da morte de uma pessoa, sua auto propriedade não se extingue completamente, podendo ramificar-se em outras auto propriedades. Essa perspectiva reforça a ideia de que o de cujus é propriedade de seus pais e seus filhos, pelo que, por extensão, os bens que a ele pertenciam devem ser igualmente pertença desses.
Nesse caso, a herança do de cujus pertence a seus pais e filhos, sendo a distribuição feita de forma proporcional. O ideal seria que a maior proporção fosse entregue aos filhos pela sua condição de coproprietários descendentes, já que os ascendentes em regra têm a menor probabilidade de mais vida. No caso em que os pais do de cujus sejam igualmente falecidos, então, a herança é total e exclusivamente devida aos filhos. Mesmo nas sociedades onde impera o sistema da lei matrilinear, o critério fundante desse sistema é sempre a propriedade privada. O sistema matrilinear é geralmente de sociedades com alguma predominância do poli amor ou relacionamentos abertos, o que coloca nos homens alguma incerteza sobre a propriedade dos filhos. Diante dessa incerteza, é aceitável que a propriedade se desloque aos sobrinhos, em detrimento dos filhos “incertos”. Portanto, se a vida fosse linear, com a morte sendo estabelecida por regra cronológica determinada, ou que a vida não fosse marcada por acontecimentos fortuitos e ainda se não houvesse azar, sorte e escassez; a teoria da propriedade privada seria o único fundamento da herança.
Só que a vida e as relações humanas que a caracterizam, formam uma teia complexa de situações que não se esgotam na teoria da propriedade privada. A vida real é marcada por tragédias e acertos, enquanto uns nascem, outros morrem, uns guerreiam outros cooperam, decisões e escolhas são feitas, afetando pessoas de diversas formas. Uns se casam outros divorciam-se, ocorrem também relações de amizade, de ódio, filantropia; tudo isso forma essa complexa teia de relacionamentos. Quando determinadas pessoas morrem e deixam filhos menores, esses tornam-se encargos para as suas famílias, que passam agora a sustentá-los.
Contou-me a minha mãe, que devido as dificuldades financeiras em formar todos os filhos, meu avô optou em levar para escola apenas um dos meus dois tios, enquanto outro teria de permanecer a cuidar do boi e da lavoura para continuar a sustentar os estudos do irmão. Pela condição imposta pela escassez, o outro tio e suas irmãs tiveram de permanecer sem instrução, ajudando os pais para sustentar o único irmão que frequentava uma instituição escolar. O critério de escolha foi que o mais robusto fisicamente teria mais chances de sobreviver as exigências da vida no campo, enquanto o outro, o mais franzino frequentaria a escola devido a sua pequenez e assim maximizar a sua capacidade de sobrevivência e também para ajudar posteriormente a família.
Durante o período do conflito armado que assolou o país, as populações de várias regiões foram forçadas a uma migração interna, saindo de suas terras sem quaisquer recursos. Isso forçou que esses migrantes se estabelecessem em casa de familiares, que tinham de os sustentar na fase inicial.
Diz uma lenda, que certa vez um ancestral do grupo étnico umbundo, perdido nas matas, foi dar numa aldeia de um grupo étnico de tchokwes. Segundo essa narrativa, o ancestral umbundo foi muito bem tratado pelo povo tchokwe, com direito a escolta até a sua procedência. Desde então, surgiu uma amizade entre esses dois povos que duram até aos nossos dias. Esses povos chamam-se uns aos outros de “tchisssoko”. Até hoje os tchissokos têm a obrigação de ajudarem- se uns aos outros, fazendo jus a lenda.
As complexidades das relações humanas podem ser vistas também nas ligações totémicas entre os povos. No sul de Angola por exemplo, se estiveres perdido num território qualquer, ou por situações de negócios se deslocares a uma localidade qualquer, as pessoas que encontras geralmente perguntam a sua linhagem totêmica. Se coincidir, isto é, se por exemplo forem da mesma linhagem de “vakwanagando ou “vakwombela”, o forasteiro é tratado como um filho ou familiar, já que se acredita que grupos totêmicos provêm dos mesmos ancestrais.
Na Província da Huíla, – localizada no sul de Angola, – existem associações filantrópicas voluntárias. As pessoas de uma aldeia ou bairro, acordam em cada lar ou casal, contribuírem mensalmente em dinheiro ou espécie, criando-se assim um fundo para fazer face as situações imprevistas como óbitos ou doenças.
Igualmente, um grupo de mais de 300 vendedores do mercado do Mutundo, criou igualmente uma associação filantrópica, pagando quotas mensais, para acudir situações de óbitos, doenças ou até mesmo de ajuda financeira aos membros.
Então, se de fato as relações humanas baseadas na propriedade privada são importantes na medida em que evitam e dirimem conflitos e também estabelecem uma sociedade de paz, apelando para a valorização do individualismo, elas não são as únicas que caracterizam as relações humanas. Os homens, a par de conflitarem, também festejam, alegram-se, amam-se, apaixonam-se, casam-se, ajudam-se, solidarizam-se, associam-se; e todas essas relações formam e moldam as relações sociais.
Por isso, a instituição da herança, para além de comportar o âmbito da propriedade privada, ela é também uma instituição moral por conta das relações humanas não conflitantes, imprevistas e de escassez. Para a formação da sociedade, para além das trocas, dos ganhos recíprocos e da produção, contam também o comportamento moral dos membros de cada sociedade.
Permitam-me mais uma vez apresentar a moralidade da herança a luz da cultura dos ovimbundos da Huíla. Na cultura desses povos, quando alguém morre, um dia depois do enterro, organiza-se uma cerimônia fúnebre, chamada na língua local de “ovilonga”. A “ovilonga” é geralmente dirigida por um conselho familiar e nela são geralmente discutidos três principais temas. Primeiro, uma explicação geral da causa da morte, narrando os fatos desde o início da doença até o período da morte; segue-se depois o período de chamar os devedores e credores do de cujus. Nessa fase, torna-se importante que esses credores e devedores estejam presentes nessa cerimônia para a fé pública, salvo se for uma dívida ou crédito já sabido na família do de cujus. A última fase consiste na nomeação dos herdeiros, testadores e legatários. Mas antes da nomeação dos sucessores, é apresentada a viúva e os filhos a todos os presentes e esses devem também apresentar todos os bens deixados pelo falecido. Nessa fase, dois tipos de herdeiros são nomeados. O primeiro herdeiro nomeado é o primogênito ou primogênita, chamados de capingãla koyondji ou kohumba, (herdeiro da azagaia ou do balaio) consoante seja homem ou mulher. No caso, será Koyondji, se o de cujus for homem, e kohumba, se for mulher, significando que os herdeiros são consoantes ao gênero. Esses herdeiros, são o cabeça de casal e substituem o falecido ou a falecida nas suas responsabilidades entre os irmãos ou filhos do de cujus.
No caso de irmãos menores, eles assumem a azagaia ou o balaio, quer para caçar e sustentar os irmãos, ou o papel de cozinhar e cuidá-los domesticamente.
O segundo na categoria da herança é o legatário, também chamado de capingãla kepundy (herdeiro da cadeira) e substitui o de cujus na família. Quer isso dizer que o vazio ou a responsabilidade deixada pelo de cujus, deve ser coberto por um membro da sua família, de modo que se mantenha intacta. Esse herdeiro ou legatário, torna-se o pai ou mãe dos órfãos, com toda responsabilidade que isso implica. Este deve ser sobrinho indireto ou outro familiar, desde que tenha relação de convivência com a família do falecido. Na fase do processo sucessório, o herdeiro ou legatário do kepundy também é chamado no direito a herança. Sendo que a principal riqueza é o gado bovino, então ele também recebe uma ou duas cabeças de gado, consoante a riqueza deixada pelo de cujus e também a cadeira, bacia e pratos que eram usados por ele.
Depois, chama-se também para a sucessão outros membros da família e não só, como irmãos, tios, tias, vizinhos, amigos e outros. De lembrar que a herança se molda ou estabelece-se de acordo ao convívio familiar e de contiguidade, ditando a qualidade de herdeiros e a manutenção da coesão familiar. Como nos reforça Carlos Esterman, “Assim, por exemplo, não existe entre a nossa gente o problema dos órfãos, com tanta acuidade como entre os europeus, pois os filhos não pertencem ao pai e à mãe, mas sobretudo ao tio paterno e aos seus irmãos ou mesmo primos uterinos.”[1]
Entre alguns grupos étnicos dos nhaneca-Humbe, regidos pela lei do sistema matrilinear o processo sucessório é similar ao retratado acima. Nesse sistema os filhos não herdam os pais. Falecendo um homem, cabe o direito de herança a um sobrinho. Este não é necessariamente o filho mais velho da irmã mais velha do falecido tio. Todos os rapazes oriundos de irmãs uterinas estão em pé de igualdade. Assim, o conselho da família se reunirá em cerimônia fúnebre para indicar o herdeiro principal.
“Na escolha do herdeiro principal muito influirão as relações que os sobrinhos tiveram tido em vida com o tio falecido. Se não existirem descendentes machos no segundo grau da linha colateral, a herança irá para um filho de uma prima materna direta do falecido, ou seja, para um segundo sobrinho. No caso se também não haver machos, a herdeira será a filha de uma irmã do falecido, ou seja, uma sobrinha do segundo grau colateral.
No caso do falecimento de uma mulher, é constituída uma herdeira principal que é uma sobrinha, filha de uma irmã. Neste caso, se a mulher tiver deixado gado, além dos utensílios domésticos, vestidos e mantimentos, estabelece-se automaticamente uma divisão de bens. Estes últimos haveres formam o quinhão da herdeira principal; o gado será distribuído entre os filhos. A herdeira principal terá o direito de ficar com uma vaca, … Se tiver muito gado concedem-lhe até três cabeças, sobrando ainda muito distribuem-no entre todos os próximos, parentes dentro da família uterina, quer dizer: entre filhos, irmãos e primos. A regra é que em todas as heranças o herdeiro principal de um tio rico deverá contemplar todos os seus irmãos e primos uterinos com algumas cabeças de gado. Poderá fixar para ele com uma parte ligeiramente superior em valor ao que em conjunto distribui aos seus parentes.”[2]
Como dissemos acima, essa forma de sucessão é obrigatória no âmbito do costume local e a não observância destas regras resultará em conflitos entre membros da mesma família e consequentemente a desestruturação familiar.
Portanto, a herança é um processo complexo e só maleável as especificidades dos relacionamentos familiares, o que a torna impossível de ser estabelecida legalmente pelo Estado. Sendo a herança resultante de uma teia complexa de relacionamentos humanos, ela não cabe no âmbito do direito positivo em que um grupinho de legisladores ou burocratas determinam a complexidade dessas relações. Aliás, enquanto instituição moral, a regulação estatal da herança constitui uma agressão à propriedade privada. Então, erram aqueles que defendem o positivismo jurídico segundo o qual, a herança deve pertencer unicamente aos filhos. Eles ignoram a vida real que é marcada por situações imprevistas e pela escassez. O mecanismo da sucessão por via exclusiva da propriedade privada, coloca os filhos do falecido fora da integração, proteção e coesão familiares.
Por isso, o processo da sucessão deve ser encarado como um mecanismo jurídico-moral que serve para evitar conflitos e também manter a família coesa e apta em lidar com situações imprevistas que atentam contra própria natureza humana.
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Notas
[1] Padre Carlos Esterman, Etnografia do Sudoeste de Angola, Grupo étnico nhaneca-Humbe-volume 2, Pag.142
[2] Padre Carlos Esterman, Etnografia do Sudoeste de Angola, Grupo étnico nhaneca-Humbe-volume 2, Pagina 144









Mas hein?
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