A bolha imobiliária chinesa e o espectro de uma grande recessão

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Zhengzhou (1)É uma história sinistramente familiar.  Pouco antes de a bolha imobiliária americana estourar, analistas econômicos ao redor do globo afirmavam que o mundo havia atingido um novo patamar de crescimento econômico, em que as velhas regras da ciência econômica não mais eram válidas — “desta vez, tudo será diferente”.  O mesmo tem sido dito sobre a atual expansão econômica da China, especificamente no que diz respeito ao enorme grau de controle que o estado exerce sobre a economia de cima para baixo — por algum motivo, os “especialistas” querem crer que as leis econômicas foram revogadas

Com efeito, essa noção parece plausível de acordo com os tradicionais agregados keynesianos.  Afinal, o crescimento do PIB chinês recuperou-se em tempo recorde e em ritmo recorde desde o arrefecimento da economia global em 2008, atingindo um crescimento de impressionantes 10,7% ao final de 2010.  Embora parte desse crescimento certamente advenha de um genuíno desenvolvimento econômico, uma fatia substancial é impulsionada pela expansão monetária, por “estímulos” governamentais e por uma maciça e insustentável bolha imobiliária.

Em 2008, com o intuito de retomar os níveis de crescimento vivenciados antes da crise, o governo chinês adotou um dos remédios favoritos dos estatistas para épocas de dificuldade econômica: expansão monetária.  Isto era “necessário” para aumentar o investimento doméstico e o consumo, bem como para compensar a redução das exportações.  Em novembro de 2008, o governo também anunciou um pacote de “investimentos” de US$ 586 bilhões, com esse mesmo propósito.

Entretanto, sempre que um governo alegar estar “investindo” em algo, substitua o termo “investir” por “gastar” ou “imprimir dinheiro”.  Dado que o governo raramente gasta dinheiro com o intuito de colher lucros, simplesmente não há como saber se o dinheiro foi gasto produtivamente ou não.  Mesmo que esses “investimentos” fossem guiados por cálculos de lucro e prejuízo, o capital ainda viria da tributação forçada ou da inflação monetária, e não da poupança voluntária.  Assim, é sempre impossível determinar se o dinheiro poderia ter sido gasto em coisas melhores.

Alô, alguém em casa?

O extremamente famoso investidor Jim Rogers, seguidor da Escola Austríaca, há muito tempo vem subestimando essas especulações sobre estar havendo uma grande bolha chinesa.  Ele argumenta que, embora de fato os preços dos imóveis em algumas cidades costeiras estejam superaquecidos, um arrefecimento destes preços provocaria apenas um pequeno solavanco no crescimento chinês, e não uma grande recessão.  O resto do país, diz Rogers, “dificilmente está em uma bolha“.

Já outro bem conhecido investidor seguidor da Escola Austríaca, Doug Casey, é bem mais pessimista, argumentando que a China “está em uma inacreditável bolha imobiliária”, algo que irá fazer com que “milhões de chineses — e os bancos que emprestaram dinheiro para eles — percam tudo.”

Certamente há bons motivos para se preocupar com a China.  Um estudo conduzido em meados de 2010 pela Universidade de Tecnologia de Pequim relatou que um típico apartamento em Pequim custa mais de 22 vezes a renda média da cidade, ao passo que o jornal britânico The Telegraph relatou em dezembro que esse mesmo cálculo para a cidade de Shenzhen é 18.  Em nível nacional, a Academia Chinesa de Ciências Sociais concluiu, no ano passado, que uma típica propriedade chinesa custa 8,8 vezes a renda média.  Compare estes valores aos meros 5,5 no Reino Unido em 2007 e 4 em 2009.  Nos Estados Unidos, no auge da bolha imobiliária, quando os preços dos imóveis atingiram seu ápice, este valor ficou em pouco mais de 5 vezes a renda média, de acordo com o S&P Case-Shiller Index.

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Empreendimento imobiliário em Ordos

Assim como nos EUA, o mercado imobiliário chinês está assolado pelo excesso de construções, e não apenas em megacidades como Xangai, Pequim e Shenzhen.  Cidades fantasmas extremamente novas têm brotado por toda a China nos últimos anos, sendo que a mais famosa delas talvez seja Kangbashi, em Ordos, no sudoeste da região da Mongólia Interior.  Toda a capacidade imobiliária desta cidade pode atualmente acomodar bem mais de 300.000 residentes; entretanto, apenas um décimo deste número de fato reside ali. (Veja o vídeo em português).  Várias outras cidades menos conhecidas também ostentam enormes carreiras de prédios residenciais de vários andares e de prédios públicos majestosos ao mesmo tempo em que aparentam estar completamente destituída de residentes.

Jim Chanos, da Kynikos Associates, afirma que os novos empreendimentos comerciais para escritórios que estão atualmente sendo construídos na China têm espaço suficiente para fornecer cubículos de 930 centímetros quadrados para absolutamente todos os cidadãos do país.  E estamos falando apenas de imóveis comerciais.  O jornal Finance Asia relata que aproximadamente 64 milhões de casas e apartamentos em toda a China estão vazios há mais de seis meses, o suficiente para abrigar 200 milhões de pessoas — 15% de toda a população do país.  Nessa mesma linha, um estudo conduzido em 2007 pela Universidade Union, de Pequim, descobriu que 27% de todos os apartamentos recém-vendidos em Pequim, em mais de 50 áreas residenciais distintas, permanecem desabitados.

Por que, então, essa insana produção excessiva de imóveis continua?  Afinal, esta enorme discrepância entre unidades produzidas e unidades desocupadas deveria resultar em queda de preços.  Entretanto, a maior parte dos novos empreendimentos imobiliários é comprada antes mesmo de começarem a ser construídas.  A resposta é que os compradores normalmente são especuladores que se abstêm até mesmo de alugar as propriedades na esperança de que obterão maiores lucros quando revenderem-nas intactas no futuro.  Bill Powell, da revistaFortune, conta o caso de um vizinho em Xangai que, com esse mesmo objetivo, comprou o espantoso número de 43 casas em 3 apenas anos.

Essa absurda demanda é, por sua vez, propiciada pala expansão do crédito.  Oficialmente, o M2 chinês cresceu 58% entre novembro de 2008 e dezembro de 2010, ao passo que o total de empréstimos bancários (inclusive empréstimos nominais)  dobrou (estatísticas não oficiais) em 2009 em relação a 2008.

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Agregados Monetários para a China (mensurados em 100 milhões de Yuanes)
Fonte:  Banco Central da China

Um fator essencial para essa mania imobiliária é que, para a maioria dos chineses, um imóvel é a mais lucrativa e (aparentemente) mais segura opção de investimento disponível, quando comparado às alternativas; os juros pagos sobre depósitos bancários estão abaixo da inflação de preços ao consumidor, as ações das empresas chinesas têm apresentado uma performance fraca (para dizer o mínimo) nos últimos anos, e os controles de capital impostos pelo governo ainda impedem que os cidadãos invistam em fora.[1]

Mais do que aparenta

É claro que a produção excessiva de imóveis e a precificação exagerada destes não foram os únicos fatores causadores da crise financeira americana.  Outro ingrediente essencial foi o castelo de cartas sobre o qual se sustentava o mercado hipotecário americano, o qual, à primeira vista, parece ser consideravelmente diferente na China.  Por exemplo, o pagamento de entrada necessário para a compra do primeiro imóvel é de 25%, ao passo que para o segundo imóvel o valor sobe para 60% (até novembro de 2010, esse valor era de 50%) — para um terceiro imóvel em diante, a exigência é que o financiamento seja todo em dinheiro.

Ademais, o compulsório para os grandes bancos chineses foi elevado para 21,5% em junho de 2011, após vários aumentos seguidos que vêm ocorrendo desde 2010, ano em que começou em 15,5%.

Entretanto, todos esses fatores não são nada quando comparados à enorme economia informal da China.  Por exemplo, estimativas recentes da agência de classificação de risco Fitch sugerem que os bancos chineses emprestaram (informalmente) 30% a mais de crédito do que a meta estipulada pelo governo, que foi de 7,5 trilhões de yuanes (1,1 trilhão de dólares) em 2010.  E isso depois de vários esforços restritivos implementados pelo governo, bem como o fato de que os quatro maiores bancos da China são todos — ironicamente — estatais.

Ao invés de reduzir o fluxo de dinheiro, as regulamentações mais restritivas serviram apenas para estimular os bancos a se tornarem mais criativos quanto às suas criações de crédito.  Ao reempacotarem suas carteiras de empréstimos e vendê-las para fundos de investimentos estatais, os bancos conseguiram fazer parecer com que seus verdadeiros empréstimos se mantivessem nos mesmos níveis de antes, quando na realidade eles estão abaixo de suas quotas oficiais.  Em outras ocasiões, os bancos pegaram suas carteiras de empréstimo e as transformaram em fundos mútuos, e venderam esses produtos para investidores privados, algo muito parecido com o que os bancos americanos fizeram na década de 2000.

A situação não é facilitada pela ausência de direitos de propriedade sobre a terra, uma vez que toda ela pertence ao governo chinês e é arrendada para empresas privadas e estatais por meio dos chamados direitos de uso da terra.  Por sua vez, a venda desses direitos constitui uma vital fonte de receita para os governos locais, fornecendo poderosos incentivos para que eles ajudem a estimular o boom imobiliário.  Isso acrescenta mais uma explicação para as cidades fantasmas ao redor da China.  Vários governos locais irão se descobrir em delicada situação econômica quando as receitas secarem.

Alguns podem apontar para o fato de que a China possui mais poupança e menos endividamento público e privado do que os EUA, dois fatores que irão ajudar a suavizar o impacto de um declínio imobiliário.  Isso até certo ponto é verdade, porém as coisas não tão simples quanto aparentam à primeira vista.

Por exemplo, a Ernst & Young estimou, ainda em 2005, que o total de dívidas ruins (dívidas irrecuperáveis) em posse dos bancos chineses estava então próximo de $ 1 trilhão.  Esse número hoje é provavelmente várias vezes maior, dado que os empréstimos dispararam nos últimos dois anos.  As hipotecas também estão crescendo rapidamente: quase metade de todas as propriedades residenciais vendidas em 2009 foi financiada por empréstimos bancários; em 2007, era apenas 20%.

Outro exemplo vem do professor Victor Shih, da Universidade Northwestern, em um estudo feito em 2009 sobre a dívida pública da China.  Ele concluiu que é mais provável que ela esteja na casa dos 40% do PIB do que no nível oficial de 20%.  Até mesmo o diretor de um dos vários institutos estatais de pesquisa da China colocou a dívida pública em algo perto de 50%.

Logo, tanto a dívida pública quanto a dívida privada poderiam, somadas, representar uma fatia substancial do PIB chinês, que é de $5,7 trilhões.

As reservas estrangeiras de $2,8 trilhões serão de pouca ajuda para recapitalizar os bancos e amparar os governos locais, dado que essas reservas seriam boas apenas em caso de uma crise da dívida externa, e não para uma crise de endividamento doméstico (dentre outras coisas, trocar essas reservas por yuanes provocaria uma enorme apreciação da moeda chinesa, prejudicando as exportações do país).  E, só pra constar, os Estados Unidos ao final da década de 1920, quando começou a Grande Depressão, também possuíam uma enorme quantidade de reservas estrangeiras, assim como o Japão ao final da década de 1980.

As reservas de ouro da China serão ainda menos úteis, dado que eles totalizam apenas 1,7% das reservas internacionais.

Inflação ou estagnação?

É óbvio que o estouro da bolha imobiliária chinesa impactará setores muito além dos imóveis e da construção civil.  Alguns analistas acreditam que o crescimento do PIB da China irá cair para algo em torno de 5%, ou seja, para metade do seu nível de crescimento atual.  A agência Fitch e a Oxford Economics recentemente apresentaram um estudo sobre o que poderia ocorrer caso esse cenário se tornasse realidade.  Dentre as principais conclusões, uma grande desaceleração econômica tanto nas economias desenvolvidas quanto nas econômicas emergentes da Ásia, com os níveis de crescimentos dos PIBs caindo pela metade em todo o continente.  Os setores que provavelmente mais sofreriam, na China e demais lugares, seriam o siderúrgico, o energético e o de construção pesada.

O estudo também prevê uma queda de 20% nos preços das commodities industriais após a ocorrência deste cenário, algo que traria sérias implicações a países como Austrália e Canadá (e Brasil), que dependem fortemente da exportação de minérios.  Isso é de particular importância para aqueles investidores que estejam hoje considerando estas commodities, bem como ações de mineradoras, como uma proteção contra a inflação de preços que paira sobre os EUA e a Europa.

Na China, também, a inflação de preços tornou-se uma crescente preocupação.  O índice oficial em 2010 foi de 5% — o maior em 28 meses.  Na realidade, entretanto, é provável que este valor seja muito maior, dado que apenas os preços dos alimentos dispararam estimados 50% em Xangai no ano passado, chegando ate mesmo a dobrar em certas partes do país.  Li Wei, da Standard Chartered, acredita que a inflação de preços oficial chegará a 8% ao final do primeiro semestre de 2011, ao passo que Yu Song, da Goldman Sachs, prevê que esteja acima de 10%.

Em dezembro do ano passado, o Politburo do Partido Comunista Chinês anunciou que abandonará a atual e “relativamente frouxa” política monetária, e adotará uma mais “prudente” em 2011.  Além de desestabilizar a economia, o governo sabe que uma alta inflação de preços pode também desencadear inquietações civis.  Esta foi, por exemplo, uma das causas dos protestos na Praça da Paz Celestial, quando a inflação de preços oficial pulou de 7,3% em 1987 para 18,5% em 1988 e então para 28% no início de 1989.  Tanto naquela época quanto hoje, há uma crescente inquietação na China quanto ao aumento dos preços dos bens de consumo, embora muitas pessoas venham relutantemente aceitando os fatos — ao menos enquanto o atual crescimento econômico se mantém.

Conclusão

A China pode muito bem se tornar uma “Dubai multiplicada por 1.000″, como bem disse Jim Chanos, embora o júri ainda esteja indeciso quanto à real magnitude do colapso que está por vir.

Embora os sistemas econômicos da China e dos EUA de antes da crise sejam certamente distintos, por baixo da superfície a China está assolada por níveis estonteantes de expansão do crédito, de especulação, de investimentos insustentáveis e de empréstimos insolventes — algo muito parecido com o que se viu nos EUA.  A ideia de que o pulso firme do governo está no controle dessa situação é bastante perigosa.  As leis da economia são onipresentes e não podem ser sobrepujadas simplesmente pela força.  Tentar aplicar, de cima para baixo, um planejamento central em uma economia que é cada vez mais conduzida por forças de mercado que vão de baixo pra cima irá inevitavelmente gerar graves consequências.  Uma expansão agressiva do crédito sempre leva aos mesmos fenômenos: inflação de preços, investimentos insustentáveis e bolhas.

Ainda assim, “desta vez, tudo será diferente”

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Notas

[1] Em janeiro deste ano, a área administrativa de Wenzhou se tornou a primeira a suspender alguns destes controles para seus habitantes, que agora podem investir em mercados estrangeiros durante um período experimental.  Porém, ainda assim os investimentos são estritamente regulados, e Wenzhou é apenas uma área de sete milhões de pessoas em um país de 1,3 bilhão.

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