A escala de defesa

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Um dos principais sofismas do estatismo é a manipulação da linguagem, especialmente da linguagem referida à política e à economia. Os príncipes no período renascentista contratavam poetas, pintores, arquitetos e escultores para justificar seu governo e cantar as suas obras para a posterioridade. O mural “O Efeito do Bom e do Mau Governo” dos irmãos Lorenzetti, que profanou a Catedral de Siena com seu mitificado ideal do bem comum, é um bom exemplo do que foi dito. Os modernos governantes delegaram agora para economistas, cientistas políticos e sociólogos o trabalho sujo de justificar a sua atuação. Se perdeu muito em beleza expositiva, e ganhou, em compensação, em eficácia conceitual. As novas justificativas do estado pretendem falar em nome da ciência e entre suas tarefas, como apontamos, está a de modificar a linguagem. Uma das suas principais tergiversações é a de rotular determinados bens ou serviços como públicos, sociais ou estratégicos para justificar a continuação de sua prestação pelo estado. Assim, serviços prestados historicamente de forma privada, passam a ser prestados em regime de monopólio (tanto na sua prestação como na sua regulação) pelos poderes (públicos) estatais. Uma vez definidos desta forma, se afirma que alguns deles só o estado pode prestá-los em condições adequadas. Os seus serviços de segurança e defesa seriam típicos.

A prestação de um bem ou serviço requer meios humanos e materiais e se realiza sempre a uma escala determinada. A escala de prestação dependerá do tipo de serviço e da sua quantidade e qualidade. Portanto, haverá diferenças na prestação dentro do mesmo serviço e entre os diferentes serviços. A educação, por exemplo, poderá ser prestada a nível individual com tutores particulares ou bem coletivamente com vídeos postados na internet. O serviços de água igual: desde um poço particular a uma condução metropolitana.

O único serviço que parece escapar desta norma parece ser o da defesa nacional, cuja única forma de provisão parece ser a de contar com um serviço estatal de defesa prestado pelo estado. Quis, portanto, levantar algumas objeções aos argumentos que justificam a existência do estado com base uma inevitável necessidade do mesmo para prestar tais serviços.

Em primeiro lugar, a própria definição do grupo a defender é a meu entender um bom exemplo de raciocínio circular. O grupo a defender, segundo este argumento, são os cidadãos submetidos ao governo das pessoas que se autoproclamam como representantes de um imaginário ser chamado estado. Essas pessoas precisam ser defendidas de outras pessoas organizadas por outro grupo autoproclamado como representante legítimo de outro ente imaginário (o fato de que muitas pessoas creem em algo não implica a existência ontológica desse algo). Isto é, primeiro constituímos um grupo (estado) a partir de indivíduos que vivem anarquicamente justificando-o por necessidade de defesa e logo se disse que esse grupo, uma vez constituído em relação à defesa, tem necessidades de defesa como grupo, porque tal grupo está ameaçado e a ameaça é grupal. Isto é, agora o grupo tem necessidade de se defender. Não tem muita lógica. A definição prévia do grupo como comunidade com necessidade de defesa carece pois de justificação, dado que, por regressão, como se justificaria o primeiro grupo se não há nenhum atacante organizado prévio? O primeiro grupo agressor já é portanto um grupo organizado, a princípio não muito sofisticado e dedicado à agressão, e não necessita mais justificativa teórica do que o seu ânimo para pilhagem. Os grupos de hunos, bávaros ou vikings saqueadores pelo menos tinham a decência de não pretender uma justificação “científica” ou racional de suas pilhagens. Desde logo, não os denominavam serviços públicos de defesa. O que faziam muito dos chefes desses grupos é tentar impedir que outros grupos lhes tirem seu privilégio de obter rendas de seus submetidos, e para eles estabeleciam exércitos ou organizações armadas. As bombas atômicas que possui a Coréia do Norte – para colocar um exemplo de um grupo de bandidos atual – são para defender ao seu povo dos bárbaros do Sul ou são para que a classe dirigente possa seguir explorando os seus súditos?

Em segundo lugar, não se disse nada em relação em qual deve ser a escala, ou o número mínimo de pessoas. Se fala da defesa estatal como se a origem dos estados se perdesse na origem dos tempos e a escala de defesa sempre fosse igual a que existe agora. A configuração atual do sistema deve sua existência à guerras, matrimônio de príncipes, descolonizações ou partições políticas por razões políticas ou ideológicas. Mas os estados não têm nenhuma racionalidade de escala para a defesa, mas esta é uma afirmação a posteriori. Não existe uma escala ideal para a provisão de defesa, nem sequer se pode assegurar que os serviços de defesa estatal podem garanti-la. Luxemburgo não poderia se defender da França, nem Togo da Nigéria. Nem sequer estados maiores como Iraque poderiam se defender diante dos estados mais poderosos como o americano. Estados Unidos, por sua vez, teria mais problemas com Rússia e China. Por sua vez, Luxemburgo poderia se defender de Liechtenstein, e Togo de Guiné Equatorial. Pelo que poderíamos afirmar, a escala de defesa só pode ser definida em razão do tipo de inimigo que cada um enfrenta. E a definição de qual é o inimigo não é facilmente objetivável: fatores étnicos, religiosos ou ideológicos contribuem à definição de inimigo, e pela mesma razão estes estão mudando. Para os franceses, Napoleão foi uma benção, igual que para os vietnamitas foi o ataque do Vietnã ao Camboja dos khmeres vermelhos. Espanha e França foram aliados várias vezes e inimigos outras tantas. O Islã radical passou de aliado na luta contra os soviéticos a inimigo mortal hoje. O que é válido para um tipo de inimigo pode não sê-lo para outro se as circunstâncias ou as perspectivas de amizade ou inimizade mudam. Cuba passou de um país quase desarmado antes da revolução, dado que não possuía inimigos, a ser um país fortemente armado, chegando a ter inclusive mísseis nucleares depois da vitória comunista. Por sua vez aparecem e desaparecem novos inimigos. Martin van Cleveld, por exemplo, em seu “Rise and Fall of The State” afirma que a escala de defesa da maioria dos estados não é a adequada para atender a desafios como o terrorismo islâmico suicida, as máfias modernas e gangues ou pirataria naval. Ou seja, os estados realmente existentes não podem em sua maioria cumprir com suas promessas de defesa, bem porque são demasiado grandes para se enfrentar inimigos pequenos ou demasiado pequenos para prestar tais serviços. Disto pode-se deduzir que a prestação dos serviços de defesa deverá necessariamente ser definida politicamente, isto é, de acordo com os interesses das pessoas que em cada momento detêm o poder estatal. Desta forma, a defesa é um eufemismo para designar uma determinada prestação de serviços para a maior glória destas pessoas. De fato é facilmente observável que os serviços de segurança estão em muitos casos monopolizados por interesses especiais, desde o chamado complexo industrial-militar – tão bem descrito por libertários como Seymour Melman (“Pentagon Capitalism” é uma verdadeira obra prima) – até determinadas empresas que se servem delas em suas relações comerciais para “facilitar” seus tratos, passando pelos próprios militares que em muitos países controlam setores econômicos chave (o famoso deep state turco ou egípcio), se é que não detêm diretamente o poder político. Todos eles, consequentemente, definem estas atividades como necessárias para a segurança nacional ou para a prestação indispensáveis.

Por último, a prestação de defesa se recruta somente a uma pequena parte da necessidade de defesa e segurança humana. O ser humano precisa se defender e estar seguro diante de muitos tipos de agressões. Animais, vírus, frio, calor, terremotos, furacões mataram muito mais seres humanos do que eles entre si. Para todos estes problemas o mercado encontrou soluções efetivas, de tal forma que as baixas causadas pelos principais inimigos do homem foram minimizados. Só a agressão entre humanos parece escapar desta lógica. Mas esta agressão também obedece a diferentes lógicas. Não são a mesma coisa ser atacado por uma pessoa ou por pequenos grupos (o mercado também oferece soluções para esses casos) e ser atacado por um grande exército estatal. A escala do ataque requer obviamente respostas distintas em cada caso. Tampouco é similar em cada pessoa a percepção subjetiva de risco, pelo que requererá uma qualidade de prestação distinta e, portanto, uma escala distinta na administração do serviço. Porque se não fizer assim, teríamos tanto pessoas superprotegidas quanto pessoas mal protegidas. Em todo caso, o serviço de defesa estatal não seria pertinente. O único caso em que a defesa estatal seria aceitável é aquele do qual se confronta uma agressão em grande escala por parte das forças organizadas em grande escala como as organizadas pelo estado. Mas neste caso, como vimos antes, é incerto. Em primeiro lugar, que a melhor forma de confrontar este tipo de agressões seja pela outra organização estatal (o estado francês foi derrotado pelos nazistas e teve que recorrer a guerrilheiros, como ocorreu no Iraque, a Espanha durante as guerras napoleônicas ou numerosos outros casos) e, segundo, entramos de novo na circularidade: se necessitamos um estado para combater outro estado e assim, por regressão, como se justifica a existência do primeiro estado?

Neste escrito pretendi apontar que a definição de defesa produzida em monopólio pelo estado, ao não ser facilmente escalável (se foi, não poderia ser definida como um bem público que só o estado pode administrar), não pode satisfazer as necessidades de defesa de uma população. Da mesma forma que, por exemplo, a educação estatal não pode produzir mais que uma pequena parte das necessidades educativas de uma população e esconde uma agenda de domínio dela. No caso da defesa é quase a mesma coisa: não é mais que uma justificativa ideológica do monopólio de determinados meios de violência (os mais poderosos) por parte da classe governante.

 

Tradução de Luciano Takaki

Artigo original aqui.

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